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11 de junho de 2024
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19:35

‘Não tinha mais força para limpar, queria deixar tudo e ir embora’: O recomeço em Eldorado

Por
Luís Gomes
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Eldorado do Sul tenta retomar depois da tragédia. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Eldorado do Sul tenta retomar depois da tragédia. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

“A gente chegou aqui era 5h. 8h, eu falei para a minha mulher: ‘Vamos embora’.” O relato é do segurança Macgayver da Silva Gonçalves, morador da rua Rosário do Sul, bairro Centro Novo, em Eldorado do Sul. “Não tinha mais força para limpar, queria deixar tudo do jeito que estava e ir embora.” Foi apenas com um “empurrão” de seu irmão que ele conseguiu forças para seguir o trabalho. Seriam três dias limpando a casa, um trabalho realizado por três homens e uma mulher, a esposa de Macgayver. Hoje, o espaço já se encontra “organizado”, mas grande parte dos móveis que apodreceram após passarem semanas embaixo d’água seguem acumulados em frente à casa, assim como as tantas outras pilhas de entulhos espalhados por quase todas as ruas de Eldorado.

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A rua Rosário do Sul é asfaltada. Na região, casas mais pobres e de classe média se alternam, mas os moradores contam que, antes da enchente, não se via situações de extrema pobreza como em outras periferias urbanas. Após a inundação, o cenário é descrito como “de guerra” e “filme de terror”. Há carros destruídos abandonados pelas ruas. O que era asfalto parece chão batido. A maior parte dos negócios permanece fechada. Encontrar um restaurante aberto é missão quase impossível. “Aqui onde a gente mora é vila, mas é uma vila boa. Eu gosto de morar aqui. Só que agora o lixo está por tudo”, diz Carla, também moradora da rua.

A água começou a subir no Centro Novo na madrugada do dia 2 para o dia 3 de maio, uma fatídica sexta-feira que dificilmente será esquecida pelos moradores da cidade. Ainda na quinta, a notícia da subida chegou como boato, mas ninguém acreditou. Eldorado é uma cidade que convive com muitos alagamentos. O Centro Novo não é exceção. Angélica, que tem um mercadinho chamado Querência, achou que seria mais um alagamento como muitos outros. Ela conta que em outros lugares onde morou, como a Vila da Paz e o bairro Medianeira, costumavam sofrer mais com as cheias do Rio Jacuí, por estarem mais próximos. “O normal da rua é alagar com chuva. ‘Nunca na vida chegou no Centro Novo, não vai chegar’”, pensou.

 

Entulhos se espalham por quase todas as ruas de Eldorado do Sul. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Às 8h daquela sexta, Angélica e o marido abriram o mercadinho. Quando os primeiros clientes começaram a chegar, a água já estava na calçada, vindo pelos bueiros. Às 9h, chegou no piso. “Só que aí começou a subir muito rápido. De minuto em minuto, já estava entrando no mercado”, diz. Ao meio-dia, batia na cintura.

Macgayver, Carla e Angélica são apenas três dos mais de 15,5 mil moradores de Eldorado atingidos pelas cheias no mês de maio. Cem por cento da cidade foi impactada. Como ocorreu com muitos outros, os três moradores do Centro Novo narram que a saída de casa foi seguida por um périplo que os levou a percorrer diversas cidades ao longo dos dias e semanas seguintes.

Terceirizado da Dell, Macgayver primeiro se abrigou na empresa. Quando a água chegou, pegou o carro, que tinha conseguido salvar, e se bandeou para Guaíba, onde ficou abrigado no ginásio Coelhão. Não deu muito tempo, a água chegou ali também. A ideia do pessoal do abrigo era levá-los para Sentinela do Sul. Mas ele não quis. Hospedou-se então com um casal de voluntários, ainda em Guaíba. Mas logo eles também não estariam em segurança. Pegou o carro e, dessa vez, foi para Porto Alegre, pela RS-118, por Viamão. Era ainda o ápice das cheias, pouca gente se aventurava em ir de uma cidade para outra da Região Metropolitana. Levou 2h30. O plano era alugar um apartamento até poder voltar para casa. Mais uma vez, conseguiu abrigo junto a um casal voluntário. “Eles não cobraram o aluguel de nós, só as despesas. Já ajudou bastante”, conta. Há cerca de duas semanas, voltaram para casa. E iniciaram a limpeza.

