Coronavírus
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10 de setembro de 2022
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07:13

Novas vacinas, aprendizados e projeções: Qual o possível futuro da covid-19?

Por
Luciano Velleda
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Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Há exatos dois anos e meio, em março de 2020, o Sars-Cov-2 chegava ao Rio Grande do Sul. Desde então, foram 2,7 milhões de casos confirmados e quase 41 mil mortes. Quando os primeiros casos de covid-19 foram notificados no Estado, o estrago causado por um vírus então desconhecido vinha sendo acompanhado com espanto. Primeiro na China, com informações truncadas, e logo depois na Europa, em países como Itália, Espanha e França. As centenas de mortes diárias indicavam que a humanidade estaria diante de um grave momento histórico, ainda que não se soubesse exatamente o que viria a seguir.

Agora tudo mudou. Vacinas eficazes foram desenvolvidas em tempo recorde e mudaram – para melhor – o curso da pandemia. Profissionais de saúde foram obrigados a aprender – e aprenderam no limite da urgência a lidar com pacientes acometidos por uma doença desconhecida. Famílias sofreram e ainda sofrem a dor da perda de parentes e amigos, além da crise econômica agravada durante o período. Mas a vida, aos poucos, é retomada.

Se é verdade que as cicatrizes da maior crise sanitária dos últimos 100 anos provavelmente serão perenes individual e coletivamente, ao menos hoje se pode afirmar, com alguma certeza, que o pior passou. Mais do que isso, é provável que não voltemos a assistir as tenebrosas cenas de pessoas morrendo por falta de oxigênio ou leito de UTI. Ao menos essa é a projeção de médicos e gestores de saúde.

Paulo Gewehr, supervisor médico e infectologista do Hospital Moinhos de Vento, diz ainda ser cedo para prever o tão aguardado fim da pandemia. Como exemplo, cita o caso da pandemia de H1N1, em 2009, cujo vírus segue circulando entre a população, porém de forma mais branda após sofrer mutações e com vacinas atualizadas constantemente. O vírus H1N1 hoje se tornou endêmico, circula todo ano, mas com impacto muito menor do que em 2009. O destino do Sar-Cov-2 pode ser o mesmo.

“Se a gente analisar o coronavírus, neste momento, a previsão maior é de que ele se torne uma endemia, ou seja, todo ano a gente vai ter o coronavírus e as suas variantes circulando no mundo inteiro que nem o vírus da gripe. Talvez essas variantes percam a capacidade de fazer doença grave e vão se tornar muito mais próximas de um resfriado comum, inclusive como os outros ‘primos’ do coronavírus que sempre causaram resfriado na gente. Talvez a covid-19 vá nessa direção e aí a gente não vai precisar de vacina porque vai ser só um resfriado. Mas isso a gente precisa acompanhar a evolução”, acredita, acrescentando que o novo coronavírus sofre mutações rapidamente.

Durante a pandemia, as mutações mais importantes elevaram a capacidade de transmissão do vírus e algumas aumentaram a gravidade da doença. Atualmente, de modo geral, o coronavírus é mais transmissível, mas graças às vacinas é menos grave.  Entretanto, Gewehr pondera que se surgir uma nova variante que volte a fazer com que o vírus fique mais grave, então o problema estará posto novamente.

“Essa é a história dos vírus influenza que vem desde muitas décadas, talvez séculos nos acompanhando, e que de tempos em tempos acaba adquirindo uma mutação e se torna mais violento, mais patogênico e causa as grandes pandemias com mortalidade, como a gripe espanhola em 1918, a de 2019 e a gripe suína”, explica.

Colabora para a capacidade atual de disseminação dos vírus as pessoas cruzarem o mundo em poucas horas, ao contrário de outrora, quando em viagens de navio levavam dias para ir de um continente a outro.

Especialistas acreditam que Brasil não deverá enfrentar novamente superlotação de hospitais devido a covid-19. Foto: Alex Pazuello/Semcom

O professor de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alexandre Zavascki também é otimista quanto ao futuro da covid-19. O atual cenário é de ampla melhora, graças às vacinas e, ele acrescenta, às múltiplas infecções nas muitas ondas vividas durante a crise sanitária.

“Hoje a covid ficou uma doença comum, afetando todas as faixas etárias da população, mas com um quadro clínico já há muito distinto do que foi um tempo atrás”, afirma. O infectologista diz não haver motivos para pensar que o novo coronavírus deixará de existir. O que pode acontecer é a doença ficar mais leve ao longo do tempo.

