Opinião
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6 de julho de 2021
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08:22

Coluna da Appoa: Sob o céu da inocência

(Foto: Arquivo pessoal de Gilson Mafacioli)
(Foto: Arquivo pessoal de Gilson Mafacioli)

Volnei Dassoler (*)

Pouco mais de 30 anos foi o tempo que Freud levou para compreender as determinações psíquicas que operaram na experiência de estranheza vivida por ele diante da Acrópole, complexo arquitetônico e histórico da Grécia antiga encravado numa colina de Atenas. A visita aconteceu em 1904 durante um desvio inesperado do planejamento inicial da viagem de férias em companhia do irmão, e a análise dessa manifestação incomum de estranheza e do pensamento de incredulidade suscitado por essa vivência: “então, tudo isso realmente existe mesmo”, foi consignada num breve escrito chamado “Um distúrbio de memória na Acrópole”, de 1936. Entre as elaborações que tece, Freud vincula esse instante de desrealização à surpresa pela constatação de ter chegado tão longe em seu percurso de vida, ultrapassando os limites da trajetória paterna.

Minha visita à Acrópole não surtiu este efeito, quiçá porque, para mim, a experiência-limite da vertigem – “então, isso tudo é real?” – já havia acontecido anos antes em Roma, em frente ao Coliseu, símbolo político do Império Romano. Lado a lado à fruição do momento, vi-me, num segundo tempo, perturbado, caminhando pelas ruínas do palco e das arquibancadas circulares desse monumento. De maneira geral, quando somos instigados a pensar no Coliseu, as imagens que nos veem imediatamente à mente – em parte alimentadas pelo repertório cinematográfico – remetem a uma espécie de entretenimento público em torno da execução de pessoas (em especial, cristãos) e das lutas de gladiadores combatendo até a morte. Foi assim que, durante alguns dias, vi-me assombrado pelo fluxo dessas cenas, numa espécie de espetáculo – como num programa dominical – em que homens e mulheres se divertiam excitados pela angústia, dor e sofrimento daqueles grupos de pessoas. Se o atordoamento de Freud fazia ecoar algo da sua verdade histórica e subjetiva, parecia inevitável concluir que a perturbação desencadeada, no meu caso, pela visita ao Coliseu tocava em fios da minha trama pessoal enodados na minha própria experiência de vida. 

A lembrança desse acontecido me veio recentemente motivada pela percepção de que, ainda hoje, pessoas continuam sendo expostas à humilhação e ao rebaixamento moral com o fim de deleite alheio. Na complexidade e multiplicidade da vida social na contemporaneidade, não há como negar que diferentes modos de viver podem coexistir num mesmo registro sociocultural. Não sendo atemporais, tais estilos articulam-se às relações de poder numa determinada localização histórica e política, sendo capazes de produzir sofrimento e, numa perspectiva foucaultiana, gerar torções desestabilizadoras em relação ao domínio instituído.

Somos todos saudosos de um certo passado – em especial do período em que vivemos nossa infância e juventude – por estarmos convictos de que, naquele tempo, o mundo era mais simples em sua estrutura, organização e funcionamento. Essa nostalgia se apoia num jogo combinatório de imagens, palavras, silêncios, esquecimentos e satisfações cuja dinâmica intervém na constituição da rede de representações que forja nossa memória. Em contrapartida, é bom que se diga, se não é possível que o passado seja vencido, tampouco sua reedição em forma de lembranças corresponde à literalidade das experiências vividas. De certa maneira, o prazer que desfrutamos associado à nostalgia dos idos tempos aponta para a hipótese de que, na infância e na adolescência, o sujeito vive com a sensação de que sempre está acontecendo algo, seja no registro da realidade ou no plano do devaneio, e isto porque, nessa etapa da existência, nunca faltam histórias para contar ou desejos para sonhar. É essa intensidade – produzida por nossa submissão aos impactos da pulsão – que se vincula a tais acontecimentos e os torna prazerosamente únicos na vida de cada um. Nesse sentido, não seria ousadia afirmar que cada geração não hesitaria em escolher sua própria época como aquela que lhe desperta mais saudades, situação que não se corresponde com a comparação que fazemos acerca da qualidade de vida nos diferentes estágios da civilização humana. 

Dito isso, vamos para o segundo round. No conjunto desses nostálgicos, alguns se atrapalham e tomam o que sentem como o bom tempo da sua vida como base para a legitimação de um modelo de mundo que, “curiosamente”, é o seu. Em sua retórica, denunciam que a vida atual teria perdido a graça e que o motivo desse desencanto seria o fato de não ser mais possível fazer brincadeiras e piadas sobre minorias sociais – diga-se de passagem, sempre baseadas em estereótipos. Essa narrativa alega que a censura a esse tipo de brincadeiras expressaria uma distorção nas relações de convívio, justificando que elas fazem parte da tradição cultural brasileira e que, portanto, não teriam intenção discriminatória ou ofensiva. Esquecem, no entanto, que a palavra não é neutra, pois suas entranhas carregam sentidos e intenções. A experiência com a palavra se divide ou se multiplica pelo que ela pode vir a dizer e também em função do lugar a partir do qual é pronunciada na estrutura discursiva. Fica evidente para qualquer um que quiser ver que, nesses momentos de descontração, nem todos riem, já que esse tipo de piada não dá lugar à emergência de um sentido novo e surpreendente que poderia dar vazão ao desfrute de todos. O que se observa, pelo contrário, é a repetição atualizada de um exercício de autoridade perante outros humanos submetidos ao escárnio. Nesses casos, o curso livre do riso não advém da capacidade de o sujeito rir de si mesmo, mas de ver o outro constrangido à humilhação.

De fato, fazer troça em torno da raça, gênero ou orientação sexual de outras pessoas foi tão natural quanto, em algum momento da história, jogar cristãos aos leões no Coliseu. Concluir, no entanto, que todos os envolvidos concordavam com tais práticas só é possível se recusarmos que tal assentimento só vigorava devido aos efeitos de silenciamento que regulava as interações sociais nas escolas, igrejas, famílias, clubes, trabalho, etc. A novidade – nem tão recente – é a entrada em cena de um movimento de despertar conduzido pelas minorias que buscam o reposicionamento e o reconhecimento do seu desejo e do seu viver no laço social, recusando, na mesma medida, a posição histórica de marginalização e de objeto de satisfação narcísica daqueles e daquelas que afiançam formas de gozo pela perpetuação de costumes que estão longe da inocência.  

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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