Meio Ambiente
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6 de junho de 2024
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15:30

Para professor, classificar Guaíba como lago prejudica prevenção de cheias e favorece especulação imobiliária

Por
Bettina Gehm
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Orla do Gasômetro em 3 de junho. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Orla do Gasômetro em 3 de junho. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Embora a enchente histórica tenha reacendido a discussão sobre as águas que banham Porto Alegre, o Guaíba é rio – se fosse lago, já teria virado uma fossa, tamanha a quantidade de dejetos que deságuam nele. A ciência evidencia que o curso d’água tem circulação fluvial, ou seja, se renova constantemente. A explicação é do professor Elírio Toldo Júnior, do departamento de Mineralogia e Petrologia da UFRGS.

A definição do Guaíba como rio é importante para medir corretamente o nível da água e prevenir transtornos em enchentes como a que ocorreu em maio. No entanto, interessa ao setor imobiliário que o Guaíba seja definido como um lago, o que acarretaria em um estreitamento da área protegida em suas margens.

A explanação técnica quanto à definição do rio que inundou Porto Alegre foi tema da segunda edição do debate “O Guaíba à margem da lei”, promovido pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) e pela Associação Riograndense de Imprensa (ARI) nesta quarta-feira (5), Dia Mundial do Meio Ambiente.

A principal evidência para chamar o Guaíba de rio é seu desnível: diferente de um lago, a superfície da água é inclinada. “O peso da água se desloca no sentido do declive”, resumiu Elírio. A importância desse dado num contexto de enchente só foi conhecida na catástrofe deste ano. Segundo o professor, a Zona Norte da Capital inundou mais que o resto da cidade porque – além dos evidentes problemas estruturais –, o desnível do Guaíba entre essa região e o Gasômetro chega a dois metros em uma cheia. Na região, o bairro Sarandi foi um dos que passou mais de um mês alagado.

“Essa variável não foi monitorada para avaliação de impacto da enchente. As estruturas da Zona Norte precisam ter uma altura proporcional ao nível do rio na região. Isso mostra a precariedade do nosso sistema de monitoramento das águas, com apenas um ponto de monitoramento para todo o Guaíba. Se a superfície é inclinada, como um ponto vai ser o suficiente?”, questionou o professor.

Logo no início da enchente, a régua usada pela Secretaria do Meio Ambiente (Sema) para medir o nível do rio, instalada no Cais do Porto, ficou submersa. Então a Sema transferiu a régua para o Gasômetro, mas considerando que o Guaíba seria plano. “Esqueceram da declividade da superfície da água. Entre o Cais e o Gasômetro, um desnível de 70 centímetros não é pouco. Nós alertamos a Sema desse erro, mas eles não consideram nosso dado como oficial”, relatou o professor. “Infelizmente aprendemos, pagando um preço altíssimo, que o nível da água tem que ser monitorado em diferentes lugares, respeitando a natureza do curso fluvial, e não de um lago. É um equívoco de um negacionismo absurdo”.

 

Situação do bairro Sarandi, na Zona Norte, em 29 de maio. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Uma comitiva de especialistas holandeses foi recebida ontem em Porto Alegre pelo prefeito Sebastião Melo (MDB), com a missão de propor soluções para o sistema de proteção contra enchentes na Capital. A Holanda é referência quando o assunto é a proteção por diques. O sistema do país, no entanto, protege uma área de cerca de 20 mil km² – enquanto a bacia do Guaíba tem 87 mil km². “A Holanda inteira é metade do tamanho da nossa bacia. Eles administram – e muito bem – uma área relativamente pequena. Nosso problema, em escala, é bem maior. Toda gota de chuva que cai na bacia vai parar no Guaíba”, ressalta o professor Elírio.

Conforme o docente da UFRGS, existe uma intenção de separar – conceitualmente – o Guaíba de sua bacia. Mas o rio não tem “vida própria”: todos os sedimentos que transitam na bacia passam pelo Guaíba. O fenômeno é evidenciado pela variação na carga de sedimentos medida em diferentes momentos no rio, para vazões iguais. O canal que atravessa o fundo do Guaíba exerce controle no escoamento das águas. “No pico da enchente, medimos a vazão descomunal de 30 milhões de litros por segundo. O Guaíba não é um reservatório de água: ele é um curso hídrico”.

A circulação lacustre da água, observada em lagos, é controlada principalmente pelo vento e acontece apenas na superfície: de uma margem à outra e de norte a sul. Medições acadêmicas evidenciam que o Guaíba, por outro lado, tem padrão de circulação fluvial – e tridimensional – em todas as suas partes: a água circula também da superfície ao fundo. “Esse padrão de escoamento é apresentado por rios, não lagos”, pontuou o professor Elírio.

Essa definição pode ajudar a proteger a área alagadiça de Porto Alegre, evitando catástrofes como a do mês passado. Isso porque o Código Florestal estabelece que a faixa Área de Preservação Permanente meça no mínimo 500 metros para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 metros, como é o caso do Guaíba.

Com base nas evidências científicas, o MJDH se juntou ao Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá) à Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), dois anos atrás, para ingressar com uma com uma ação civil pública pedindo o reconhecimento do Guaíba como curso hídrico (processo nº 5021495-37.2022.4.04.7100). O processo ainda tramita na 20ª Vara Cível da Justiça Estadual.

“Queremos que o poder público fixe o entendimento sobre a natureza do Guaíba e notifique empreendimentos nessa faixa de 500 metros à margem do rio para que justifiquem a sua posse”, explicou o advogado José Renato de Oliveira Barcelos, especialista em direito ambiental.

 

Inundação no Centro Histórico. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

“A Constituição do Estado do RS se refere ao Guaíba como rio. A Lei Orgânica do Município e o primeiro Plano Diretor de Porto Alegre também. De repente passam a chamá-lo de lago, como assim? Isso deixa uma grande interrogação para todos nós: a quem interessa? Magicamente, contrariando toda a legislação existente, passam a chamar de lago. A especulação imobiliária, agindo fortemente, está interessadíssima que seja lago”, declarou o presidente do MJDH, Jair Krischke.

Exemplo dessa especulação imobiliária a que se refere Krischke é o bairro privado de luxo Golden Lake, na beira do Guaíba, que vai erguer sete condomínios na próxima década. Como o Sul21 mostrou na série Donos da Cidade, o projeto não teria prosperado sem o apoio político que entregaria à Multiplan o terreno para instalar os empreendimentos de alto padrão.

O Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) fez uma projeção da área afetada pela enchente deste ano e calculou que, no caso do Guaíba, a APP precisaria ser três vezes maior do que 500 metros. “Nós não podemos ter, do ponto de vista geológico, uma mesma dimensão de APP para todo o curso d’água. É preciso ter atenção à história geológica do curso hídrico para, aí sim, fixar a faixa de proteção mais adequada”, afirmou Barcelos.


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