Geral
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30 de junho de 2024
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09:33

Do zelo à exposição: Como tragédia vivida na enchente ameaçou o direito das crianças

Por
Bettina Gehm
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Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Um abrigo com estrutura para receber mais de 50 crianças foi montado em Canoas no dia 6 de maio, quando a enchente no Rio Grande do Sul se agravava. A Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Vó Babali se preparou para abrigar menores que estariam perdidos dos responsáveis em meio à tragédia, de acordo com informações que circulavam rapidamente – em grande volume – na época. O local acabou recebendo somente duas crianças.

“Quando eu fui contatada para abrir a escola para servir de abrigo, não tínhamos uma estimativa de quantas crianças viriam, era tudo muito incerto. Chegou a circular uma lista com 50, 60 nomes. O Conselho Tutelar e o Ministério Público fizeram uma busca em todos os locais de abrigo do município e constataram que não haviam crianças desaparecidas ou apartadas das famílias”, relata Geise Ortiz, diretora da EMEI Vó Babali, que ficou responsável pelo abrigo.

No momento em que toda a população se voltava para a tragédia, fotos de crianças supostamente perdidas tomavam as redes sociais e eram compartilhadas aos montes. ‘Desaparecido (a)’ era a palavra que aparecia em letras garrafais na maior parte das vezes.

Segundo a doutora em Comunicação Juliana Tonin, que tem pós-doutorado em Sociologia da Infância, a circulação das imagens acabou sendo uma forma de rotular e estigmatizar os menores. “Uma definição externa do que foi a experiência da criança naquele momento”, resume. “Esse ‘desaparecimento’, que pode ser um grande rótulo para um acontecimento transitório, marca a criança. Inclusive ela pode processar a experiência de uma maneira diferente [do que inicialmente] se ela vê isso na internet”. A comunicóloga defende o uso da palavra “desacompanhado (a)”, que define com mais exatidão a situação temporária de algumas crianças. Quanto às fotos, o risco é elas serem trabalhadas por inteligência artificial. A criança pode ser vitimizada por outros tipos de uso da imagem dela.

Mas, no auge da enchente, a preocupação era outra: Geise relata que voluntários levavam grandes quantidades de fraldas para a EMEI e pediam para ver as crianças. “Nós não aceitamos nenhum tipo de voluntário, porque a vulnerabilidade [das pessoas] já era extrema – imagina para a criança. Só quem trabalhou com as crianças foram as professoras daqui. Nós imaginamos outro cenário, que felizmente não se concretizou”.

Uma das crianças que foi para a EMEI Vó Babali veio de outro abrigo, mas não estava perdida dos pais. A mãe dela teve uma crise nervosa e precisou de atendimento psicológico, por isso a filha foi realocada. A segunda criança havia sido deixada em um abrigo de Cachoeirinha pela mãe e então foi encaminhada para Canoas. “Pelo que nos foi relatado, [a mãe] é usuária de drogas”, afirma a diretora. Em cerca de uma semana, ambas as crianças voltaram para as famílias. A que havia sido deixada no abrigo de Cachoeirinha foi entregue para uma tia com quem o Conselho Tutelar entrou em contato.

Mesmo que o abrigo tenha recebido apenas duas crianças, Juliana considera importante a medida da Prefeitura de Canoas. “Para haver uma orientação oficial, precisava ser criada uma solução oficial – como o espaço exclusivo. Para direcionar as pessoas. Esse espaço vai além de receber a criança, mas protege a circulação da imagem delas e inibe esse movimento de desinformação”, explica.

O compartilhamento desenfreado de informações falsas ou errôneas atrapalhou o trabalho da Defensoria Pública do Estado (DPE RS). “Para nós, chegavam muitos vídeos e fotos”, relembra a defensora Paula Simões Dutra de Oliveira, dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente na DPE. “Isso gerava uma demanda que muitas vezes não era atual ou verdadeira, desviando o foco das necessidades reais”.

A instituição precisou criar uma planilha para relacionar as crianças que estavam sendo procuradas por familiares. “Todas as famílias que buscavam por suas crianças faziam um cadastro junto ao Conselho Tutelar e essa lista era compartilhada entre as instituições. A partir daí, se promoviam buscas ativas pelos abrigos da cidade e das cidades vizinhas”, explica Paula.

Essa relação chegou a ter 300 nomes, mas foi diminuindo a cada dia – e isso não significa que chegou a haver crianças desacompanhadas. “Os casos de crianças que não tiveram seus familiares/representantes encontrados foram muito reduzidos. A demanda foi muito mais no sentido de busca por crianças do que crianças desaparecidas”, afirma a defensora.

 

Crianças que estiveram no abrigo da Casa de Mulheres Mirabal. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Para a comunicóloga Juliana, as informações falsas envolvendo crianças nem sempre vêm de más intenções – embora algumas sejam, sim, criadas para gerar engajamento. “Muito disso é também pelo pânico que a gente sente no momento. Todo mundo sentia uma vontade muito grande de ter as certezas, a desorientação era muito grande”, afirma.

Mal-intencionadas ou não, as fotos de crianças supostamente desaparecidas geram emoções negativas – para alguns, foi a parte mais triste de toda a tragédia. “Socialmente, temos um ímpeto, um instinto de zelo pelas crianças desde que passamos a tentar reduzir o índice de mortalidade infantil”, explica Juliana. “Na virada do século 18 para o 19, o surgimento da pediatria foi um marco para fazer com que as crianças sobrevivessem”. Depois, a proteção das crianças passou a ser garantida na Constituição. Esses fatores tornam a criança prioridade absoluta.

Na prática, segundo Juliana, esse zelo pelas crianças faz com que a imagem de uma delas ferida, doente – ou então identificada como desaparecida – se torne um “símbolo de fracasso humanitário”. “É como se [a imagem] mostrasse nossa incapacidade de proteger a vida humana, na sua base, na sua promessa de futuro – como se isso não nos fosse possível. Representa a morte dos nossos ideais, como uma mensagem de fracasso”, detalha.

Se o cuidado com as crianças é fomentado pela garantia de direito delas, o amplo compartilhamento de imagens dos pequenos pode ir na contramão disso. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a privacidade e a imagem como um direito. Então, como diferenciar o que é necessário postar e o que vai expor desnecessariamente uma criança? O Governo Federal já orientou, em portaria instituída há mais de uma década, que não pode haver a flexibilização de direitos da criança e do adolescente numa situação de catástrofe.

Na prática, entretanto, pode não ser tão simples. “Nós temos uma tendência, quando desesperados, a flexibilizar alguns direitos. Quando já temos esse hábito de falar tudo por imagens, numa situação de ansiedade vamos utilizar os recursos que já conhecemos”, explica Juliana. “É comum pensar ‘já que a criança está desaparecida e a família está desesperada, essa imagem pode ser compartilhada’. Mas, do ponto de vista dos direitos da criança, de que forma isso preserva ela no futuro? Se tivermos uma organização, um encaminhamento formal que funciona, o desespero é vencido – gera um alívio na ansiedade da família”.


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