 

Menina anda de patins em rua coberta pelo entulho em Eldorado do Sul | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Carla voltou para casa na semana passada. Até então, estava abrigada na Escola Estadual Santos Dumont, bairro Assunção, em Porto Alegre. “Lá era maravilhoso”. Antes, haviam passado ainda por um abrigo em Eldorado e por outro em Gravataí, onde ela e os três filhos foram separados do marido, que foi na frente para a Santos Dumont. “O total fora de casa foi um mês. Indo para lá e para cá.”

É a incerteza de Angélica que melhor define os relatos sobre aquelas semanas. “Eu não sei mais os dias.” Ela demorou a acreditar que precisava deixar o mercadinho e a casa, que fica no mesmo terreno, na parte de trás. Na madrugada daquela sexta, o marido levou o carro para a frente da distribuidora EixoSul, que fica mais distante do Jacuí. Ela só aceitou sair de casa pela tarde, e ainda levou a filha e a sogra para uma vizinha da rua de trás, onde a água não tinha chegado. Mas chegaria. Foram até o carro, mas ele não ligava mais. A água já tinha chegado ali também. A saída foi empurrar. Sogra e filha no banco de trás, ela e o marido empurrando. Um trajeto de 3 km, calculam, até a BR-116. “Era cena de filme. Tinha muita gente na rua. Às vezes, parava alguém e dava uma empurrada junto.”

Chegando “na faixa”, o carro ligou. Dormiram na casa de amigos em Guaíba, bairro Santa Rita. 6h da manhã de sábado, a notícia era clara: “a água iria chegar.” Angélica, mais uma vez, não acreditou. Deram uma volta de carro pelo bairro. De novo, a água vertia dos bueiros. A previsão se confirmava. Não sabiam para onde ir. Lembraram de uma prima do marido, em Pelotas. Pegaram a estrada e só voltariam semanas depois, para iniciar o trabalho de limpeza do mercado. Após uma semana, com a limpeza concluída, retornaram para buscar a filha.

 

Marcas na parede mostram onde a água chegou | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

“Na hora de limpeza, foi horrível. Limpamos e já não tinha nada. Mas, graças a deus, consegui salvar a minha máquina, a minha geladeira, que era o que eu estava pedindo a deus para salvar. Porque a gente com roupa suja, com criança, acho que tem que ter uma máquina e uma geladeira. Foi isso, o resto a gente não tem”, diz Carla. Roupas e material de cama, ela recebeu como doação quando estava abrigada na escola Santos Dumont. Nesta segunda (10), Carla foi uma das ex-abrigadas que recebeu doações de cestas básicas angariadas por professores e voluntários do colégio.

O marido dela, que trabalha como ferreiro numa empresa de Porto Alegre, já voltou ao trabalho. Mas, como os horários das linhas de ônibus estão reduzidos, de um lado e de outro da ponte, precisa sair mais cedo do que o normal de casa. As crianças ainda seguem sem previsão de voltar a ter aulas.

Passado um mês do início da tragédia, ela sente que as coisas começam a ficar mais tranquilas. “Porque a gente está conseguindo se organizar e limpar. Antes, limpava e sujava na mesma hora. Porque é barro e sujeira na rua.” O lixo acumulado na frente de casa incomoda. Ao entulho, já se misturam os resíduos do dia a dia, o que deixa um cheiro de podre que se soma ao nauseante odor de lama pós enchente que os gaúchos vão demorar a esquecer. Também atrai “bichos” variados. “A Prefeitura não vence [o lixo].”

Por vezes, Carla tenta olhar a situação por um prisma até otimista. “Eu já morei onde sempre deu enchente. A enchente que eu não peguei foi a do ano passado, em novembro. Mas eu morava na área de risco, na Vila da Paz, e lá tapou as casas. Eu tive a oportunidade de vir para cá, só que a água chegou. Mas a gente não pode reclamar, porque tem gente que pegou pior. É recomeçar de novo.”

Em outros momentos, se mostra menos confiante. “Tá difícil, eu estou esperando o dinheiro do governo e não vem.” Mas ela já sabe como irá usar os benefícios Auxílio Reconstrução, do governo federal, e Volta Por Cima, do governo estadual, quando chegarem — ainda estão em análise. “Esse dinheiro já está destinado para comprar os meus moveizinhos. Só que não vem, não vem.”

