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22 de junho de 2024
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09:10

Estudo do IPH monitora contaminação do Guaíba e risco de doenças causadas pelas enchentes

Por
Luís Gomes
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Mesmo após as águas da enchente baixarem, permanece o risco de contaminação por doenças | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Mesmo após as águas da enchente baixarem, permanece o risco de contaminação por doenças | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Qual é o nível de contaminação das águas do Guaíba a partir das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul no mês de maio e qual é o risco para a saúde das pessoas? Esses são os principais objetivos de um estudo que está sendo realizado pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS). Desde os primeiros dias da enchente até que o evento climático complete um ano, pesquisadores irão fazer a coleta da água em diversas pontos nas margens de Porto Alegre e na cidade de Guaíba, com objetivo de compreender o impacto das enchentes.

Após o início das enchentes, o IPH criou o projeto Sistemas de Saneamento e Saúde em Situações de Emergência, coordenado pelo professor Salatiel Wohlmuth da Silva. Ele explica que, em conjunto com pesquisadores do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS (ICBS/UFRGS) e de outras universidades, do RS e de outros estados, o projeto é voltado ao monitoramento do impacto das enchentes nos serviços ecossistêmicos e em áreas como saneamento básico, tratamento de água e esgoto.

Um dos trabalhos que está sendo desenvolvido é de monitoramento da condição da água do Guaíba, o que será feito a partir de sete etapas de coleta. A primeira delas foi realizada entre os dias 5 e 10 de maio. A segunda, em 21 de maio, com o objetivo de ser realizada 12 dias depois. A partir daí, o intervalo temporal entre cada coleta foi dobrando. Em 4 de junho, 24 dias depois da primeira coleta, foi realizada uma nova. Em 28 de junho, 48 dias depois, será realizada a próxima, e assim quando completarem 96 dias, 192 dias e 384 dias da primeira coleta, com a última prevista para maio de 2025, um ano após as enchentes. A ideia é que, com esse intervalo de tempo, seja possível compreender como a dinâmica de eventos extremos influencia nas perdas do serviço ecossistêmicos, no saneamento e na qualidade da saúde.

“Na primeira coleta, a gente fez a captação em 92 pontos na costa de Porto Alegre e dentro da cidade. Nesses pontos, a gente fez análises físico-químicas e microbiológica. Os resultados que mais chamaram a atenção naquele momento foram os resultados microbiológicos, que foram relacionados à presença de coliformes totais e Escherichia coli (E. coli)”, diz o professor Salatiel.

Ele explica que esses microrganismos estão associados à contaminação da água por doenças de veiculação hídrica, como a cólera, doenças gastrointestinais causadas por rotavírus e norovírus, Sars Cov, leptospirose es hepatites A e B.

 

Momento de uma das coletas feitas pela equipe do IPH | Foto: Divulgação/IPH

Salatiel destaca que o nível de coliformes totais e de E.coli detectados na primeira coleta foi muito superior ao normal e se elevou mais ainda na segunda coleta, que, em razão da água já ter baixado em diversas partes da cidade, foi realizada em menos pontos.

“Existia a possibilidade de diminuir, de continuar igual ou de aumentar, e a gente verificou que as concentrações aumentaram 12 dias depois de ter ocorrido o pico da enchente. O que isso significa? Significa que, em 12 dias, também deu tempo dos vírus e das bactérias incubarem. O que acontece? A hidrodinâmica do Guaíba no seu canal é completamente diferente das margens. Nas margens, a água se mantém por mais tempo, o sedimento se mantém por mais tempo e, então, é possível que as bactérias consigam se manter por mais tempo ali. Além disso, a gente teve algumas chuvas que fizeram com que a rede de esgoto e a rede de drenagem extravasassem no meio de Porto Alegre. Isso faz com que tenha um carregamento maior também de esgoto. Então, com base nisso, tem essa associação de maior presença desses microrganismos”, diz o professor.

Na terceira coleta, a mais recente, foi possível perceber uma melhora na qualidade da água e início de queda nos microrganismos, mas em relação à segunda coleta, não ao padrão regular do Guaíba. “O ambiente e a hidrodinâmica já começaram a dar conta dos processos de diluição, de restauração e autodepuração natural”, diz o professor.

Salatiel destaca que a tendência é que a qualidade da água se regenere, uma vez que o Guaíba é alimentado pelas águas de outros rios. Por outro lado, pontua que esses rios também irão trazer novas substâncias e que a qualidade de suas águas vai depender dos seus sistemas de esgotamento, de contaminação por agrotóxicos, entre outras questões.

