Entrevistas
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4 de junho de 2022
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09:18

Fim da emergência? ‘Estamos vivendo um desmonte da saúde pública em Porto Alegre’

Por
Marco Weissheimer
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Carolina Santana Krieger:
Carolina Santana Krieger: "temos muitos problemas de saúde pública que estão sendo negligenciados". (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

No dia 22 de maio, o governo federal publicou uma portaria declarando o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), causada pela pandemia da covid-19 no Brasil. No mesmo período, diversas regiões do país voltaram a apresentar crescimento no número dos casos de contágio por covid. A letalidade causada por esse aumento decaiu expressivamente por conta da vacinação. No entanto, muitas cidades começaram a reviver problemas de lotação de emergências e de UTIs por conta da combinação de uma série de fatores adversos, como a chegada de um frio rigoroso, o crescimento de outras enfermidades, como é o caso da dengue, da hepatite infantil e das doenças respiratórias de inverno. Porto Alegre é uma das cidades que está vivendo esse quadro, agravado por um processo de privatização nos últimos anos que reduziu o número de agentes comunitários na rede de atenção primária e de equipamentos de saúde de fácil acesso à população.

“Estamos em uma iminente quarta onda da pandemia de covid-19, com o agravamento de outras enfermidades como a dengue e a hepatite infantil. Em Porto Alegre, já estamos com mais de dois mil casos de dengue notificados, com mais de 40 óbitos no Rio Grande do Sul. E essa realidade ocorre em meio a um processo de desmonte da saúde pública em Porto Alegre. Cerca de 80% da rede de saúde pública de Porto Alegre foi privatizada nos últimos anos”, assinala a enfermeira Carolina Santana Krieger, que trabalha há vinte anos no sistema de atenção básica de saúde na capital gaúcha. Ela cita o caso da dengue para ilustrar como esse processo de desmonte incide na vida cotidiana.A dengue está muito ligada com a questão da prevenção e da promoção de saúde. No momento em que a Prefeitura decidiu ficar só com 351 agentes comunitários para a Porto Alegre inteira e com só 78 agentes comunitários para combate a endemias, estava claro que não iria dar conta”.

Especialista em Saúde Coletiva e da Família, e em Gestão Clínica do Cuidado, com Mestrado Saúde Coletiva, Carolina Krieger avalia, em entrevista ao Sul21 a situação da saúde em Porto Alegre agora que, supostamente, não vivemos mais um quadro de emergência sanitária. Ela aponta alguns dos impactos da privatização da rede de saúde pública nos serviços prestados à população e alerta para o processo de desmonte da Atenção Primária, que é a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS)

Sul21: Qual sua avaliação sobre a situação geral do sistema de saúde pública em Porto Alegre, neste momento chamado por alguns de pós-pandemia, mas que vem registrando vários problemas adicionais para além da covid?

Carolina Krieger: Estamos em uma iminente quarta onda da pandemia de covid-19. Os números mostram isso claramente. De acordo com o Infogripe, da Fiocruz, nas duas últimas semanas tivemos um incremento de 84% dos casos positivos em Porto Alegre. E ainda temos casos subnotificados. A gente não sabe se as cepas do vírus que estão circulando agora são subvariantes da ômicron. Estamos andando às cegas em relação a isso, nos movendo em um cenário desconhecido. Somado a esse quadro, temos um índice de vacinação da gripe muito baixo. Até essa semana, tínhamos atingido 47% de vacinação entre os grupos considerados prioritários, o que é um número muito baixo. Deveríamos atingir 90%. O resultado da soma desses fatores vai aparecer na emergência, na atenção básica e, principalmente, nos hospitais.

