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13 de junho de 2024
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08:54

Enchentes: Voluntários escasseiam e Prefeitura firma contratos de R$ 16 milhões para suprir demanda

Por
Bettina Gehm
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Escola de Educaçao Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS serve de abrigo a 250 pessoas. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Escola de Educaçao Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS serve de abrigo a 250 pessoas. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Nesta quarta-feira (12), 2,7 mil pessoas ainda estão em 58 abrigos montados em Porto Alegre por causa da enchente que assolou o estado. O número diminui a cada dia, mas também vem caindo o número de voluntários que mantêm os abrigos funcionando. Para suprir essa demanda, a Prefeitura contratou 164 agentes sociais através de organizações da sociedade civil.

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Conforme a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), cada uma dessas organizações deve atender até 2,1 mil pessoas. Alguns abrigos são atendidos pela Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (Adra), outros pela associação religiosa Atos 29, outros por servidores da Prefeitura realocados temporariamente para esta função.

Os termos de colaboração com as três entidades somam mais de R$ 16 milhões: o trabalho da Adra vai custar R$ 9,35 milhões; o da Atos 29, R$ 3,99 milhões. Um terceiro contrato, de R$ 2,84 milhões, foi firmado com a Explorer, uma empresa de call center que vai fornecer mão de obra de médicos veterinários.

A Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid) da UFRGS é um dos maiores abrigos da cidade: já chegou a abrigar 650 pessoas, e hoje são cerca de 250. Aberto às vítimas da enchente desde o dia 4 de maio, o local dispunha de voluntários em demasia no início. Agora, mesmo com mil pessoas no grupo de WhatsApp do voluntariado, a coordenação luta para fechar escalas de vinte pessoas por turno.

“Em 24 horas, circulavam mil pessoas para poder fazer o abrigo acontecer. Isso durante umas duas semanas. Hoje, há menos de 500 voluntários em 24 horas. Não é o suficiente para o abrigo funcionar. Precisaria de mais”, afirma a professora Raquel da Silveira, uma das que assumiu a coordenação do abrigo.

Segundo o titular da Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio, André Barbosa, o problema é geral. A pasta ficou responsável por criar o formulário de cadastro para o voluntariado. “Nos primeiros 10, 15 dias, a gente não teve problema com voluntários para fazer o acolhimento. A partir daí, temos notado que as pessoas estão demorando para atender ao chamado ou não estão atendendo. Não foi surpresa para nós, porque sabíamos que viria a retomada da vida das pessoas”, diz.

A Esefid é um dos quatro abrigos onde atua a Adra. A organização ficou responsável pelo dormitório, pelos banheiros e pela entrada e saída dos abrigados.

“O acordo inicial da Prefeitura foi colocar 20 pessoas da Adra aqui. Quando ainda tínhamos 600 abrigados, esse número nunca foi atingido. Mas hoje temos um número menor, porque também tem menos abrigados”, afirma Raquel. “É uma relação que foi se compondo, mas não sem atrito. Os voluntários que têm vínculo com a Universidade aprenderam a fazer um trabalho aqui dentro, criaram fluxos de trabalho, e abrir mão disso para a Adra poderia mudar todo o fluxo que já está na rotina das pessoas. Hoje o abrigo funciona bem, as pessoas estão adaptadas”.

 

Professora Raquel da Silveira e a estudante Mariana Gauer, voluntária no abrigo da Esefid. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A Adra já atuava em Porto Alegre antes da enchente, pois mantém uma parceria com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), gerindo um abrigo para a população em situação de rua e uma casa de passagem inaugurada em outubro de 2023. Quem explica essa relação é Daniel Fritoli, pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia que atua desde 2020 como diretor regional da Adra no Rio Grande do Sul.

“No dia 2 de maio, fomos chamados pela Prefeitura para darmos apoio à gestão de, inicialmente, dois abrigos”, relembra Daniel. Mas esse número dobrou para quatro locais já nos dias seguintes. “Os primeiros vinte dias foram bem caóticos, até que houve a preparação de um termo de colaboração firmado entre a SMDS e a Adra”. Conforme Daniel, o acordo foi assinado em 21 de maio e tem validade de seis meses. Os abrigos com atuação da Adra ficam na Esefid, no Ginásio da Brigada, no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete) e no Centro Vida.