“O SarsCov-2 não deve ir embora, ele veio pra ficar. Agora, se um dia ele vai ficar tão leve ao ponto de não afetar nem pessoas imunocomprometidas, que bom, é o que a gente espera”, analisa Zavascki, lembrando de outros vírus descobertos há 50 anos e que seguem entre nós causando não mais que um resfriado.

Apesar do momento favorável, alguns grupos seguem tendo mais riscos de complicações, como os idosos e os imunossuprimidos – pacientes em tratamento de doenças em que é necessário baixar a imunidade.

Depois de sofrer a mais recente onda causada pela variante ômicron e logo em seguida suas subvariantes, Zavascki destaca como vantagem no atual momento não haver no horizonte de Europa, Ásia ou Estados Unidos uma nova variante capaz de prevalecer sobre a ômicron e escapar da imunidade das vacinas. “Até o momento, felizmente, e a gente não pode dizer que não vai aparecer, mas até o momento não apareceu (uma nova variante). Mas é uma possibilidade a longo prazo.”

De qualquer forma, ele acredita que não voltaremos a enfrentar momentos semelhantes aos vividos no final de 2020 e começo de 2021, quando a variante gama, surgida em Manaus, causou o colapso do sistema hospitalar. Para o professor de medicina da UFRGS, mesmo que apareça uma nova variante, com exceção dos grupos ainda em maior risco, a população em geral está imunologicamente mais preparada, além do aprendizado dos profissionais de saúde em tratar a doença.

“Não espero um impacto pandêmico de uma nova variante com repercussões catastróficas em nível hospitalar ou em mortes”, projeta. Ele explica que, hoje em dia, de modo geral, a covid-19 tem atingido menos os pulmões, o problema mais grave causado pela doença. A infecção tem se concentrado mais na dor de garganta e no nariz entupido, as vias aéreas superiores, poupando os pulmões.

A projeção de futuro dos infectologistas Zavascki e Gewehr é compartilhada pelo diretor-presidente do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), Cláudio Oliveira. Ele conta que os momentos mais críticos ficaram para trás e hoje o GHC consegue atender as outras enfermidades, dando vazão aos cuidados represados.

O gestor lembra que a H1N1 também obrigou o hospital a paralisar sua estrutura para dar conta daquele vírus que era novo. Passados mais de 10 anos, atualmente se convive com o H1N1. Virou rotina. “O caminho da covid-19 será o mesmo, ao meu ver”, acredita.

Oliveira diz que os pacientes internados hoje com covid-19 são aqueles que têm comorbidades e destaca o treinamento que a equipe do hospital adquiriu para lidar com a doença, inserindo-a no rol das enfermidades que vão acometer pacientes. “Ela vai se tornando comum, como o quê fazer, qual o procedimento, os medicamentos que precisa. Hoje se sabe muito mais do que lá em março de 2020”, explica.

O diretor-presidente do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) acredita ser difícil que se volte a momentos dramáticos de falta de leitos, principalmente por hoje haver as vacinas.

“Estamos preparados. Caso haja um momento como em 2021, temos as instalações. O único movimento que precisaria ser feito é combinar com as secretarias municipal e estadual de Saúde o cancelamento das cirurgias eletivas e diminuir o ritmo do hospital novamente para ter espaço, só isso, mas as áreas destinadas teríamos como colocar tudo em ordem e, de certa forma, até em pouco tempo. Mas não é o que está parecendo. A vacinação tem sido efetiva.”

Sob enorme pressão, profissionais de saúde aprenderam a lidar com a covid-19. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Há 18 anos trabalhando como intensivista nas UTIs de Porto Alegre, Fabiano Nagel também acredita que a covid-19 veio para se juntar a outras doenças virais que costumam afetar as pessoas em regime sazonal.

“Essa doença vai nos acompanhar. Se eventualmente ocorrer mutações com variantes mais virulenta ou menos responsivas à base vacinal, isso pode acontecer com qualquer doença. Pode ser que ano que vem surja uma variante da influenza que não responda às vacinas e ceife milhares de vida. Isso é uma imponderabilidade”, reflete.

Com a experiência de quem vive a rotina de uma UTI, sempre atuando no limiar entre a vida e a morte dos pacientes, Nagel conta que o conhecimento dele e de seus colegas sobre a doença e as formas de cuidar dos doentes com covid-19 cresceu numa velocidade impressionante. Um aprendizado forjado nos momentos mais dramáticos da pandemia.

