Geral
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30 de junho de 2024
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21:05

Encontros mostram agenda da Agricultura Familiar em busca de maior espaço no debate global

Por
Marco Weissheimer
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Encontro no Paraguai marcou 20 anos de criação da Reunião Especializada da Agricultura Especializada no Mercosul (REAF) (Foto: Divulgação)
Encontro no Paraguai marcou 20 anos de criação da Reunião Especializada da Agricultura Especializada no Mercosul (REAF) (Foto: Divulgação)

Durante muito tempo, a agricultura familiar, assim como as agriculturas campesinas e indígenas, foram consideradas como sinônimo de uma agricultura arcaica e “atrasada”, que não podiam ser tomadas como alternativas sérias e consistentes para a busca de soluções para os problemas do meio rural e, de modo mais amplo, para os desafios alimentares que envolvem a sociedade como um todo. Hoje, porém, essas agriculturas se consolidam cada vez mais como espaços de criação e inovação em busca de um desenvolvimento rural sustentável, de produção de uma alimentação saudável e de qualidade e de práticas imprescindíveis para o enfrentamento dos graves e urgentes desafios colocados pelas mudanças climáticas.

Não se trata apenas do valor da agricultura familiar para a segurança alimentar e nutricional da população, mas também para a construção de outro modelo de produção de alimentos e de relação com a natureza. No mês de junho, três encontros realizados no Uruguai, no Paraguai e na Colômbia exemplificaram, cada um do seu modo, esse crescimento da importância da agenda da agricultura familiar na América Latina. Um dos elementos que indicam o caráter estratégico desse modo de produção agrícola foi a presença, nos três encontros, dos respectivos presidentes de cada país, chefes de governos de distintas orientações políticas.

Uruguai lança Plano Nacional de Agricultura Familiar

O Uruguai apresentou, dia 12 de junho, seu Plano Nacional de Agricultura Familiar 2024-2028, reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) como um pilar fundamental para transformar os sistemas agroalimentares de forma “eficiente, inclusiva, resiliente e sustentável”. O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, participou do lançamento do plano que estabelece um marco de ação para seu desenvolvimento. No Uruguai há hoje cerca de 80 mil pessoas ligadas à agricultura familiar e 29% do emprego no setor agrícola está ligado a esse tipo de produção, que é responsável também por 15% do valor bruto produzido pelo setor rural do país.

Documento sintetiza Plano Nacional de Agricultura Familiar do Uruguai (Reprodução)

O plano estabelece um conjunto de medidas para promover o desenvolvimento da agricultura familiar no país, destacando sua importância tanto para a economia, como para a segurança alimentar, para a preservação da identidade cultural e costumes, bem como para manter o território rural ocupado. Entre outras medidas, o plano prevê a criação de um marco legal e institucional para apoiar a juventude, promover a igualdade de gênero, fortalecer as organizações da agricultura familiar, melhorar a qualidade de vida dos agricultores, promover a sustentabilidade e o fortalecimento dos territórios rurais.

O Plano Nacional de Agricultura Familiar uruguaio foi elaborado por meio de um processo participativo que envolveu a realização de 53 consultas, das quais participaram cerca de 1.100 pessoas e 40 instituições. Neste processo, foram avaliados os atuais obstáculos à agricultura familiar no país e se formularam 1.200 propostas. O documento final sistematizou essas propostas em 52 medidas concretas que permitirão medir seu cumprimento e desenvolvimento.

Paraguai fez balanço de 20 anos da REAF

O Paraguai sediou, de 18 a 20 de junho, a 40ª sessão da Reunião Especializada de Agricultura Familiar do Mercosul (REAF). O encontro ocorreu no Campus da Universidade Nacional de Assunção (UNA), na Faculdade de Ciências Agrárias, na cidade de San Lorenzo. O Paraguai ocupa atualmente a Presidência Pro-Tempore da REAF, por meio do Ministério da Agricultura e Pecuária. 

A REAF foi criada em 2004 como uma iniciativa no âmbito do Mercosul que pretendia ajudar a construir políticas públicas para o fortalecimento da agricultura familiar, entendida não apenas como um setor produtivo, mas como uma articulação econômica, política e social, com um potencial de desempenhar um papel estratégico na construção de outro modelo de desenvolvimento. A REAF é um fórum formado por representantes de governos e da sociedade civil vinculados aos países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela) e Mercosul Ampliado (hoje, Bolívia, Chile, Peru, Equador, Colômbia, Guiana e Suriname).  Em 2024, esse fórum está completando vinte anos. 

