Opinião
|
26 de agosto de 2010
|
06:00

Toda fera é infinitamente delicada

Por
Sul 21
[email protected]

Por Charlles Campos.

De dois anos para cá morreram 650 animais no zoológico de Goiânia. O zoo de Goiânia era um dos meus lugares preferidos. Ia lá com um livro, estendia uma toalha debaixo de um pé de jacarandá de frente à ilha dos macacos, e me envolvia com a leitura e a contemplação da paisagem. Muitos outros leitores desocupados seguiam o mesmo ritual. Era bom saber que a cidade em volta se compadecia de seus infortúnios cotidianos, e eu me regalava a simular a vida de um nobre culto do período do império. Fazia esses regalos durante minhas férias. O zoo de Goiânia situava-se numa das áreas nobres da cidade, cercado de prédios residenciais em que cada apartamento custa um milhão de reais. E tinha uma área verde inigualável, com árvores centenárias, muita água represada, muito ar, sol, silêncio. Chegava a ser melhor que minhas visitas aos cemitérios tradicionais, e quase tão bom quanto as descobertas surpreendentes de aprazíveis igrejinhas barrocas quando me lançava em minhas andanças pelo interior de Minas.

Hoje o zoo de Goiânia tem pouca diferença de um cemitério, mas sem a áurea de indagação resignada das impossibilidades de retorno que os cemitérios tem. O espaço está vazio, o mato seco dominando todo campo da visão, funcionários uniformizados com a cara de “para onde eles vão nos remanejar?”. A incrível quantidade de animais mortos foi empalhada e destinada aos museus. Lembro agora, que da última vez em que estive lá, um pouco antes da notícia de que aquilo se trasformara em um campo de extermínio vazar para a imprensa, fiquei horas olhando o velho chimpanzé solitário, afundado no maior tédio em seu largo de cimento quatro metros abaixo do muro das visitas. Acenei para o velho, fale-lhe em voz alta para que me ouvisse. Ele, um dado momento, parou de remoer o galho que tinha nas mãos, e me estendeu um aceno cansado, por pura educação. Não precisava ser veterinário para saber que aquele abandono estava errado. Só a sensibilidade latente da angústia dava a real premonição de que o velho macaco representava uma sucessão de doenças do espírito e da carne que resultaria em um escândalo abafado. Pois os administradores do zoo de Goiânia são o tipo de raciocinadores que acreditam que os animais não tem espírito passível de sofrimento. Aliás, os administradores do zoo de Goiânia são raciocinadores que só possuem um único e bem estabelecido pensamento: que são agraciados em estarem naquela função, por serem apanágios diretos de políticos da prefeitura e do governo. Aquele olhar de desesperança e agressão regurgitada que se dirigia ao vazio_ nunca a mim, sequer teria dado pela minha presença se não o tivesse chamado várias vezes_ que o chimpanzé João tinha, não representava mais a esses administradores do que o modelo suficientemente coerente que tinham que oferecer, vez ou outra, para um público que justificava seus altos salários.

Dois anos. 650 animais mortos de causas desconhecidas. E o zoo de Goiânia só foi fechado há seis meses. E o diretor do zoo de Goiânia só foi afastado do cargo na interdição. Antes, durante esse período de chacina sincronizada, o diretor do zoo de Goiânia apareceu por várias vezes em órgãos da imprensa, de terno, a cara jovem protocolar e escorregadia, sendo chamado ora de Doutor, ora de Senhor. Nenhum jornalista foi mais contundente nas perguntas óbvias que o morno e absorto “a que o senhor atribui esses acidentes?”. Um jornalista da TV Cultura chegou a trocar farpas no ar contra aqueles populares ignorantes que dirigiam suspeitas mais aventadas contra o diretor do zoo de Goiânia.

Toda fera é infinitamente delicada, escreveu Adorno em seu Dialética do Esclarecimento. A girafa cujos intestinos estouraram de salmonela. O lobo guará que morreu de tétano. O jaguar que morreu envenenado. O velho João que sucumbiu à enorme tristeza. O bizão que não resistiu ao cancro. As araras em massa intoxicadas pelo vírus. Todos infinitamente delicados e indefesos.

Os prédios em torno, altos apartamentos de luxo, não reportaram a indignação de nenhum morador, a testemunha ocasional dos crimes. Diante um montante de mortes, a imprensa de Goiás não tratou o caso com o peso que ele poderia ter. Foi mais um dos juvenis desmanzelos do Estado, essa criança faceira impossível com seus humores traquinas.

Há dois meses, na cidade de São Paulo, uma mulher foi assaltada dentro de uma delegacia. Nenhum dos policiais moveu um dedo para fazer alguma coisa em prol da mulher. A imprensa, mais uma vez, apenas reportou o fato, ordinariamente. Ontem, no blog do Milton, o Milton nos revelou que uma tal de Célia Ribeiro, jornalista do Zero Hora, mostrou a que veio em sua função perdida de formadora de opinião. Para ela é um absurdo que as funcionárias de um shopping escovem os dentes nos mesmos banheiros reservados às donas distintas.

Assim afunda nosso humanismo, nossa inteligência, nossa representação, nossa capacidade de indignação. Cada animal morto no zoo de Goiânia é um prego a mais no caixão onde se deita o que antes nos distinguia como seres portadores de espírito. O olhar desviante do chimpanzé João nos define melhor agora, com sua infinita delicadeza.


Leia também