“Hoje temos um horizonte de opções terapêuticas com eficácia e um horizonte de opções terapêuticas definidamente sem utilidade. Na minha vida, sou formado desde 1998, é algo totalmente único. Certamente isso nos deu um know-how para novas eventualidades. Pelo menos os profissionais de saúde não serão pegos despreparados se alguma coisa da mesma magnitude ocorrer nos próximos anos”, afirma o intensivista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e do Grupo Hospitalar Conceição.

Apesar de todo o aprendizado, Nagel diz que ainda há muito a aprender com a doença, principalmente com a chamada “covid longa”, sintomas variados e permanentes que afetam uma parte das pessoas infectadas. Ele pontua que a covid longa tem várias implicações, como alterações cognitivas e de humor, e não sabe o quanto isso pode favorecer o desenvolvimento de infecções secundárias por alterações pulmonares.

“Só esse panorama do que vai acontecer com os pacientes com formas longas da covid já é um campo de pesquisa fenomenal. E do ponto de vista de doença crítica, vamos continuar aprendendo, porque uma série de publicações ainda vão ser feitas relacionadas aos manejos que foram implementados com sucesso ou sem sucesso durante a pandemia”, explica.

Entre os exemplos de sucesso, ele cita a circulação extra-corpórea com membrana de oxigenação (EXMO). “Evoluímos 15 anos em dois, do ponto de vista de tecnologia e de know-how para utilização. Só isso já é um avanço fenomenal”, afirma. E completa: “Com certeza vamos reforçar o nosso conhecimento e inclusive de terapias para os pacientes do futuro”.

Zavascki, por sua vez, distingue o aprendizado pessoal e profissional do aprendizado científico com a pandemia. Em março de 2020, no começo da crise sanitária, ele lembra da sensação de estar se preparando para a chegada de um inimigo completamente desconhecido, do qual só tinha ouvido falar. “Era uma situação muito diferente, única para todos os médicos. Nenhuma geração de médicos que naquele momento estava na linha de frente sabia o que ia acontecer”, analisa.

Outro ponto de vista é o avanço das pesquisas científicas. O infectologista e professor de medicina da UFRGS enfatiza a literatura médica abundante desenvolvida nestes dois anos sobre como lidar com a covid-19. Todavia, diz haver perguntas e melhorias para ainda serem pesquisadas, principalmente com relação ao desenvolvimento de uma vacina capaz de evitar a infecção e novos tratamentos para aqueles pacientes que ainda evoluem para quadros graves da doença.

Com a experiência de quem atuou no gerenciamento hospitalar, Zavascki lembra da importância que foi o Rio Grande do Sul ter conseguido “travar” o avanço do vírus no começo da crise, medida que possibilitou a preparação do sistema de saúde e a busca por equipamentos de proteção individual (EPIs). Dois anos depois, muitos podem não lembrar, mas ele faz questão de recordar do momento em que foi preciso monitorar um navio vindo da China trazendo estoque de máscaras. Ou de quando os Estados Unidos parou um avião para obter os EPIs.

“Aquele tempo que a gente teve no início foi muito acertado. Nos permitiu nos prepararmos para atender e acredito que salvamos muitas vidas naquele momento. É muito fácil criticar hoje, principalmente quem não viveu o que a gente viveu lá”, comenta.

Vacinação em massa foi fundamental para a retomar com mais segurança a vida das cidades. Foto: Luiza Castro/Sul21

Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), destaca que nunca se viu, de forma tão clara, um vírus novo se estabelecer no planeta. E diante da novidade, um longo processo de aprendizado teve início. “Isso reflete o que o mundo está tendo. Qualquer coisa é global e crises infecciosas dificilmente não vão para outras partes. É o mundo globalizado e ninguém vai parar de viajar.”

Responsável pelos testes da vacina AstraZeneca no RS, Sprinz celebra que os imunizantes cumpriram seu papel. Sempre se disse que o grande benefício das vacinas seria evitar a progressão para as formas mais graves e isso se tornou realidade. De “lambuja”, ele fala, se viu que as pessoas vacinadas transmitiam menos a doença e ficavam menos tempo doentes. Para alcançar outro patamar com os imunizantes, o próximo passo seria desenvolver uma vacina capaz de impedir a infecção.

“Não sei se, em algum momento, vai ter uma vacina que seja fantástica e que previna a contaminação, não sei, mas acho que as próximas vacinas conseguirão estimular de forma diferente o sistema imunológico”, projeta.

