Opinião
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30 de junho de 2021
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14:04

Sobre o Bisol: um depoimento pessoal (por Carlos Frederico Guazzelli)

José Paulo Bisol em sua casa, em Osório, em 2011. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
José Paulo Bisol em sua casa, em Osório, em 2011. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

Foi mestre e amigo. Aliás, amigo da família, amizade que veio pelo Synval, de quem foi colega de ginásio, no Colégio Rosário, e depois em uma das primeiras turmas da Faculdade de Direito da PUC, na qual se formaram em 1954. No início desta década, os dois jovens estudantes foram introduzidos por meus pais, aqui em Porto Alegre, a um grupo de intelectuais, artistas e profissionais liberais – entre tantos outros, Ciro Martins, Dyonélio Machado, Vasco e Luiza Prado, Lilla Ripol e Antonio Pinheiro Machado Netto.

Posteriormente, em 1955, nós fixamos residência em Vacaria, terra natal de meu pai, onde ele montou banca de advocacia, na qual passou a trabalhar também o primo recém-formado; e seu colega Bisol logo iniciaria a carreira na magistratura, primeiro como pretor e depois como juiz. Muitos anos depois, tendo retornado com minha família a Porto Alegre, ingressei no curso de Direito da UFRGS e nesta época, meados da década de 1970, ouvia-se falar bastante no Bisol nos meios jurídicos: o jovem poeta e intelectual transformara-se em um brilhante magistrado, cuja independência e lucidez tanto o faziam popular entre os estudantes e advogados, como lhe criavam reservas de parte dos setores conservadores, entre os quais, a direção do Tribunal de Justiça.

Não se esqueça que vivíamos então os piores anos da ditadura, ao final do famigerado governo do general Médici, marcado pela violência desusada do sistema repressivo político por ela montado, para perseguir seus adversários – reais, potenciais ou imaginários. Neste cenário, inseguro e perigoso, Bisol compunha com dois outros colegas, como ele chegados há pouco à capital, um trio de juízes criminais “rebeldes” – além dele, Fábio Koff e Mário Rocha Lopes.

Lembro que, em 1974, organizamos na Faculdade, com o centro acadêmico, um seminário sobre o sistema penal e a forma como os presos cumpriam os castigos que lhes impunha a justiça criminal. A palestra do Bisol, nosso principal convidado, foi contundente, em especial uma frase sua que nunca esqueci: “a distância entre o juiz e o verdugo não é tanto grande a ponto de não desesperar”.

A propósito, cabe resgatar o papel pioneiro que ele exerceu naquilo que chamávamos, em nossos grupos de estudo, de “teorias críticas” do Direito: antes ainda da vinda de dois professores, Luiz Alberto Warat e Roberto Vernengo – exilados depois da instalação na Argentina do chamado “terrorismo de estado” e aqui acolhidos pelo professor e advogado Ney Fayet – o Bisol já nos fascinava com a leitura do fenômeno jurídico a partir das lições da filosofia, da psicanálise e da linguística, misturando Freud, Kelsen e Foucalt.

Foi somente um pouco depois que apareceram os trabalhos inovadores na área da crítica do Direito, inclusive de um jovem pesquisador português, chamado Boaventura Souza Santos, sobre o “direito achado nas ruas”. E a seguir, o movimento de alguns juízes gaúchos, adeptos do “direito alternativo” – que eles preferiam chamar, com razão, de “uso alternativo do direito”. Pois, sem desdouro a ninguém, José Paulo Bisol tinha aberto antes, em suas aulas e palestras, estes caminhos reveladores da natureza do ordenamento jurídico: era dele a observação arguta de que o Humpty Dumpty da Alice, de Lewis Carrol, localizava a verdadeira origem da norma no “poder exclusivo de designar o nome das coisas”.

Só tem poder quem domina a linguagem – esta a lição que um brilhante juiz e intelectual já espraiava, aqui na província, corajosa e lucidamente, em plena ditadura. E, quando se começava a descortinar o fim desse período brutal de nossa história, no final daqueles tormentosos “anos setenta”, ele se dispôs a uma verdadeira guinada em sua vida: tendo chegado pouco antes ao Tribunal de Justiça, aposentou-se como desembargador e resolveu também encerrar sua profícua atividade acadêmica, como professor de Teoria Geral do Direito nos cursos de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e do então Instituto Ritter dos Reis. 

Devo fazer aqui um desvio, para uma necessária nota pessoal. Para assumir sua cátedra neste último curso, atendendo sugestão oportuna de seu filho Jairo, ele indicou o jovem Paulo Francisco Faria, recém egresso do Direito da UFRGS – uma das pessoas mais brilhantes daquela geração universitária; e que teve o gesto, temerário e generoso, de me incluir também no convite. Foi assim que nós dois iniciamos, muito verdes em anos e vida, pela mão do Bisol, nossa carreira no magistério jurídico, à qual eu me dediquei por mais de vinte anos. O Faria depois de um tempo, abandonou a área jurídica trocando-a pela Filosofia, onde trabalha ativamente ainda hoje, como professor e filósofo.