Essa realidade ocorre em meio a um processo de desmonte da saúde pública em Porto Alegre. Há algumas semanas, tivemos a venda para uma construtora do terreno onde estava localizado o Hospital Álvaro Alvim, que estava orçado em R$ 33 milhões e foi vendido por aproximadamente 17 milhões. O Beneficiência Portuguesa encolheu muito o número de leitos. O Parque Belém, que era uma referência para a zona sul, está fechado. Também tivemos o fechamento, para pacientes externos, da pediatria da Santa Casa (só aceita pacientes regulados), e o fechamento da Materno-Infantil do Hospital São Lucas. Tudo isso ajudou a sobrecarregar o sistema de saúde, em meio à chegada de uma quarta onda da covid e ao agravamento de outras doenças como a hepatite infantil e a dengue. Em Porto Alegre, já estamos com mais de dois mil casos de dengue notificados, com mais de 40 óbitos no Rio Grande do Sul.

“Em Porto Alegre, já estamos com mais de dois mil casos de dengue notificados”. (Foto: Cristine Rochol/PMPA)

Sul21: Esse aumento da dengue não parece ter ocorrido por acaso…

Carolina Krieger: A dengue está muito ligada com a questão da prevenção e da promoção de saúde. No momento em que a Prefeitura decidiu ficar só com 351 agentes comunitários para a Porto Alegre inteira e com só 78 agentes comunitários para combate a endemias, estava claro que não iria dar conta. Não tem como dar conta. É a tragédia anunciada. O Programa Nacional de Atenção Básica prevê que é necessário um agente comunitário para cada 750 pessoas. O Posto Modelo, por exemplo, atende cerca de 120 mil pessoas, que estão cadastradas nele, e tem apenas sete agentes comunitários. Não tem como dar conta. Essa unidade atende muitas áreas de vulnerabilidade como a Vila Planetário e o Condomínio Princesa Isabel, que são muito populosos. 

Os problemas de saúde pública de Porto Alegre poderiam ser resolvidos de maneira mais eficiente, mais econômica e mais resolutiva se fossem pautados a partir da perspectiva da prevenção e da promoção da saúde. Se não trabalhamos com esse foco, a resolução dos problemas acaba se tornando mais cara. Os governos precisam olhar mais para a questão da saúde coletiva. Vimos recentemente pessoas – entre elas, o próprio presidente da República – dizendo que tinham o direito de não tomar vacina. Na medida em que vivemos em sociedade, quando o exercício de um suposto direito individual acaba colocando a vida de outras pessoas em risco, ele deixa de ser um direito. Quando um gestor fala contra a vacina, ele está dando um exemplo péssimo para as pessoas. É por isso que temos tantas cepas e tantas ondas de covid.

Sul21: Em que medida, a varíola do macaco pode se agregar a esse quadro de preocupações em Porto Alegre?

Carolina Krieger: Sim, além de tudo isso que mencionei, ainda temos o caso da varíola dos macacos, que é diferente da varíola que foi declarada erradicada em nível mundial, em 1980, pela Organização Mundial da Saúde. Nós não temos a vacina pronta hoje. A última vacinação contra varíola no Brasil ocorreu em 1973. Estima-se que essa vacina seria eficiente contra a varíola do macaco em 85% dos casos. Cabe lembrar que a varíola dos macacos é endêmica na África. Parece que ela se tornou preocupante, em nível mundial, na medida em que ela vai para a Europa. Nós já temos 500 casos notificados no mundo inteiro, em todos os continentes. Já temos um caso notificado na Argentina e temos três casos sendo investigados no Brasil, um deles em Porto Alegre. 

Então, temos muitos problemas de saúde pública que estão sendo negligenciados. O quadro que está batendo à nossa porta na área da saúde exige que seja tomada uma atitude. A própria vacinação caminha a passos lentos. Em Porto Alegre, estamos vivendo um processo de desmonte da Atenção Primária, que é a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS). Se a pessoa precisa de uma especialidade, ela tem que ser regulada pela Atenção Primária. Se eu precisar de uma cirurgia eletiva, que não seja de urgência, isso também passa pela Atenção Primária, que responde por 80% de todos os casos que chegam. Mas ela não está sendo valorizada como deveria. 

