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29 de junho de 2024
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09:19

Bairro Guarujá ainda vive em maio de 2024: ‘É um pesadelo’

Por
Luís Gomes
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Esquina das ruas Jacipuia e Oiampi, no bairro Guarujá, permanece alagada quase dois meses após início da enchente de maio de 2024 | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Esquina das ruas Jacipuia e Oiampi, no bairro Guarujá, permanece alagada quase dois meses após início da enchente de maio de 2024 | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Na esquina das ruas Jacipuia e Oiampi, bairro Guarujá, em Porto Alegre, o pós-enchente ainda não chegou. As casas seguem vazias. As raras pessoas que circulam no local ainda tratam de limpar e remover o entulho de seus imóveis. Quem quiser se aventurar de galochas ficará com a água até o joelho. É como se o mês de maio ainda não tivesse acabado. Móveis e roupas que puderam ser salvos ainda secam nos jardins. Os gramados seguem mortos.

No auge da enchente, não havia como distinguir o que era Guaíba e o que era pavimento nas quadras mais próximas da orla do bairro Guarujá. A Av. Guaíba, que passa ao largo da orla, tinha correnteza. Nas ruas internas, as casas pareciam ter sido construídas no meio d’água.

Ao longo de junho, com a redução no nível do rio, enquanto a maior parte da cidade voltava para uma normalidade possível, o bairro teve apenas momentos em que se viu quase livre de inundações. Mas a chuva ia e voltava. Quando parou, como nesta semana, o vento sul teimou em soprar, trazendo a água de volta. Na última vez, na quarta-feira (26), os moradores chegaram a ver a água invadindo seus pátios. Dois dias depois, o bairro estava “quase seco”, com exceção da esquina da Jacipuia e Oiampi.

Dilva Thoma mora há 20 anos no Guarujá. Sua casa, bem na esquina da Jacipuia com a Av. Guaíba, tinha um muro de dois metros. Não existe mais, foi arrastado pela correnteza. Os tijolos que sobraram viraram entulho. Mesmo destino que tiveram três televisões, máquina de lavar, notebook, micro-ondas, camas e muito mais.

 

A casa de Dilva era cercada por um muro de dois metros de altura | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Nem ela, nem a filha ou o genro, com quem divide o imóvel, sabem quando poderão voltar para casa. Na manhã desta sexta (28), conversava com um trabalhador que contratou para refazer o canil de seus sete cães. Eram oito, uma morreu de leptospirose. Atualmente, estão abrigados na casa de amigos, no Cristal. “Eu tenho que ir todos os dias lá para alimentá-los. Isso é trabalhoso”, diz Dilva.

Os cães, então, devem voltar primeiro. Como ela está hospedada na casa de outra amiga, também no Guarujá, poucas ruas acima, onde não alagou, a ideia é facilitar a visita e alimentação diária dos animais.

Dilva explica que a Jacipuia tem um problema específico, que é o fato de estar abaixo no nível do Guaíba. Com isso, os alagamentos são frequentes, seja pela água que vem direto do rio — mais raro –, seja pela que vem de baixo, da rede cloacal — mais comum. É um problema conhecido por todos, inclusive pelo prefeito Sebastião Melo, que mora no bairro, mas numa parte em que a água já secou.

“Desde 2015, o Melo prometeu para nós, aqui nessa esquina, ele era vice do Fortunati, se eleito fosse, ele resolveria para nós. Enquanto isso não acontecer, nós estamos aqui, com 30 a 40 cm de lodo e esgoto”, diz Dilva.

Um recado ao prefeito agora pode ser visto em uma das muitas casas da Oiampi que está à venda.

 

Recado deixado ao prefeito em casa de vizinho no bairro Guarujá | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Ao ser perguntada sobre como está a situação dos vizinhos, ela vai apontando casa por casa e dizendo o destino de cada um. “Se mudou”, “não voltou”, “vendeu”.

Se dependesse só da vontade, Dilva também deixaria o Guarujá para trás. Com a água batendo na porta de sua casa, o medo ainda persiste. Mas para onde ir? “Alugar é uma coisa que é complicada também. Comprar? Isso aqui é meu, então é difícil. Não tem como vender, o bairro parece bairro fantasma”.

Maria Eugenia Aguilera chegou ao Brasil em 1º de outubro de 1975. “Uma data que eu lembro muito bem”. Veio a Porto Alegre com o marido, instalando-se em frente ao antigo estádio Olímpico. Mas foi no Guarujá, há 47 anos, que começou a construir sua vida e criou as duas filhas.

Moradora da Rua Oiampi, ela está acostumada com os alagamentos. Mesmo com a água estacionada na frente de casa, sorri. Joga conversa fora ao receber a entrega de um botijão de gás, coloca brincos para ficar bonita na entrevista e até encontra tempo para dar conselhos à reportagem.