“O tempo em que o Guaíba vai voltar, mais ou menos, a ter a qualidade que ele tinha antes, a gente não tem como te dizer agora sem fazer mais análises ao longo do tempo. Mas tem um ponto interessante, a gente fez uma parceria com a Fepam [Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler], que faz a análise das águas superficiais do Estado em alguns pontos monitorados. Ela faz coleta em três pontos no canal do Guaíba e na divisa com a Laguna dos Patos. A gente marcou a coleta ao mesmo tempo, então nós coletamos nas costas de Porto Alegre dia 4 de junho e a Fepam coletou no canal. No canal, como a hidrodinâmica é completamente diferente da costa, a vazão é maior [a água passa mais rápido], ali quantidade de coliformes totais e de E. coli já está quase normalizada. Só que na costa, como é muito diferente, ainda está acumulado, então continua sendo um problema”, explica.

Essas primeiras etapas de coleta resultaram na produção de mapas de risco para o contato com as águas da inundação nos municípios de Porto Alegre e Guaíba, que levam em conta a idade da pessoa (criança ou adulto) e o tempo de contato (1 ou 7 dias). A partir dos resultados, os mapas indicavam que as áreas com maior risco de contaminação por doenças geradas pelo contato com a água na inundação durante um dia em Porto Alegre eram as regiões dos bairros Belém Novo e Menino Deus, que tinham mais de 90% de risco. Já a partir de sete dias de contato, a Cidade Baixa também passava a ser considerada área de risco acima de 90% e diversas outras áreas da cidade passavam a ter risco acima de 50% de contaminação, como Cristal, Ipanema, Guarujá e Centro Histórico.

 

Foto: Reprodução/IPH
Foto: Reprodução/IPH

“Quanto maior o tempo de contato com as águas de inundação, o risco da pessoa contrair alguma dessas doenças aumenta. O que a gente tem visto no estado é um aumento bem significativo, principalmente de leptospirose, com várias mortes”, diz Salatiel.

De acordo com o painel de casos de leptospirose divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), já foram notificados até a quinta-feira (20) 5.659 casos da doença no atual ano epidemiológico, dos quais 404 foram confirmados, 1.661 descartados e 3.590 ainda estão sob investigação. Porto Alegra é a cidade com maior número de casos notificados: 1.617. Também foram confirmados 21 óbitos, com outros 7 ainda em investigação. O painel aponta que a curva de crescimento dos casos notificados acompanhou o início das enchentes no estado e perdurou próximo à casa de mil notificações semanais por quatro semanas, iniciando uma queda na semana passada e na atual, quando ainda foram notificados 460 casos.

 

Boletim divulgado pela SES nesta quinta-feira | Foto: Reprodução

Além dos microorganismos, o projeto também pretende testar as águas coletadas para a presença de outras substâncias, como metais e pesticidas, o que ainda não foi feito, mas será possível uma vez que as coletas foram preservadas.

Na mesma linha, Salatiel destaca que ainda serão necessárias novas pesquisas para identificar a contaminação ambiental causada pelas águas das enchentes nos solos e regiões pelas quais passaram. “Como teve muito arrasto de sedimentos, teve muita lavoura de arroz que foi completamente lavada, outras terras agricultáveis, tem indústria, tudo isso foi carregado para cá e teve vários depósitos. Então, tem muitos contaminantes que eles ficam absorvidos na parte sólida. Com o passar do tempo, eles começam a dessorver e a serem liberados para a água. Vai demorar um tempinho maior para conseguirmos dar essa resposta com respaldo técnico”, diz.

Se ainda é cedo para sabermos a extensão da contaminação causada pela enchente a médio e longo prazo, a cheia do Guaíba do ano passado também pode servir de exemplo. Após ficarem submersas em novembro passado, as quadras esportivas do Trecho 3 da Orla do Guaíba foram interditadas após testes laboratoriais, realizados por uma equipe da Unisinos, identificarem a presença de larva de Strongyloides stercoralis que pode causar diarreia, dor abdominal, sintomas pulmonares e lesões na pele. Além disso, foram encontradas amostras de ovo de Taenia sp., que é transmitida via ingestão de alimentos contaminados e pode causar teníase.

As quadras esportivas só foram liberadas para a população no final de março de 2024. Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Juventude (SMELJ) informou que ainda não tem laudo apontando as condições das quadras após a última cheia e elas seguem isoladas de forma preventiva para evitar a circulação e o uso pelas pessoas.