No total, a Adra vai contratar 200 agentes para trabalhar nos abrigos. O cálculo é de um trabalhador para cada 20 abrigados. O pastor ressalta que a organização não obtém lucro na parceria com a Prefeitura: “não somos uma empresa terceirizada, não é assim que nos apresentamos. É uma organização social sem fins lucrativos”, afirma Daniel. Já os colaboradores que trabalham diretamente nos abrigos são contratados via CLT, com plantões de 12 horas – e folga de 36.

A docente Raquel, que há 40 dias se dedica ao abrigo da Esefid, relata que esse período parece ser muito mais longo. Isso porque, logo no início da crise, o voluntariado começou a organizar uma “mini cidade” no campus. Além do dormitório, existe uma sala só para os materiais de limpeza. Quatro salas de aula e a entrada da biblioteca formam a rouparia: um espaço onde os voluntários separam, lavam e entregam doações de roupas a quem perdeu o que tinha para vestir. Quando o Sul21 visitou o abrigo, um grupo de pessoas se concentrava nos preparativos para a festa junina que aconteceria ali.

A alimentação é feita no Restaurante Universitário, preparada pela mesma terceirizada que servia o almoço e a janta dos estudantes. O diretório dos estudantes virou um lactário para crianças em fase de amamentação. Tendas foram instaladas para atendimento médico e psicológico. Os animais dos abrigados ficam em uma parte separada, dentro de outra tenda, onde o atendimento veterinário é constante. Existe ainda um grupo de voluntários que propõe atividades para as crianças abrigadas. 

 

Escola de Educaçao Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS serve de abrigo a 250 pessoas. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Entre as 250 pessoas hoje abrigadas na Esefid, existem 43 famílias (um total de 97 pessoas) que não têm casa para voltar. Outras famílias vivem a rotina de limpeza das residências e a necessidade de dormir no abrigo enquanto o trabalho não termina. “Alguns contam que, mesmo limpando a casa, não vai dar para voltar. Seja pelo cheiro do lugar ou pela insegurança”, afirma Raquel. A maioria dos que ainda estão no abrigo são moradores da Zona Norte, que ficou alagada por mais de um mês

A preocupação agora é com a possível volta às aulas na UFRGS. Uma portaria publicada pelo reitor Carlos Bulhões em 29 de maio suspende as atividades acadêmicas presenciais e não presenciais até 15 junho na Universidade. No entanto, o novo calendário acadêmico ainda não foi divulgado. 

Como o quadro de voluntários da Esefid é composto majoritariamente por professores e alunos, retomar as aulas significa que muitos não vão poder se dedicar mais tanto ao abrigo. “O que a gente vem falando é da necessidade de não desmobilizar os voluntários que estão aqui”, aponta Raquel.

Mesmo que a unidade retome as atividades de forma online, vai precisar de um tempo até reorganizar todo o espaço do campus – afinal de contas, as salas de aula viraram depósitos de doações. 

O titular da SMAP afirma que a pasta está trabalhando para conseguir manter os abrigos por mais tempo. “Toda essa resposta de moradia, de lar provisório, bônus, demora muito. Eu falo do aparato estatal necessário nas três esferas para isso. Tem toda uma burocracia envolvida, enquanto isso as pessoas estão abrigadas”, pontua André.

 

Escola de Educaçao Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS serve de abrigo a 250 pessoas. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Raquel afirma que a Prefeitura tem visitado o abrigo da Esefid para fazer o Cadastro Único das famílias e garantir que elas tenham acesso aos auxílios do governo. Quando uma família sai definitivamente do abrigo, é como se fosse uma mudança: os voluntários entregam cesta básica e um kit de limpeza da casa, além de roupas e o colchão usado pelos abrigados durante a estadia no campus. Ônibus e caminhões enviados pela Prefeitura se encarregam de transportar os objetos que vão possibilitar um recomeço a quem precisou deixar tudo para trás.


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