Meio Ambiente
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3 de junho de 2023
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07:46

A natureza morta no coração da cidade: Apesar da poluição, fauna sobrevive no Dilúvio

Tapicuru bebendo água no Arroio Dilúvio. Foto: Pedro Stahnke
Tapicuru bebendo água no Arroio Dilúvio. Foto: Pedro Stahnke

Fran B. Geyer e Theo Giacobbe*

“Com certeza, o local mais poluído que eu já pesquei foi no Arroio Dilúvio”, afirma Christofer Machado de Farias, pescador e guia de pesca na Baía de Guanabara. Em 2021, ele e o amigo Klaus Schütz publicaram um vídeo no YouTube pescando no arroio. Schütz já havia pescado no local e convidou seu parceiro de pesca para acompanhá-lo com o objetivo de mostrar a fauna do Dilúvio na internet. Ao falar sobre a condição do arroio, Schütz comentou: “Eu já pesquei em lugares poluídos, mas não tanto. Lixo, fezes, pneus, uma série de coisas… Realmente foi o lugar mais poluído que eu pesquei. É incrível como tem vida ainda ali. E muita”.

Dois anos antes, em 2019, um estudo sobre a qualidade da água no Dilúvio, liderado pelo Professor Nelson Fontoura do Instituto do Meio Ambiente da PUCRS (IMA), apresentou péssimos níveis em relação à presença de coliformes fecais. “Desde a nascente, ele já está bastante impactado. Começa com o esgoto orgânico lançado na Barragem de Salto, vem por dentro de Viamão, onde junta esgoto doméstico e resíduos sólidos”, explica o professor Fontoura.

Os moradores de Porto Alegre, ou até mesmo os turistas que visitam a cidade, ao passarem pela Avenida Ipiranga percebem facilmente o mau cheiro e a cor escura devido à poluição do arroio. Esse importante corpo d’água está presente na vida dos moradores desde antes da fundação da cidade.

A bacia do Dilúvio atravessa a cidade de leste a oeste. Mapa: Santos et al.(2020)/Reprodução

Klaus Schütz adquiriu a curiosidade pela pesca no arroio graças a um vizinho que pegava peixes e distribuía para moradores de rua ou levava para lagos em parques como a Redenção e o Parcão. Alguns de seus amigos do grupo de pesca também já haviam comentado sobre avistar peixes grandes dentro do arroio. O pescador, interessado pelos boatos, decidiu ir até o local e ver com seus próprios olhos. “Fui lá uma vez, caminhei, andei, olhei quais espécies de peixe havia. Outra vez, fui com o equipamento de pesca e peguei grandes cascudos”.

A pesca de Schütz chamava a atenção dos que passavam pela Avenida Ipiranga. “O pessoal para, fica curioso, pergunta se ‘tá’ saindo ou não. Quando a gente tira um peixe o pessoal fica abismado. Como é que existe vida e uma vida tão plena em meio à poluição?”. Em duas de suas pescas no corpo d’água, Schütz aproveitou para levar peixes para lagos limpos. “Acredito que eles estão muito melhores hoje do que se estivessem no Dilúvio”.

O vídeo publicado no canal do YouTube de Farias foi gravado perto do Museu da PUCRS e teve como foco a pesca de cascudo, peixe muito comum no arroio. Porém, foram avistadas outras espécies como tilápia e traíra pelos pescadores. Segundo Farias, “é um local que tem bastante biodiversidade, mas a poluição não ajuda. Achei que nem haveria tantos peixes”.

Apesar da pesca para o canal de Farias ter sido feita somente para mostrar a fauna diversa que ali habita e como diversão, comunidades ribeirinhas ainda precisam pescar no Dilúvio para comer. O professor do curso de Engenharia Química da PUCRS Cláudio Luis Frankenberg afirma que apesar de não ser aconselhado, o consumo não é necessariamente arriscado. “Daí vem toda a questão social. Quem faz isso é alguém que não tem condições, que precisa buscar no dilúvio o seu sustento. É uma situação social drástica”, pondera Frankenberg.

Sacos de lixo e outros rejeitos estão presentes ao longo de todo o curso do arroio. Foto: Pedro Stahnke

A fiscalização de esgotos clandestinos conectados ao Dilúvio é algo muito complexo de ser realizado pelo DMAE. Isso porque verificar tubulações ilegalmente conectadas ao arroio envolveria a entrada do departamento em casas suspeitas de alguma violação. Entretanto, o órgão não tem autorização de entrar sem que uma denúncia seja realizada. “O responsável seria o DMAE, porém o órgão evita se comprometer em uma ação tão complexa. Não existe uma rotina de ação do DMAE em relação a esse controle”, avalia o professor Frankenberg.

Atualmente, não há um órgão que realize a fiscalização direta de esgotos clandestinos conectados ao Arroio Dilúvio. De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS), o órgão só pode atuar no caso de denúncias realizadas a empresas sem licença ambiental. Tanto a SMAMUS quanto o diretor-geral do DMAE, Mauricio Loss, afirmaram que só fiscalizam despejos ilegais mediante denúncias efetuadas à prefeitura.

Parte da poluição também vem da própria população, que despeja resíduos no arroio. Frankenberg destaca a falta de interesse de muitos em cuidar para não afetar o resto da fauna presente no corpo d’água, “Existe uma questão cultural. A questão da falta de educação ambiental, a questão de descartar lixo, de não ter cuidado, de não se preocupar”.

Com esse problema em mente, em março de 2016 foi construída na foz do arroio uma ecobarreira, por meio de uma parceria realizada entre a prefeitura de Porto Alegre, Uber e Instituto Safeweb. Desde então, a barreira recolheu 1.113.078 quilos de lixo no curso d’água.