Apesar das constatações da pesquisa, o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) diz que não há nenhum risco para a população de Porto Alegre ao tomar a água que chega às torneiras pela rede regular de abastecimento — o que não inclui o contato direto com a água das enchentes nem a rede clandestina. O departamento diz que realiza diariamente 2,5 mil análises da água captada no Guaíba.

Diretora de Tratamento e Meio Ambiente (DT) do Dmae, Joicineli F. Oliveira Becker pontua que as alterações verificada na água do Guaíba desde as enchentes de maio não são diferentes em relação às registradas em outros momentos de eventos climáticos, seja a elevação no nível pelas chuvas ou a redução pela seca. “Sempre que a gente tem uma alteração mais drástica no clima, a água se altera e, nesse momento, não seria diferente. Tem muito material sendo carreado dos rios formadores, então sempre a gente tem aumento de turbidez, de matéria orgânica. Isso é natural do corpo de Guaíba”, diz.

Joicineli reforça que não há risco para as pessoas consumirem a água do Dmae. Ela reconhece que foram encontradas dificuldades que tiveram impacto no tratamento da água, mas que elas resultaram na redução da produção de água tratada, não na qualidade. “Naqueles primeiros dias da enchente, quando a turbidez ficou bastante elevada, o Dmae, em alguns momentos reduziu a produção para conseguir garantir o tratamento. Quando a turbidez sobe muito, a gente tem que reduzir um pouco a vazão para manter o processo controlado”, diz, acrescentando que essa foi uma das razões que contribuiu para o prolongamento do desabastecimento mesmo após a retomada do funcionamento das estações de tratamento.

Segundo ela, com a redução do nível das chuvas, a condição da água do Guaíba vai ficando mais próxima da normalidade, ainda que as chuvas recentes tenham resultado em novo aumento da turbidez. “Desde o início da inundação, a água tem se alterado bastante. Nós tivemos semana passada e nesta semana períodos de turbidez mais elevada, mas, no geral, ela já está entrando na normalidade, bem diferente do pico da inundação, no início de maio”, afirma.

Como vimos, há uma série de doenças de veiculação hídrica, ou seja, que podem ser contraídas em contato com a água contaminada. No entanto, a redução nos níveis das águas não significa que já não há mais risco de contaminação por essas doenças ou por outras que podem se aproveitar do cenário deixado.

A bióloga Paola Graciela dos Santos Morais, especialista em Saúde da Divisão de Vigilância Ambiental do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs/SES/RS) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em e Biologia Celular e Molecular da UFRGS, pontua que um grande foco de contaminação é o lodo contaminado.

“Esse lodo úmido é um ambiente muito propício para a gente contrair a leptospirose. É uma doença causada por uma bactéria em que a urina do rato acaba contaminando esses lodos. Se estamos com alguma ferida, alguma lesão aberta, e entra em contato com esse lodo, a gente se contamina”, diz. “Por isso é tão importante, quando a gente vai fazer a limpeza e higienização dos locais, usar EPI. Se a gente não tem disponibilidade de bota de borracha, um sapato impermeável, que a gente proteja os nossos calçados e as nossas mãos com sacos plásticos. É uma maneira de se proteger no caso de não ter o equipamento correto, o que muitas vezes vai ser o caso”, afirma.

Paola também alerta que, mesmo após a água baixar, outro foco de possível contaminação que permanece são os reservatórios de água. “A água é potável, só que, às vezes, o reservatório está sujo, então é bem importante que as pessoas tenham a noção de fazer a limpeza. Quando a gente fica muito tempo sem abastecer, a água baixa, fica tipo um lodo dentro da caixa d’água. É preciso retirar fazer e a limpeza com hipoclorito, com a ‘Qboa’, nunca usar sabão na caixa d’água. Isso é fundamental para evitar doenças como diarreia e infecções intestinais”, diz.

Outro alerta que faz é sobre a necessidade de descarte total de alimentos e bebidas que tiveram contato com a água contaminada, mesmo que em embalagens que foram preservadas fechadas. “Se ficou submerso, a gente infelizmente tem que descartar. Não há como a gente garantir a qualidade desse alimento e dessa bebida que vai estar embalada. Se ficou submersa, não adianta limpar por fora”, diz.