As vacinas às quais Sprinz se refere, e que podem estimular mais o sistema imunológico, são as de subunidades proteicas. O infectolgista cita três delas em desenvolvimento: a Clover, a Novavax e a do laboratório Medicago, do Canadá, essa testada no hospital Moinhos de Vento. “São três vacinas de subunidades proteicas e, teoricamente, ainda mais seguras. A que a gente testou, que é a Clover, continua com atividade contra a ômicron”, afirma.

Paulo Gewehr, supervisor médico e infectologista do Hospital Moinhos de Vento, também acredita que em breve o Brasil terá vacinas atualizadas para a variante ômicron, hoje predominante no mundo. Antes disso, no entanto, ele alerta para a queda da cobertura vacinal que já tem acontecido.

“Isso nos preocupa sempre porque foi graças à cobertura vacinal dos grupos de maior risco que conseguimos reduzir o impacto mais grave da doença na população. A gente observa isso com muita precaução porque não sabemos o que vai acontecer se a população baixar a cobertura vacinal”, salienta, se referindo principalmente à terceira e quarta doses da vacina.

A mesma preocupação ele menciona sobre o público infantil, cuja adesão está muito abaixo do necessário. “Se novas variantes diminuírem o impacto na população, talvez a gente vá atualizar a estratégia de vacinação e continuar vacinando os grupos de maior risco até que a gente tenha maior segurança para, talvez, deixar a vacinação uma vez por ano ou até mesmo suspender a vacinação contra a covid. Isso são cenários possíveis no futuro”, analisa

Gewehr comenta que a crise do novo coronavírus deu força no Brasil ao movimento antivacina, tanto com relação aos imunizantes contra a covid-19 como também para as outras doenças. O resultado é a queda constante da cobertura vacinal, que já vinha ocorrendo nos anos anteriores. “Muitas pessoas ficaram com desconfiança em relação às vacinas de calendário, que antes não havia. Isso pode ficar como um legado negativo da pandemia da covid.”

Além das possíveis novas vacinas, alguns medicamentos antivirais também se apresentam como importantes para o presente e o futuro do controle da doença. Ao menos três já foram aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso no Brasil. São eles: o Paxlovid, Remdesivir e Molnupiravir.

O Remdesivir, com aplicação intravenosa, tem sido usado nos hospitais da rede privada de Porto Alegre. É indicado para os primeiros dias dos sintomas e diminui a chance do paciente evoluir para as formas mais graves da covid. Os outros dois medicamentos, com uso via oral, embora aprovados há alguns meses, sua disponibilidade ainda enfrenta gargalos tanto na rede pública quanto privada.

Depois de tanta coisa vivida em dois anos e meio de pandemia, o infectologista destaca a necessidade de haver investimento público e privado no sistema de saúde. Diz que a pandemia mostrou que sistemas de saúde melhor preparados fizeram com que a covid-19 tivesse impacto menor na sua população.

“Fazer investimento no nosso sistema de saúde vai melhorar o atendimento não só pra covid e outras doenças que a gente já tem, mas também para uma possível pandemia do futuro. Não é saber se vai acontecer uma nova pandemia no futuro. Vai acontecer. Qual pandemia? A gente não sabe, provavelmente de um vírus respiratório. Preparar nosso sistema de saúde é fundamental, melhorar o acesso ao sistema de saúde e a qualificação dos profissionais de saúde também”, afirma.

A comunicação clara e objetiva é outro aprendizado, destacado por Gewehr, que precisa ser obtido a partir dos erros cometidos na pandemia do novo coronavírus. A desinformação, as fake news, o movimento anti-vacina, tudo isso custou vidas, lamenta o infectologista.

“Pessoas acreditaram em notícias falsas, não se protegeram, não tomaram a vacina e acabaram ficando com covid grave e falecendo. Traz muita tristeza para o profissional de saúde saber que era uma informação simples, mas que por algum motivo não ganhou da informação falsa para aquele paciente. E a gente não conseguiu protegê-lo com uma informação que não custa nada, mas tem um valor enorme para aquele paciente e custou uma vida.”

Aprender com os erros cometidos e seguir apostando na evolução da pesquisa científica para novas vacinas e medicamentos é o caminho apontado pelos médicos. Enquanto isso, Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, diz que a hora para desfrutar das conquistas obtidas chegou.

“Atingimos até mais do que o suficiente pra gente relaxar um pouco. A gente queria vacinação maciça e conseguimos. Se a gente tivesse mais os antivirais, seria a garantia da garantia. A vida deve seguir em frente.”


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