Posto Modelo atende uma população de cerca de 120 mil pessoas. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

Sul21: Qual é a dimensão atual desse processo de privatização da Atenção Primária à Saúde em Porto Alegre?

Carolina Krieger: A privatização da Atenção Primária em Porto Alegre iniciou em 2019. Porto Alegre tem hoje mais de cem postos privatizados. Essas unidades foram transformadas em diferentes CNPJs. Hoje, se tu vai em um posto que é administrado pelo hospital “x” e depois tu vai em outro que é administrado pelo hospital “y”, vai ter que lidar com diferentes condutas e procedimentos. Os fluxogramas de atendimento não são uniformes, o que acaba gerando uma insegurança muito grande para a população.

Nós temos hoje quatro UPAs na cidade. A UPA Moacyr Scliar é administrada pelo GHC (Grupo Hospitalar Conceição), o PACS (Pronto Atendimento da Cruzeiro do Sul) ainda é municipalizado, mas o pronto atendimento de saúde mental foi privatizado e entregue ao Hospital São Lucas da PUC. As outras duas UPAs, a da Bom Jesus e a da Lomba do Pinheiro foram privatizadas e entregues a uma empresa de São Paulo. Todo esse processo vai na contramão do que os MPs Estadual, Federal e de Contas firmaram em 2007 com a Prefeitura para evitar a precarização dos serviços de saúde. Antes disso, tínhamos um troca-troca de OSs (Organizações Sociais) que resultava em demissões constantes e fechamentos de postos, entre outros problemas. 

Esse Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2007 tinha como objetivo criar uma opção definitiva. Em 2011 foi criado o Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (Imesf), uma fundação pública de direito privado, com essa finalidade, o que também acabou sendo desmontado no governo Marchezan. No dia 7 de dezembro de 2020, na troca de gestão, o governo Marchezan demitiu 552 profissionais que ainda restavam do Imesf. Antes disso, eles já vinham fazendo todo um assédio para que as pessoas saíssem, dizendo que se não saíssem não iriam receber as verbas. Muitos saíram. E, realmente, quem foi demitido em 2020, não recebeu as verbas até hoje.

Cerca de 80% da rede de saúde pública de Porto Alegre foi privatizada nos últimos anos. Com a demissão dos profissionais do Imesf, essa privatização se aprofundou. Agora, estão avançando sobre os postos municipalizados. Já foi privatizado, por exemplo, o do Beco do Adelar, que contava com 32 profissionais e, depois da privatização, passou a contar com 12. Privatização é isso. 

“Com demissão dos profissionais do Imesf, privatização se aprofundou”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

Sul21: Você falou da iminência da chegada de uma quarta onda da covid. Há uma percepção na sociedade de que o pior da pandemia já passou e, com isso, as medidas de prevenção, como o uso de máscaras, foram relaxadas. Temos um crescimento do números de contágios, mas com menor mortalidade. Na tua avaliação, em que medida, esse cenário representa uma ameaça para a saúde coletiva da população?

Carolina Krieger: Nós temos, sim, uma boa cobertura vacinal no que diz respeito à primeira dose. Temos mais de 96% da população vacinada com a primeira dose. Quanto à segunda dose, a situação já é diferente. Em Porto Alegre, mais de 30 mil crianças estão com suas doses em atraso. Há uma falsa sensação de que se eu estou imunizada eu não pego. Pega, sim, pois há muitas variantes circulando. A vacina é do vírus original. Você pode se contaminar com a variante delta, com a gama, com a ômicron ou com as subvariantes da ômicron. Elas são menos nocivas, sim. Mas para uma pessoa que é imunocomprometida, ou de extremos de idade, podem ocorrer complicações sérias, sim. A vacinação está ocorrendo a partir dos 5 anos. Então,as crianças abaixo de cinco anos não estão imunizadas. 

