Opinião
|
6 de agosto de 2016
|
03:45

Guaíba: Rio ou lago? (por Caio Lustosa)

Por
Sul 21
[email protected]
Guaíba: Rio ou lago? (por Caio Lustosa)
Guaíba: Rio ou lago? (por Caio Lustosa)

A classificação dos elementos geográficos do país, antes de ser uma questão semântica, obedece a preceitos técnicos, legais e até constitucionais, já que compete à União organizar, entre outros, serviços de “geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional (art.21, VI. e a cargo do IPGE”).

1. No caso do Guaíba, historicamente, a tentativa de classifica-lo como “lago” surgiu com a edição de dois decretos, expedidos pelos ex-governadores Amaral de Souza e Antônio Britto e adotada no “Atlas Ambiental de Porto Alegre” pelo geólogo Rualdo Menegat, nos anos 90 e, desde então, adotada acriticamente por certos comunicadores da mídia.

Todavia, semelhante classificação tem merecido forte contestação do meio científico, a exemplo de exaustivo parecer intitulado Rio Guaíba, datado de maio de 2009 com atualização em dezembro de 2012, dos professores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, Elírio Ernestino Toldo Jr. e Luiz Emílio Sá Brito de Almeida, que integram também o Centro de Estudos de Geologia Costeira, aliado a rejeição de vários setores da sociedade, entre os quais do navegador e maior conhecedor do complexo Guaíba/Lagoa dos Patos, Geraldo Knippling, em sua magnifica obra, que assevera “não concordar com essa modificação acadêmica defendida por burocratas, pelo simples fato de ser artificiosa, contra a realidade, contra a razão e contra a tradição, citando ainda a definição de Aurélio que diz “Rio é um curso de água natural que se desloca de um nível mais elevado para um nível mais baixo, aumentando progressivamente de volume, até desaguar no mar, num lago ou outro rio”. E conclui: “Ora o Guaíba é tudo isso. (Livro “O Guaíba e a Lagoa dos Patos”, 3a. ed. Palotti,2002).”

Ainda no plano hidrológico, cabe atentar para o parecer expedido pelo IBGE, que é conclusivo, depois de alinhar os fundamentos técnicos pertinentes, em manter as denominações de Rio Guaíba, Lagoa dos Patos e Lagoa Mirim.

2. De outra parte, cabe analisar o efeito que essa classificação como “lago” tem exercido sobre o Executivo, a Câmara Municipal, os técnicos das Secretarias de Obras e Planejamento, bem como favorecido os intentos da Construção Civil de ocupar a orla do Guaíba com mega-edifícios.

Forçoso é acenar para o Código Civil, tanto o atual como o anterior e que, classificando os bens públicos (art.99), considera como “de uso comum do povo, tais como RIOS, mares, estradas, ruas e praças. “E, na forma do art. 100, os torna “inalienáveis enquanto conservarem a sua classificação”.
Por sua vez, o Código Florestal (Lei 4771/65), em seu art.2°, alínea a, considera “de preservação permanente, pelos sob efeitos desta lei, as áreas “ao longo dos rios ou de qualquer curso d água…” cuja largura mínima seja de “.. 500 metros para cursos d’água que tenham largura superior a 200 metros”. Nessa condição enquadra-se a Guaíba e sua orla fluvial.

Desde os tempos coloniais, as Ordenações do Reino estabeleciam que, entre outros bens, “os rios sejam igualmente comum a toda gente” (Antônio de Pádua Nunes, “Do terreno reservado de 1867 à Faixa Florestal de 1965, ed.”. RT, 1977). Todas as Constituições da República e, a partir de 34, o Código de Águas consagraram o princípio de considerar as margens de rios bens de domínio público e de uso comum do povo, insuscetíveis de alienação e/ou apropriação privada. Tal entendimento está hoje consagrado na Súmula 479 do STF.

3. No caso concreto da ocupação da orla esquerda, principalmente, do Rio Guaíba, sucessivas administrações do Município de Porto Alegre, com respaldo do Legislativo, têm ignorado os mandamentos constitucionais e legais, incorrendo, a toda evidência, em crime de responsabilidade. No entanto, no âmbito do Judiciário, já existe precedente Jurisprudencial (caso do Bar Timbuka, na margem de Ipanema), que afirmou o domínio público sobre a orla. Lembre-se que o art.244 da Lei Orgânica de Porto Alegre estabelece: “Consideram-se de preservação permanente: V) margens do rio Guaíba”.

Em conclusão, a concepção do Guaíba como “lago”, o que o colocaria com margem de preservação reduzida, nos termos do Código Florestal, é um artificio que só favorece a especulação imobiliária, em detrimento do interesse público da cidadania.

.oOo.

Caio Lustosa é ambientalista e primeiro vereador eleito do Brasil voltado para as causas ambientais

O Sul21 reserva este espaço para seus leitores. Envie sua colaboração para o e-mail [email protected], com nome e profissão.

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do jornal, sendo de inteira responsabilidade de seus autores.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora