Eleições 2022
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4 de setembro de 2022
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16:32

Quanto mais alto Bolsonaro ofende e ataca, mais fortes são os aplausos em comício-culto no RS

Por
Flávio Ilha
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Foto: Flávio Ilha/Sul21
Foto: Flávio Ilha/Sul21


“Quem estaria por trás de tudo isso?”, grita a motivadora para a plateia.

“Deus!”, respondem as milhares de vozes femininas que abarrotam o centro de eventos da Fenac, em Novo Hamburgo.

É sábado. Há apenas mulheres no local, além de profissionais de imprensa, organizadores, parlamentares. Os homens, como recomenda a fé evangélica, ficaram à parte, impedidos de se misturarem às suas esposas, namoradas, filhas. A atração principal do comício-culto ainda não chegou, mas o frisson é grande. O presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, deve chegar em instantes.

Quem motiva a plateia nesse momento é a hamburguense Heloísa Bolsonaro, mulher do terceiro-filho, Eduardo, ou 03 pelo apelido de família. Há pouco, quando chegou ao local, foi cercada por fãs e admiradoras que queriam uma selfie, um abraço, um olhar que fosse. “Ela é uma querida, não tem soberba nenhuma”, diz a vendedora Luciana Schimitz, 30. Luciana levantou antes das 5h da manhã, arrumou a mãe, dona Otília, e saíram de São Leopoldo rumo à cidade vizinha. Chegaram à Fenac às 7h e pegaram os melhores lugares, no primeiro bloco de assentos.

O encontro Mulheres pela vida e pela família, organizado pelo partido do presidente, teve características de um culto evangélico, com pregação de pastores e pastoras, apresentações de arte gospel e louvores à Bíblia. Mas na verdade era um comício. As esposas tiveram destaque: além de Heloísa, a mulher do candidato ao governo do estado pelo PL, Denise Lorenzoni, e a primeira-dama Michelle aumentaram a voltagem do comício. Mas também estava lá a ex-ministra da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves – que rivalizou em popularidade com Bolsonaro.

Em desvantagem entre o eleitorado feminino, o gesto – que deve ser repetido em outras regiões do país – é uma tentativa de ganhar terreno a um mês do primeiro turno da eleição. Pesquisa Datafolha da última sexta-feira (2) mostra que Bolsonaro tem 29% das intenções de voto entre as mulheres contra 48% do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O salão de eventos da Fenac tinha 6.600 cadeiras à espera do público, mas apenas dois terços foram ocupadas, segundo avaliação dos bombeiros que faziam a segurança do local. De acordo com os organizadores, havia 10 mil pessoas no evento. O entusiasmo, porém, compensava a falta de sintonia entre os números. Aos gritos de “eu vim de graça” – numa alusão à suposta compra de militantes pela esquerda – e de “mito”, as mulheres que apoiam Bolsonaro são ruidosas.

O comportamento, na verdade, é uma engrenagem precisa entre discurso religioso e culto à personalidade. Durante mais de duas horas, antes da chegada do presidente, a plateia foi submetida a uma enxurrada de mensagens edificantes e de louvores a Deus, à família, à vida, à propriedade, desde que seja privada. A trilha sonora, à exceção de uma intrusa Tina Turner que rodou ruidosa entre jingles partidários e hinos evangélicos, ajudou a mobilizar os ânimos eleitorais.

A aposentada Carmen Olivais da Silva, 76, diz que não dormiu a noite toda à espera do encontro com Bolsonaro. “Ansiedade”, relata ela. Católica, não deu muita bola para a discurseira evangélica. Queria ver o mito. “Saí da cama às 5h, tomei meu café, me enrolei na minha bandeira do Brasil e vim a pé”, diz a aposentada. Ela até conseguiu ingressar na primeira fila de assentos, mas como não havia mais cadeiras vagas teve de deixar o local – a segurança foi rigorosa nesse quesito.

Antes do discurso do presidente, a ex-ministra Damares Alves pegou o microfone e citou uma passagem bíblica para dizer que os “inimigos”, sem dizer exatamente quem são, são mais barulhentos que perigosos. “Neemias disse para não temê-los, de modo algum. Os inimigos dizem que não vamos conseguir reconstruir o Brasil, que acabou para nós, mas eu respondo: lutem, lutem com bravura por todas as nossas famílias”, bradou. Antes, quando foi recebida com aplausos demorados, não se conteve: “Chora, esquerda! Chora, capeta!”.