Se eu não me cuido, eu represento um perigo para as demais pessoas. Esse incremento nas contaminações que estamos vendo agora, por mais que não seja nas formas mais severas de covid, traz riscos sim. É uma doença nova e sobre a qual ainda desconhecemos muitas coisas. Temos a covid longa e todas as implicações do pós-covid, com sequelas respiratórias, neurológicas e sociais. Em Porto Alegre temos somente dois serviços que atendem pós-covid, que é o IAPI e o Hospital de Clínicas. Isso. para uma capital como a nossa, não é nada.

No início da pandemia, houve quem achasse que sairíamos melhor de todo esse processo. Mas parece que a gente não aprendeu nada. Só hoje (1° de junho, dia de realização da entrevista) foram montadas as tendas para coleta (para teste), já em meio a um inverno rigoroso. É a segunda onda de frio que estamos enfrentando nas últimas semanas. Sabemos que isso vai forçar o sistema de saúde, as emergências, as unidades básicas, os hospitais.Os profissionais da saúde sabem como as enfermidades se comportam em cada estação. Cabe ao gestor fazer planejamento e isso está faltando. Não é preciso ter um incremento imenso de casos para se dar conta de que é preciso contar com leitos, infraestrutura e profissionais para enfrentar o aumento da pressão sobre o sistema. 

Infelizmente já passamos de 670 mil vidas perdidas, fora a possibilidade de esse dado estar subnotificado em cerca de 15%. Quando a pandemia começou, tinha gente que achava que só os profissionais de saúde e pessoas mais idosas pegaria a covid. Hoje,quem é que não teve alguém de sua família ou de suas relações contaminado, muitas vezes de modo grave.

Sul21: Há algum protocolo especial sendo pensado aqui em Porto Alegre para lidar com esse cenário preocupante que se avizinha com o inverno?

Carolina Krieger: Tem uma coisa que a gente combate muito na saúde da família é esperar acontecer o problema para agir. Nós procuramos trabalhar para agir antes, na prevenção e na promoção de saúde. No entanto, o que temos visto nos últimos anos é que se espera o problema acontecer para aí criar um grupo de trabalho e pensar como lidar com esse problema. O Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho para monitorar os casos de varíola do macaco, onde o protocolo é identificação precoce e investigação. E depois disso, o que é para se fazer? A OMS disse que ainda não há razão para se ter uma preocupação global com essa doença, mas já se descobriu que a varíola dos macacos contém 47 mutações. Se há 47 mutações e ela já tem uma circulação comunitária, talvez a vacina não dê conta. A OMS está começando a pressionar os governos pela produção de vacinas, mas aqui no Brasil ainda não há nenhuma decisão neste sentido.

Mais do que nunca precisamos chamar a atenção para a importância da prevenção e da promoção, de estruturar o sistema de saúde para ele atuar com eficácia no nível básico, onde se tem menos chances de se ter uma complicação maior. É uma questão de economia de recursos também. A atenção primária é resolutiva. Para isso, não precisa abrir um novo hospital, basta investir em equipes de saúde que possam atuar junto às populações mais vulneráveis, que não tem saneamento básico, nem acesso à transporte público para se deslocar. As pessoas extremamente pobres não conseguem se deslocar para um posto para fazer um cadastro. Elas ficam fora de tudo. Eu trabalhei no HPS. No inverno, a área de queimados recebia muitas pessoas com ferimentos causados por fogo causado por vela. Eram pessoas que não tinham energia elétrica em suas casas. Não é possível não se ter um olhar sobre isso ao pensar a questão da saúde pública.

No dia 22 de maio, terminou a Espin (Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional), que repassava recursos extras para a área da saúde. Esses últimos contratos privatizantes realizados em Porto Alegre foram realizados sem licitação. Em agosto, começam a terminar esses contratos e agente já começa a ouvir rumores de hospitais que não querem renovar porque acabou a emergência sanitária e vai vir uma verba menor. Isso cria uma insegurança para os profissionais que foram demitidos e hoje estão trabalhando na terceirizada e para a toda a população que é usuária do sistema.


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