Opinião
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2 de outubro de 2017
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11:55

Da Educação: Inventário QUEERMUSEU através do Anedotário ÊME BÊ ÉLE (por André D. Pares)

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Sul 21
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Com 40 horas-aula por semana, tendo que fechar conceitos de 250 estudantes, entregar boletins no sábado (letivo!), com salário parcelado, e prevenindo outras doenças ao não mencionar as condições de trabalho, pus-me, no dever da profissão, a ver alguns vídeos sobre o encerramento abrupto da exposição Queermuseu, em cartaz no Santander Cultural, em Porto Alegre.

O objetivo era anotar a argumentação de quem quis fechar a exposição, pois os argumentos para frequentá-la conheço, uma vez que a visitei, li o folder, o material didático, o catálogo, e preparava a visita para uma série de estudantes. Então vi um vídeo, dois, sete: fiquei com o caderno em branco! Na verdade, até anotei uma frase do grupo que provocou a confusão que causou o fechamento: “a sociedade não foi consultada para saber se queria essa exposição!” (imaginando que o grupo autointitulado movimento conheça noções básicas de constituição de Estado para falar em modos de consulta à sociedade, pulemos essa parte).

Para ir ao que interessa, que é uma versão dos fatos desde uma prática na educação básica, começo rapidamente por mim (pois conheço a situação semelhante de colegas) para se entender por onde se descortina um inventário do Queermuseu através de um anedotário do ÊME BÊ ÉLE. Na condição de professor, sou um rude adorador da arte. Evidente, portanto, que não resta tempo nem dinheiro de frequentar os templos sagrados que são as salas de exposições, as salas de projeção, os teatros, as bibliotecas; tampouco de dar à devida adoração às pinturas, esculturas, instalações, aos longas, médias, curtas metragens, às peças, danças, concertos, aos livros, enciclopédias, dicionários.

Para combater este pecado original, alguns professores ainda cheios de fé levamos o que dispomos sobre arte para o lugar profano da sala de aula. Lá, bacantemente, obras, desejos, interpretações, invenções se entredevoram nos orgânicos e permanentes processos de formação de seres humanos. Então aqui é o caso de explicar didaticamente o que ocorre desde aí: tudo é humanidade quando a sensibilidade experencia a diferença (“Cartografia da diferença na arte brasileira” é, por acaso, o subtítulo da exposição Queermuseu). E é preciso confessar-afirmar que o mais interessante-emocionante, para quem trabalha com gente, é observar-participar do empoderamento do intelecto a partir dessas experiências que a sensibilidade tem com a diversidade. É desse salto humano que (ainda) vive a educação.

Pois é do campo da educação (básica e pública e laica – enquanto ainda a temos) que brota a arte espontânea – fruto juvenil de seus processos orgânicos de formação – do anedotário ême bê éle. Ao ignorarem por completo a existência do movimento que provocou o fechamento da exposição, apostam os adolescentes: “Museu Bem Loco”, “Museu Brasileiro Livre”, “Mulher Brasileira Lésbica”. Em seguida, ao descobrirem que a letra éle é de “livre” na sigla do movimento, de bate pronto uma adolescente cria a rima: “ÊME BÊ ÉLE livre nada, se fosse livre aceitava criança veada”. Sobre a obra de Bia Leite, ‘Travesti da lambada e deusa das águas’ (2013), que mostra o desenho de uma criança com a inscrição ‘criança veada’ (entre outras), não precisam de muita informação do catálogo para serem unânimes: é sobre bullying. E a aula vira uma sessão de confissões sobre preferências de gênero próprias e de amigos e familiares e seus dramas (e felicidades) acoplados.

E o anedotário vira de fato inventário quando um adolescente descobre a obra (detonada pelos iutubers do bem na confusão que provocaram no museu) ‘Tirésias Revela a vinda de São Sebastião’ (2016), de Thiago Martins de Melo. Sem ser preciso o jovem ler as palavras ‘iconografia’, ‘neobarroco’, ‘antropofágico’ na análise do catálogo, e muito menos ter consciência de que o curador sugere, no texto, que “é preciso ver o mundo das exposições através de um olhar atual” (p. 81), o menino, pleno do sentipensar que lhe é humanamente próprio aponta para a obra no livro e diz: fotografa aqui, sor, que isso é história! Não fosse o suficiente, um jovem evangélico conta que, pela internet, foi interpelado por seu pastor, perguntando como ele poderia ser favorável a uma obra que mostra Cristo cheio de braços (‘Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva, de Fernando Barril, 1996), ao que o jovem responde in box: pra mim, pastor, isso quer dizer que ele atende a todos, sem discriminação.

É possível que em função dessa evidente organicidade dos processos de aprendizagem, alguns grupos julguem a atenção pedagógica à diferença uma ideologia. Sua assepticidade preferirá ignorar os processos de construção de entendimento e respeito à diversidade e sobre eles colocar o véu hegemônico-midiático do rótulo da doutrinação. O problema é que a mistura quente e ao vivo e carregada de exploração e opressão sentida fora dela que se encontra na sala de aula pública já detonou os processos de consciência crítica autonomamente – esses assuntos estão lá há muito tempo, pessoal! A ressaca conservadora ganha ainda mais cara de desespero quando os adolescentes se divertem com o material do Queermuseu em meio a interpretações espontâneas das obras de dar dó às superinterpretações do grupo com o crachá do bem. Por um motivo básico: eles vivem diariamente, desde sempre, a discriminação ao diverso – por coincidência, o assunto da exposição.

O tiro pela culatra da censura mal ensaiada é definitivamente iluminado quando, na saída da aula, uma menina sarará, do alto de suas sandálias surradas de tanto pisar no barro para chegar no colégio, aponta para a criança veada do material didático aberto sobre uma mesa e diz: essa é fera!

***

André D. Pares é professor de filosofia, jornalista e mestre em Ciências da Comunicação.

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