A esposa de Macgayver já recebeu – e investiu – o auxílio federal. “Cinco mil reais não dá para pegar nada. Ajuda? Ajuda bastante, mas já foi só no guarda-roupa, cama, cozinha”, conta. “Agora nós estamos esperando o Pix SOS.” Tudo que era madeira dentro de casa precisou ser jogado fora. Móveis que eram maciços agora parece que são feitos de papelão. Formam o entulho que permanece na rua.

 

Um mês após o início das chuvas, a casa de Macgayver está “em ordem” | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A estimativa é de que 80% do que estava dentro de casa foi perdido. Felizmente, conseguiu salvar os 20% que ele considera que seriam o mais caros para repor. “Geladeira, lavamos, limpamos e secamos. Máquina de lavar também. As televisões a mesma coisa, deixamos secando e conseguimos salvar.” Parte das roupas dele, que estavam na parte alta do armário, também foram salvas. Já a esposa perdeu praticamente tudo. Mesmo destino das “miudezas”, como fritadeira, torradeira, chapinha, secador de cabelo, etc. “Querendo ou não, tu vê valor financeiro. Tu vê uma coisa quebrada no chão, cheia de lama, ‘bah, isso aqui era caro.’” A maior urgência agora são as portas, que incharam e precisam ser trocadas, porque foram serradas para que pudessem voltar para casa.

Macgayver voltou a trabalhar e, depois, entrou em férias. Como as dívidas e prestações no cartão das coisas que se viu obrigado a comprar vão se estender pelo próximo ano, se viu obrigado a fazer bicos de segurança. “Estamos arregaçando as mangas e indo de novo. A única certeza que a gente tem é que tem que continuar trabalhando.”

Pergunto se não pensou em deixar Eldorado. “A gente está aqui por falta de opção mesmo. O primeiro momento era de não querer voltar. Agora, conversando com os vizinhos, tem quem acha que não vai acontecer mais. Mas eu vou ficar um ano pagando as coisas que eu comprei aqui, setembro pode ser que dê de novo e eu perca o que nem paguei ainda. Medo a gente tem. Se eu tivesse condição, acho que eu não voltaria. Passar por tudo isso aí de novo.”

Carla vai esperar a próxima, mesmo sabendo que poderá acontecer em breve e até ser pior. “Se vier a próxima, eu me sumo de Eldorado, vou para qualquer outro lugar, mesmo que more de aluguel. Mas, como foi a primeira vez, a gente fala que não vai acontecer de novo. Mas, pode acontecer pior”, diz, lembrando que já tinha passado a maior parte de sua vida convivendo com alagamentos. “É muito triste, a gente sempre passou por isso. Eu, minhas irmãs, minha mãe, que não está mais aqui hoje, mas é triste. Porque é uma coisa que tu vive só daquilo. Tu compra uma geladeira, um fogão, vem a água e tu vai viver só comprando aquilo ali. É uma tristeza.”

Angélica já estava em Pelotas, no domingo, dia 5, quando ficou sabendo que o Querência foi arrombado pela primeira vez. Tudo que estava nas prateleiras onde a água não tinha chegado foi levado. Os boatos correm rápido e circulam nomes de quem pode ter entrado. Mas ela prefere dizer que não é possível saber ao certo. Entende que, em alguns casos, a fome levou as pessoas a fazerem isso.

Muita gente ficou no Centro Novo naquele primeiro final de semana. Cliente do mercadinho, Sandra só deixou a região no dia 7. Com uma casa de dois pisos, ela abrigou quatro adultos e três crianças no único quarto do segundo andar, junto com a geladeira e um botijão que usavam para cozinhar. Quando chovia, e foram praticamente todos os dias daquelas semanas, colocavam os 11 gatos que juntaram na vizinhança para dentro do quarto. Os 16 cachorros ficavam no telhado. Em determinado momento, apareceu uma galinha de um vizinho. Depois de muito relutar, acabou saindo quando viu que não adiantava mais acreditar que a água pararia de subir ou desceria rapidamente. “Entre os cachorros e a minha vida, optei por salvar a minha vida.”