Por sua vez, “abandonado” o Direito, Bisol abraçou a comunicação social, com o mesmo sucesso. Como sabem seus contemporâneos, ele foi trabalhar no principal grupo de mídia de nosso estado, apresentando um programa de televisão, dirigido prioritariamente ao público feminino; além de outro radiofônico, e de uma coluna semanal de jornal.  O êxito alcançado nesta empreitada levou a um convite para outra aventura, esta mais arriscada ainda – o ingresso na vida político-partidária: aceitou o repto e, mercê da popularidade midiática grangeada – e de seus sobrados méritos, é claro – foi eleito deputado estadual pelo MDB, a legenda de oposição criada pelo próprio regime ditatorial, e que vinha em franco crescimento desde meados da década anterior.

A carreira política de Bisol, destacada como o fora a jurídica – mas mais acidentada – é de todos conhecida: eleito deputado estadual em 1982, quatro anos depois foi guindado pelo voto ao Senado Federal, já pela legenda do PMDB, como passou a se chamar, após a reforma partidária, o sucessor da sigla oposicionista criada pelos governantes militares. E malgrado sua atuação decisiva na Constituinte, e em duas CPI’s importantíssimas – que ajudaram a definir o quadro político no início da chamada Nova República – ou melhor dizendo, por isso mesmo, teve que enfrentar, ao final de seu mandato, uma sórdida campanha midiática, desencadeada pelos eternos donos do poder.

Mercê de sua costumeira bravura e argúcia, ele conseguiu superar estes percalços, inclusive mediante a obtenção judicial de reparação civil, imposta aos principais grupos de imprensa do país, pelas inúmeras ofensas que lhe foram assacadas no período, tão graves quanto infundadas. Retornou então a estes pagos, disposto a realizar o projeto de dedicar-se ao que mais gostava: ler e escrever. Não foi o que ocorreu, no entanto, como também se sabe.

A propósito, gostaria de relatar aqui outro episódio pessoal. No início de 1998, fomos convidados, nós dois, a participar como debatedores de um evento na UNISINOS e, na volta a Porto Alegre, ele me contou que fora procurado por Olívio Dutra e os coordenadores de sua campanha ao Piratini, então em preparação, para compor a chapa majoritária, como candidato ao Senado. Disse-me ele então que, “…apesar de lhes ter apresentado cinquenta e sete razões para não aceitar…”, terminou aceitando o convite – que, se era honroso, era também espinhoso, pois significava enfrentar candidatura adversária fortíssima, para não dizer imbatível, na época.

E se entregou àquela empreitada com entusiasmo e paixão – como de resto, era o seu jeito de fazer. E, da mesma forma, a aceitar o desafio – talvez o maior de sua vida – que veio com a vitória inesperada de Olívio: dirigir a Secretaria de Justiça e Segurança no “governo popular e democrático” instaurado a 1º de janeiro de 1999.  Ele conhecia perfeitamente os enormes obstáculos que teria de enfrentar para fazer com que aquele cargo deixasse de ser um mero “eufemismo político”, como dizia com ironia e propriedade, fazendo com que as corporações policiais, acostumadas desde sempre a atuar com autonomia quase plena, aderissem às diretrizes da política governamental aprovada nas urnas – visando, sobretudo, compatibilizar as ações de segurança pública e a estrita observância dos direitos da cidadania. Para tanto, tratou desde logo de formar uma equipe brava e competente, composta por técnicos de diferentes formações, além de integrantes das polícias civil e militar, peritos e agentes penitenciários, dispostos a se integrar de corpo e alma na consecução do plano de governo para a área.

Como Secretário, Bisol implantou novos métodos, inclusive de formação, além de controlar as corporações e isolar os membros viciados em antigas e predatórias práticas repressivas – para tanto se socorrendo do inteligente estratagema de buscar a colaboração dos ministérios públicos, federal e estadual, além dos órgãos correcionais do próprio Executivo. 

Apesar da maioria das políticas e medidas inovadoras implementadas por ele e sua equipe, não terem tido continuidade imediata nas administrações estaduais que se seguiram, lideradas por seus adversários, é certo que a semente humanista plantada por esse homem visionário, germinou nos corações e mentes de toda uma geração de servidores públicos e cidadãos – os quais, uma vez vencidos estes tempos tremendos que nos toca viver, saberão cultivá-las no solo fértil da democracia e da esperança.

José Paulo Bisol – presente!

(*) Defensor Público Estadual aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014). 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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