Essa não foi a primeira barragem construída no arroio, já que em 2012 uma parceria entre UFRGS, PUCRS e prefeituras de Porto Alegre e Viamão construiu uma ecobarreira logo abaixo da passarela em frente a PUCRS. Porém, ela utilizava uma tecnologia antiga que não permitia a passagem de graxa, gasolina e outros tipos de óleos. Com isso, ocorreu um acúmulo desses materiais na superfície do arroio. Essa água foi analisada no Laboratório das Águas e, ao entrar em contato com o calor das máquinas, o equipamento utilizado acabou explodindo.

A prefeitura de Porto Alegre tem planos de instalar outras ecobarreiras em outros arroios da cidade. A função das barragens é semelhante ao das dragagens, pois, apesar de ambos possuírem objetivos diferentes, acabam por evitar que novos detritos atinjam o Guaíba, de onde é captada a água para as torneiras porto-alegrenses.

Máquinas e funcionários do DMAE executam o processo de dragagem. Foto: Pedro Stahnke

As dragagens ao longo do Dilúvio iniciaram em 2022, porém, somente em março de 2023 o DMAE começou a dragagem na foz do arroio, região que não era dragada havia mais de dez anos. O intuito desse procedimento é de prevenir alagamentos em arroios e bacias, além de retirar lodo e matéria orgânica que ficam acumulados. A prefeitura de Porto Alegre, por meio do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), era responsável pelo desassoreamento de arroios na capital até 2019, quando o DMAE incorporou o DEP e iniciou a elaboração de projetos para as dragagens em Porto Alegre.

De acordo com o diretor-geral do DMAE, Maurício Loss, mais de 6 mil pneus, pedaços de geladeira, animais mortos e outros detritos já foram retirados do arroio desde quando começaram as dragagens, em 2022. A expectativa é que o procedimento realizado na foz do arroio demore cerca de seis meses, quando se espera dragar cerca 70 mil metros cúbicos de material acumulado ao longo dos últimos dez anos.

O processo de canalização se iniciou na década de 1940, com as ultimas obras de expansão somente na década de 1980. Foto: Pedro Stahnke

Apesar de não ter o mesmo curso que tem hoje, a bacia do Dilúvio sempre foi central para o cotidiano da cidade, definindo o antigo bairro da Ilhota. Originalmente era chamado de Rio Jacarey, em referência à população de jacarés da região. Também foi importante parte do comércio na região, já que era possível navegar pelo antigo arroio. Essa hidrovia ajudava a conectar regiões no interior da cidade até o Guaíba. Devido às frequentes inundações que afetavam a capital, em 1943, iniciou-se o processo de canalização do arroio, aliado à construção da Avenida Ipiranga.

A canalização não impediu o comércio, já que o novo canal continuava sendo navegável. “Até a década de 1960, a quantidade de espécies de animais era muito grande. O pessoal pescava e transitava no Dilúvio, principalmente para vender frutas e verduras. As pontes mais antigas tinham alguns degraus nas laterais. Ali, as pessoas iam em barcos, paravam para comprar”, conta Frankenberg.

Em seus primeiros anos, o canal transportava somente água pluvial, como fora planejado para fazer. Porém, com o rápido crescimento populacional da cidade, encanamentos de esgoto cloacal foram sendo conectados, tornando o arroio extremamente poluído. A construção ao redor do novo canal foi acompanhada de um processo de “expulsão” de populações de baixa renda. Esse processo é chamado por pesquisadores de gentrificação. Em especial o caso do bairro da Ilhota chama a atenção.

Com a gentrificação, as novas populações que se instalaram nas periferias e regiões ribeirinhas não tinham acesso a sistemas públicos de esgoto. Isso fez com que as comunidades ribeirinhas desenvolvessem seu próprio sistema de esgoto conectado irregularmente ao Dilúvio. Claudio Frankenberg destaca a importância do arroio para certos indivíduos. “Tem uma questão social muito grande, porque envolve pessoas que muitas vezes vivem do Dilúvio”.

Mapa da capital em 1916 e em 2008. Fonte: Burin, 2008/Reprodução

Devido a essa mudança nos encanamentos, a fauna do Dilúvio sofreu um forte impacto por conta da alta presença de coliformes fecais e outros poluentes na água. Apenas os peixes mais resistentes conseguiram sobreviver, como carpas, tilápias, traíras e cascudos. Frankenberg descreve os impactos causados. “Não é todo peixe que consegue sobreviver nesse tipo de situação. Os pássaros são mais escassos e ficam mais nas árvores em volta, não tanto no Dilúvio. Outros animais foram desaparecendo ao longo do tempo”.

Porto Alegre engolfou o arroio, e sua poluição é um retrato de uma cidade que cresceu rapidamente e de forma desordenada. A poluição que domina a principal artéria da Capital afeta a saúde do município de uma maneira geral. “O que eu vejo é que não é por falta de esforço do governo. Acho que a população também tem que se engajar, comprar essa causa e trabalhar junto”, opina Mauricio Loss, diretor do DMAE. “A gente tem que começar a se dar conta que o Dilúvio faz parte do nosso dia a dia. Ele atravessa a cidade. Se eu quiser mantê-lo e conviver com ele, é preciso educação”, conclui Frankenberg.

Quero-quero que pousou em uma ilha formada por detritos no meio do arroio. Foto: Pedro Stahnke

*A reportagem foi produzida por alunos de Jornalismo da PUCRS, em projeto desenvolvido no Lab J.


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