Sandra voltou para casa no dia 18. Como trabalha numa clínica geriátrica que também ficou alagada e tinha férias acumuladas, deve retornar ao serviço apenas em setembro, quando está previsto o retorno da clínica. Nesta segunda, ela ainda buscava encontrar dois de seus quatro cachorros. Acredita que metade dos 16 que conseguiram abrigar tenham morrido. Sandra era uma das clientes que já estava voltando ao Querência. Depois de contar boa parte da história, pergunto se ela quer gravar entrevista. Ela diz que posso ir anotando, mas que não vai contar tudo aquilo que viu nos cinco dias que enfrentou até ser resgatada do telhado de sua casa.

Angélica acredita que nem todo mundo saqueou casas e comércios por questão de sobrevivência. Depois do mercadinho, entraram em sua casa e reviraram tudo que ainda não tinha sido destruído pela água. “Tem coisas que eu não teria perdido, álbum da minha filha, lembranças da minha mãe. Lá na minha casa foi mais para revirar, vandalismo.”

 

Angélica e o marido já reabriram o Querência | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Ela estima que os prejuízos com a perda de estoque e com as perdas na casa passem dos R$ 100 mil. “Eu não tinha nem força para recomeçar, mas amigos e fornecedores vieram e disseram: ‘vamos de novo, a gente dá mais prazo.’” No final de semana, o mercadinho reabriu. Ainda nem tinha sido totalmente limpo, assim como a limpeza da casa também não foi concluída. Como Sandra, outros clientes também voltaram. “O pessoal do bairro está se ajudando, tentando comprar coisas do bairro.”

Alberi Bueno de Lima começou há sete anos a ter negócios em Eldorado. O primeiro passo foi comprar uma máquina de sorvetes por R$ 11 mil, juntar o mesmo valor com uma amiga, vinda de Minas Gerais, e montar uma lanchonete. Em abril, o negócio havia se transformado na rede Mapeli Fast Food, com quatro lojas e um contêiner em Eldorado, uma unidade em Guaíba e outra em Barra do Ribeiro. Há dois anos, Alberi também montou a Casa Eldorado Galeteria.

Em maio, todas as unidades da cidade ficaram debaixo d’água. Em uma delas, as máquinas, cujo valor gira em torno de R$ 100 mil, foram perdidas. Em Guaíba, a água chegou, mas não inutilizou o negócio, que já foi reativado. Na Barra do Ribeiro, não chegou a fechar.

Alberi diz que pensou em abandonar os negócios. Olha para a rua e ainda vê lixo. Pergunta-se o que a Prefeitura tem feito e onde está a atenção dos demais poderes. “Por que não dão atenção para Eldorado? A cidade foi 100% atingida e parece que está esquecida, do lado da Capital”, diz.

 

Galeteria de Alberi ainda está passando pela limpeza | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Foram dias de limpeza, na casa e nos negócios. Todo mobiliário jogado fora. Muito trabalho para lavar as paredes, recuperar portas e janelas arrombadas. Aos poucos, a vontade de prosseguir foi prevalecendo. “Eu creio que nós precisamos ficar aqui e dar a volta por cima. Estamos tentando junto ao governo tirar empréstimos e tudo”, diz Alberi.

Ele estima que, para reerguer seus negócios, seria preciso ao menos R$ 300 mil. Uma parte está tirando das reservas, o que faz com que projete reabrir a galeteria talvez já no mês de junho. O resto, ainda espera que venha de programas de apoio ou financiamento. “Se tivesse dinheiro, facilitaria muito mais. Mas até agora não recebemos nada, do governo municipal, estadual, federal. Nenhum banco liberou. Estou tirando do bolso, só que daqui a pouco termina.”

Alberi diz que agora a ideia é permanecer com duas unidades da lanchonete no Centro Novo, uma do lado da outra. Na galeteria, ele pretende investir mais. Está ampliando o já amplo salão e comprou o maquinário de uma lanchonete na esquina da frente que irá fechar. Também comprou uma frangueira de outra comerciante que desistiu da cidade. “Ou nós olhamos a tragédia ou olhamos oportunidades. Eu estou olhando oportunidades. Eldorado está abandonado, está o caos. Mas eu queria que o mundo soubesse que tem gente que quer dar a volta por cima.”

 

Entulhos em Eldorado do Sul. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Entulhos em Eldorado do Sul. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Professores da Escola Santos Dumont entregaram donativos nesta segunda | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Marilia Saldanha e seus filhos Enzo e Kauane. Eles são moradores de Eldorado do Sul e tiveram sua casa invadida pela água | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Entulhos em Eldorado do Sul. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Interior de carro que ficou submerso em Eldorado do Sul. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

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