Além das doenças relacionadas às águas contaminadas, a bióloga destaca que essas pilhas de entulhos e os reservatórios de água são ambientes que facilitam a proliferação do aedes aegypti, o mosquito da dengue. “Como a enchente trouxe muito resíduo, muito pequeno material que vai servindo de criadouro, as pessoas limpando suas casas vão deixando esses resíduos acumulados na calçada para prefeituras recolherem. Também com os choques de temperaturas, chove, depois esquenta, chove de novo, isso vai criando o ambiente perfeito para o mosquito se criar”, diz. “A gente vai ter uma escalada de possíveis doenças que vão se acumulando de acordo com os ambientes, não tem uma doença que seja de maneira isolada. Então, a gente tem que fazer esse selamento para evitar que o mosquito entre e ele vai virando um criadouro de mosquito também porque tem abundância de água.”

Com a chegada do inverno, iniciado nesta semana, também aumenta o risco de síndromes respiratórias. “Isso não está diretamente ligada com a enchente, mas como a gente tem muitos abrigos, muito centros de doação, locais que as pessoas ficam muito tempo, essas doenças que são de infecção respiratórias têm uma maior probabilidade de se espalharem. A gente tem no Estado já circulando a influenza em grande quantidade, então é algo que a gente tem que estar atento”, afirma.

 

Montes de entulhos permaneceram e ainda permanecem por semanas em ruas da Capital e de cidades da Região Metropolitana | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

O projeto Sistemas de Saneamento e Saúde em Situações de Emergência também tem estudado o risco de contato com os resíduos deixados pela enchente, como móveis, roupas e outros bens que ficaram submersos e precisaram ser descartados, os chamados materiais inertes. Salatiel alerta que, quando a água baixa, vírus e bactérias permanecem nos resíduos sólidos que ficam, como lama, lodo, areia, etc.. “Enquanto tiver a umidade, eles conseguem permanecer ali de 10 a 15 dias”, diz.

Mesmo após a grande maioria das famílias já terem retornado e feito a limpeza de suas casas e comércios, como diversas regiões da Capital e de cidades da Região Metropolitana permanecem com montes de entulhos acumulados, o professor reforça a importância do uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) durante a limpeza de espaços e manuseio desse material. “No momento em que tu está lavando, por exemplo, com lava jato, começa a levantar aerossóis. Tem aquelas micropartículas de água que vão entrando em contato com os sólidos, com o lodo, elas levantam e tu acaba inalando, entrando em contato contigo. Nessa dispersão, pode ocorrer contaminações e aumentar os impactos na saúde”, diz.

Professor do Curso de Engenharia Química da (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), Claudio Crescente Frankenberg destaca ainda que o cuidado com o manuseio desses materiais é essencial porque ainda não é possível precisar quais tipos de substâncias tiveram contato com as águas que inundaram as cidades, como óleos, resíduos químicos, etc.

“Tu tem material que é um lodo. Nesse lodo, a gente vai ter toda uma flora microbiana que pode ser patogênica ou não. Em alguns locais, tu teve animais que morreram, tu teve muita comida que ficou estragada, daí entrou em processo de decomposição, que estão ali”, diz.

Por outro lado, ele pondera que também é preciso atenção com os riscos que poderão ser causados pelos resíduos das enchentes mesmo após serem retirados das ruas. Em Porto Alegre, após serem recolhidos, eles estão sendo levados para espaços chamadas de bota-espera, de onde serão levados para um aterro sanitário em Gravataí, contratado pela Prefeitura especialmente para recebê-los. Este transporte, contudo, ainda não iniciou, uma vez que a empresa que venceu a chamada pública para prestar o serviço desistiu um dia após ter sua contratação anunciada. A expectativa é de que uma nova empresa inicie o trabalho a partir da próxima semana.

“O que a gente vai ter agora com esse resíduo todo que está sendo recolhido? Porque é uma miscelânea. Por exemplo, eu posso queimar esse resíduo? Eu posso descartar de que forma? Se queimar, eu não sei o que eu tenho ali misturado, então daqui a pouco estou gerando um problema muito maior do que deixar ele ali. Agora, se eu deixo ali, o que acontece? Tu vai ter animais, tu vai ter uma série de insetos. Por exemplo, se a gente tivesse agora num período muito quente, seria, de repente, até mais crítico do que esse tempo que a gente está tendo agora, porque a proliferação de inseto seria muito maior. Então, são muitas variáveis e controlá-las é muito difícil. A gente não vai ter uma fórmula, primeira eu faço isso, depois isso. Vai ser uma busca”, diz.


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