Opinião
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25 de julho de 2021
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08:53

Cuba, que linda es Cuba (por Céli Pinto)

Foto: Cubadebate
Foto: Cubadebate

Céli Pinto (*)

A crise de Cuba é complexa e necessita de um olhar cuidadoso para que não se  caia em dualismos pouco explicativos. Neste curto artigo não pretendo dar conta dos problemas que o país enfrenta, mas gostaria de levantar alguns pontos que penso não podem estar fora de qualquer análise.

1. Cuba é um pequeno país, localizado em uma ilha a pouco mais de 100 quilômetros da costa estadunidense. Isto é problema para ela e seria para qualquer país, pois sempre teve o olhar vigilante do grande irmão. Antes da revolução, Cuba era um cassino de estadunidenses ricos, dominada por uma oligarquia local corrupta e amoral.

2. Cuba fez uma revolução popular, democrática, com grande liderança e apoio popular contra a ditadura de Fulgêncio Batista. Ao contrário das análises ideologicamente conservadoras repetidas ad nauseam, Cuba não foi dominada por um ditador que deu um golpe de estado. O povo cubano foi agente de sua própria revolução. Fidel Castro foi uma liderança inconteste.

3. A radicalização para o socialismo provocou três movimentos: a fuga para os Estados Unidos de parte significativa da elite econômica e de muitos profissionais liberais; o embargo econômico dos Estados Unidos, que teve inicio em 1962 e se prolonga até hoje, estrangulando a economia do pequeno pais; a aproximação com a União Soviética.

4. Esta aproximação deve ser lida com cuidado. Para os soviéticos, terem um braço avançado na América Latina e nas barbas dos Estados Unidos era muito estratégico. Para Cuba, o apoio era fundamental. Há ainda uma diferença importante a ser levada em consideração: ao contrário do que aconteceu na Europa pós-guerra, quando países ou parte deles foram entregues aos soviéticos como fatias de bolo, os cubanos não viram os soviéticos como invasores, mas como apoio, sem o qual dificilmente sobreviveriam. Isto possibilitou ao castrismo organizar o Estado de forma muito próxima ao soviético: com um viés totalitário, um partido único, repressão a dissidentes e críticos, normas rígidas em relação a estrangeiros.

5. Simultaneamente, havia uma revolução em curso, com importantes responsabilidades e comprometimento com o povo da pequena ilha. Cuba se transformou em exemplo de política educacional e de saúde pública, inclusive exportando tecnologia e pessoal pra países mais pobres, principalmente africanos. Não resolveu problemas habitacionais e de mercadorias, que sempre foram disputadas com dificuldades, mas ninguém passava fome, havia escola e saúde pra todos e havia a crença na revolução, no futuro e em seu principal líder. Não era uma questão de manipulação, mas de construção de um discurso hegemônico com valores novos, só limitado em sua capacidade de propor um novo mundo possível pela presença de um Estado totalitário.

6. O muro caiu, a URSS se desmantelou, os países do leste europeu acabaram rapidamente com governos pretensamente socialistas e Cuba ficou sozinha do lado de cá. A crise foi terrível, mas não derrubou o regime. O governo do partido comunista dos Castros conseguiu parcerias com a China, com alguns países da América Latina e até com a União Europeia. A iniciativa privada começou a ser permitida em alguns espaços e a ilha se abriu para o turismo. Os Estados Unidos começaram a pensar em entrar na ilha de novo, agora com propostas de aproximação e até com uma “simpática” visita do presidente Obama.

7. Cuba se abriu para o turismo. É uma belíssima ilha do Caribe. Isto teve dois efeitos com sinais contrários: por um lado, foi importante para e economia, para os empregos; por outro, expôs a população a uma outra forma de vida e ao acesso a dólares. Estabeleceu-se uma dualidade fatídica: havia duas Cubas, a dos turistas e a dos cubanos, e elas eram muito distintas. Ainda antes do fim da União Soviética, tive oportunidade de ir a Cuba. Fiquei encantada, mas já naquele momento, com um turismo muito controlado, duas situações permitiam antever problemas. Em Varadero havia um grande hotel, onde se hospedavam os estrangeiros, mas também casais em lua de mel, paga pelo estado. Quando fui tomar café da manhã, em um grande e bonito restaurante com um buffet tipo 5 estrelas, percebi que ali não havia cubanos. Onde estariam os casais que vira na véspera? Ao sair do restaurante, numa porta lateral, entrevi onde estavam: em um ambiente bem desconfortável, formavam fila para pegar o café e um pão com manteiga. Na mesma viagem, fiz um tour de ônibus com uma guia muito simpática (como a maioria dos cubanos). Ela se declarou uma revolucionária convicta: informou que era membro do Partido Comunista, falou da vida dela, dos filhos, do futuro que esperava para eles. Sabíamos que era costume dar algum presente ou dinheiro aos guias no final do passeio, éramos um grupo de esquerda e ficamos temerosos de ofendê-la com dinheiro. Resolvemos perguntar o que preferia e ela respondeu imediatamente: dólares! Juntamos – lembro perfeitamente – 35 dólares e ela declarou que o valor era muito maior do que seu salário mensal.