Durante o comício-culto, que durou mais de cinco horas, houve também momentos de impaciência. A maioria das mulheres presentes estava lá para ouvir Bolsonaro, que foi o último convidado a falar – já no final da manhã. Mas tiveram de assistir a apresentações de música gospel, pregações bíblicas e orações. Heloísa Bolsonaro cantou à capela uma parte do hino de Novo Hamburgo. O público não a acompanhou. Também criticou o feminismo que, segundo ela, “demoniza a maternidade”, e disse que o mundo precisa de homens “com testosterona”. Aí foi fartamente aplaudida.

A primeira-dama Michelle Bolsonaro foi discreta no seu pronunciamento. Bateu na tecla da ameaça comunista, da tentação demoníaca, do bem contra o mal. “Não queria misturar política com religião aqui neste encontro, mas o momento exige que a gente se posicione. O comunismo pode sim chegar ao Brasil. Estamos travando uma guerra espiritual, não contra homens e mulheres, mas contra principados e potestades”, disse, em referência à nomenclatura bíblica para ordens angelicais malignas. “Esta nação é do Senhor, sim!”, afirmou. Aplausos vigorosos.

Michelle também criticou a candidata à presidência pelo MDB, Simone Tebet, que ingressou com ação junto ao TSE para retirar do ar propaganda em que a primeira-dama excede o tempo legal na propaganda eleitoral do marido. O TSE determinou que o vídeo seja retirado do ar. “A perseguição está clara. Ao mesmo tempo em que pede para as mulheres votarem em mulheres, entra na Justiça para calar outra mulher”, atacou. Mais aplausos vigorosos.

A cereja do bolo discursou já no final da manhã. O presidente Jair Bolsonaro conclamou as eleitoras a convencerem os eleitores “do lado de lá” a trocarem de voto. A recomendação do presidente incluiu uma informação falsa: “Conversem com essas pessoas, falem para elas: você quer comer cachorro?”. A frase é uma alusão à Venezuela, cuja população, segundo Bolsonaro, come cães e gatos por culpa do regime de esquerda do presidente Nicolas Maduro.

Não foi a única demonização aos governos populares e de viés esquerdista da América Latina. Assim como já havia pregado para seus eleitores em passagem pela Expointer, na sexta-feira, Bolsonaro criticou o presidente argentino Alberto Fernandez, a quem acusou de jogar a população na miséria, e o colombiano Gustavo Petro, acusado de ser simpático a movimentos violentos de guerrilha.

Segundo a última pesquisa Datafolha, o presidente, candidato à reeleição, está 13 pontos atrás de seu principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Voto é convencer as pessoas. Alguns da esquerda já estão vindo para o nosso lado. Mas muitos mais podem vir, depende de vocês conversarem com essas pessoas”, discursou.

No comício-culto, Bolsonaro até tentou se mostrar afável, mas não conseguiu evitar críticas ácidas a seus adversários. Voltou a chamar Lula de “bandido” e inflamou a plateia quando disse que o ex-presidente promete picanha na campanha eleitoral, mas trata seus eleitores a pão e mortadela depois de eleito. Também atacou as discussões sobre a legalização das drogas e do aborto e sobre a liberdade de gênero, segundo ele temas que não podem sequer ser debatidos.

Além disso, ao mencionar que Lula quer transformar todos os clubes de tiro do país em bibliotecas, questionou: “Numa estrada escura, com pneu furado, ao se aproximar alguém que pode lhe fazer mal, o que vocês preferem? Sacar da bolsa a Lei Maria da Penha ou uma pistola?”.E O presidente disse que não é contra a lei, que pune crimes de violência contra mulheres, mas ter uma arma é uma garantia mais eficaz contra agressões.

Não contente com o show de ofensas e acusações, ainda teve tempo de chamar o ministro Alexandre de Moraes, do STF, de vagabundo. Há duas semanas, Moraes autorizou operações de busca e apreensão contra empresários que defenderam um golpe de estado no caso de uma vitória nas eleições de outubro.

“Mais importante do que a nossa própria vida é a nossa liberdade. Nós vimos aí empresários tendo a sua vida devassada, recebendo a visita da Polícia Federal, porque estavam privadamente discutindo um assunto que não interessa para as outras pessoas. Eu posso pegar meia dúzia aqui, bater um papo num canto qualquer e falar o que bem entender. Não é porque tem um vagabundo ouvindo atrás da árvore a nossa conversa que vai querer mudar a nossa liberdade. Mas mais vagabundo do que quem escuta atrás da árvore é quem dá uma canetada após ouvir o que ouviu esse vagabundo”, disse.

A plateia, mesmo sem saber bem a que ou a quem se referia o presidente, delirou com os termos chulos – ou “autênticos” – do presidente. O recado estava dado.


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