A 40ª REAF marcou a comemoração de 20 anos desse espaço de diálogo político regional que resultou na criação de diversas políticas públicas para agricultores familiares, povos indígenas, comunidades tradicionais, mulheres e jovens no âmbito do Mercosul ampliado. Participaram delegações dos Estados Partes do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e dos Estados Associados (Chile e Colômbia).

O presidente do Paraguai, Santiago Peña, participou do encontro, onde defendeu a capacidade da região para fornecer alimentos de qualidade a todo o mundo. Peña disse que essa é, ao mesmo tempo, uma responsabilidade e uma grande oportunidade para os países que integram o Mercosul. O presidente paraguaio também destacou o projeto Fome Zero nas Escolas, que visa universalizar o acesso dos estudantes paraguaios à alimentação escolar, comprando pelo menos 10% dos alimentos da Agricultura Familiar. O programa paraguaio se alinha a outras iniciativas de compras públicas de alimentos da Agricultura Familiar na região, inspiradas nos programas brasileiros de Aquisição de Alimentos (PAA) e de Alimentação Escolar (PNAE).

A reunião no Paraguai debateu as principais conquistas atingidas nos 20 anos de REAF e os desafios para o futuro, com o objetivo de ampliar o debate público sobre as lições aprendidas com a experiência de diálogo deste espaço, como mecanismo de integração regional e de fortalecimento da agricultura familiar. Entre esses desafios está o cumprimento dos objetivos estabelecidos pela Década das Nações Unidas sobre a Agricultura Familiar, como a transformação dos sistemas agroalimentares em sistemas mais inclusivos, inovadores, representativos, com diversidade regional, de gênero e racial/étnica.

Colômbia: Feira da Agricultura Camponesa, Familiar e Comunitária

De 20 a 23 de junho, foi a vez da Colômbia sediar, em Bogotá, a primeira Feira da Agricultura Camponesa, Familiar e Comunitária, organizada pelo Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural (MADR) daquele país. A cerimônia de abertura contou com a presença do presidente da Colômbia, Gustavo Petro, que destacou o esforço que vem sendo feito para ampliar a cooperação entre Colômbia e Brasil, como ocorreu durante a visita do presidente Lula ao país em abril deste ano. Petro destacou a força da produção agrícola do país que, em 2023, alcançou um crescimento de 10,3%, índice que até então nunca havia sido atingido.

Feira da Agricultura Familiar, Indígena e Camponesa na colômbia (Foto: Assessoria InternacionaASCOM/MDA)

Segundo a ministra do MADR, Jhenifer Mojica, a feira colombiana foi inspirada na 14ª Feira Baiana da Agricultura Familiar e Economia Solidária (FEBAFES), realizada em dezembro de 2023 e visitada por ela a convite do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) do Brasil. O evento em Bogotá reuniu mais de mil associações produtivas colombianas, possibilitando que os visitantes adquirissem alimentos diretamente dos agricultores familiares. O Brasil foi o país convidado e esteve representado, com apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) por 14 empreendimentos da sociobiodiversidade e agricultura familiar que, além de apresentarem suas produções, trocaram experiências com agricultores colombianos. 

Os três encontros foram marcados por debates, com diferentes inflexões, sobre a conexão da agricultura familiar hoje com agendas globais contemporâneas relacionadas a três temas centrais: mudanças climáticas (incluindo aí os temas da justiça climática, mitigação dos efeitos dos extremos climáticos, resiliência climática, adaptação e transição), segurança alimentar e alimentação saudável (tema que carrega um potencial para novas alianças com novos circuitos econômicos e novos setores sociais), e redução das desigualdades. Os debates indicaram o fortalecimento da percepção de que o avanço dessa agenda nos debates globais ainda enfrentam muitos desafios que exigem o aprofundamento das relações entre as organizações da agricultura familiar, os governos nacionais e as agendas internacionais. Os encontros no Uruguai, no Paraguai e na Colômbia indicaram uma parte importante do caminho a seguir.


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