8. Contei as histórias acima para argumentar que as pessoas, nós todos, em Cuba, no Brasil ou em qualquer outro lugar, não vivemos nossas vidas a partir de categorias sociológicas ou princípios macroeconômicos, mas a partir das nossas necessidades e desejos. Em certos momentos, nos identificamos como coletividade, envolvidos em soluções abrangentes e dispostos a sacrifícios. Também somos contraditórios e não temos definitivamente esta biografia que sonhamos, repleta de bom senso e sem desejos inconfessáveis. Os noivos de Varadero e a guia de turismo certamente, na sua grande maioria, acreditavam em Cuba, mas também tinham outros sonhos.

9. Chegamos, finalmente, às manifestações atuais. Antes de tudo, é mister enfatizar que há uma grande infiltração e financiamento da direita descendente de cubanos encastelados na Flórida. Certamente há interesse do governo dos Estados Unidos em acabar com este incômodo chamado Governo Comunista em Cuba. Entretanto, seria tão fácil quanto enganoso explicar o que está acontecendo, apenas considerando a intervenção estadunidense. Ela existe de forma escancarada, sem dúvidas, mas não explica tudo.

10. Temos de colocar, neste balaio de variáveis explicativas, algumas questões pouco cômodas. Em primeiro lugar, não se pode desconsiderar que a maioria dos cubanos hoje não viveram a revolução e muitos, talvez a maioria dos que estão nas ruas, são netos daquela geração. Os que estão nas ruas vivenciam um país pobre e governado por um partido único de feições ditatoriais. Em segundo lugar, a liderança mítica desapareceu. Fidel não existe mais, e ter sido substituído por seu irmão foi um desastre. Em terceiro, é praticamente impossível um país se abrir ao mundo pelo turismo, a internet, a exportação de mão de obra qualificada e manter uma ditadura durante uma grande crise econômica. Há dois exemplos para corroborar este argumento: a China é uma ditadura com um sistema econômico raro, bem-sucedida e relativamente aberta ao mundo, mas a população de 1 bilhão e 400 milhões de pessoas experimentou uma admirável ascensão social, mesmo às custas do aumento vertiginoso da desigualdade entre os chineses. Já a Coreia do Norte, também uma ditadura que se qualifica como comunista, é pobre, tem problemas sérios de abastecimento de alimentos, mas é completamente fechada ao mundo exterior.

11. Portanto, na situação de Cuba, é muito difícil manter uma ditadura, com miséria econômica e abertura para o mundo exterior, especialmente a poucos quilômetros dos Estados Unidos, com seu afã imperialista e seu embargo imoral.

12. Não encerrarei este texto com uma solução,  o que seria no mínimo irresponsável. Mas parece que o modelo cubano está em uma situação de perde ou perde. Se busca abertura política, permitindo uma experiência democrática, não terá força para manter uma economia mais coletiva, mais voltada para o social, um socialismo renovado. Se mantém um governo ditatorial, reprimindo manifestações de rua, pode dar espaço para experiências assustadoras, como as que aconteceram na Síria e no Iemên, após as grandes manifestações de 2011.

13. Precisávamos, mais do que nunca, de um modelo latino-americano que combinasse democracia radical com uma economia voltada para o bem viver das pessoas, do meio ambiente, do Planeta enfim. Mais do que uma teoria, um forte sentimento de solidariedade entre povos tão massacrados. Se isto existisse, o país poderia manter o sonho de igualdade da revolução sem precisar submeter seu povo a uma ditadura decadente. Cuba, que linda es Cuba.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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