O trauma, contudo, permanece. Em novembro passado, a água já tinha entrado dentro da casa, estragando o fogão. A geladeira, na época, deixou secando no pátio e voltou a funcionar. Dessa vez, não teve a mesma sorte. Móveis, eletrodomésticos, roupas, tudo perdido. O carro permanece estacionado. Coberto de barro, com pneu furado e um motor que não dá partida. Por enquanto, não quer saber quando vai mandar consertar.

 

Carro da família permanece onde ficou nos últimos dois meses, estacionado | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Quando a água voltou a subir na quarta-feira, como já tinha visto antes, foi “mais fácil”. “Jesus, vou ter que sair de novo. Mas como eu não tenho tanta coisa na casa, é só pegar os bichos e sair”.

Ainda assim, não nega o susto. Ficou sentada à janela da sala, que dá de frente para a Oiampi, observando a água subir, passar o portão e começar a invadir o jardim. “Subiu, subiu, até que começou a baixar. ‘Não vai subir’. E fui dormir. Não subiu”.

Já pensou em se mudar? “Eu sou touro, né. Teimosa…Não, a casa é minha, vou ficar… Se tu visse como era arrumadinha e bonitinha a casa… Agora, está limpa”.

Maria Eugenia conta que recebeu muitas doações de amigos para reequipar sua casa. Camas, panelas, tudo que precisa uma casa, diz. “Imagina ter tudo novo e voltar [a perder]. Eu tenho que comprar uma geladeira agora, porque a minha não funciona mais. E se sobe tudo de novo? Só quero que não se repita mais”.

 

Chilena, Maria Eugenia mora há 47 anos no Guarujá | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Marilena Donning já decidiu: vai se mudar. Mas decidir é só o primeiro passo. Para virar realidade, vai ter que achar alguém para comprar a sua casa.

“Eu não tenho condições de ficar aqui. Estou arrumando para ficar minimamente habitável a casa. Mas, assim que eu puder… porque agora eu não tenho condições de passar isso adiante, porque isso daqui, até conseguir vender ou que alguém se interesse, muita obra terá que ser feita por aí afora nesse nosso rio Guaíba. Mas, com certeza, meu marido tem falado com muitos moradores, está todo mundo pensando em sair daqui”.

 

Funcionários trabalham na limpeza da casa de Marilena | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Moradora da Oiampi há 40 anos, Marilena diz que, da casa, só sobrou a “casca”. “Olha ali, isso aqui era a minha cozinha”, diz, apontando para uma pilha de madeiras destruídas sobre a calçada. A ideia de momento é limpar, reorganizar e reequipar, com móveis mais simples, não como era antes. “Vou investir em materiais bons? Não vou, porque é muita insegurança. Mas, torná-la minimamente habitável, sim.”

Com a água descansando em frente à sua casa, ela diz que sempre foi bom morar no bairro, mas, agora, cada chuva que cai traz à tona a insegurança se poderá continuar ou terá que sair. “Eu estou vivendo um pesadelo, é desolador”.

 

Oraci volta para casa todos os dias para a operação de limpeza | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Quem vê de fora, acha que a casa de Oraci Moraes e Humberto Cristovam, localizada na Av. Guaíba, suportou bem a enchente. A estrutura está de pé, as lajotas estão bem encaixadas e limpas, até mesmo as marcas da enchente que não deixam nenhum vizinho esquecer a altura que a água chegou mal podem ser vistas.

As sólidas paredes externas, contudo, apenas escondem o estrago causado internamente pela força do Guaíba. Do muro que separava a casa do vizinho, só restaram vestígios. Um convite para entrar na casa, contudo, expõe a fúria d’água. As paredes dos fundos não existem. “Eu tinha um quiosque, não sei para onde foi”, diz Humberto.

A casa em que a filha do casal mora com duas crianças, anexa, sequer tem fundos. As paredes do quarto da neta, o primeiro a ter contato com a água do Guaíba, não existem mais. O banheiro não tem teto. A situação do vizinho, aquele do qual a casa do casal era separada por um muro, é ainda pior. A moradia é uma pilha de destroços. Parece que foi atingida por um míssil, mas foi o Guaíba, que a vida inteira esteve ali, propiciando um belo pôr do sol.

 

O que restou do banheiro e do quarto da neta de Oraci e Humberto | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Quase dois meses depois do início da enchente, Oraci e Humberto não sabem se vão voltar ou não. Essa é a pergunta que se fazem nas últimas semanas, quando deixam diariamente a casa de um familiar na Av. Juca Batista para ir limpar o imóvel, uma jornada de 12 horas para que, ao menos a entrada, remetesse à vida antes de maio. Já está quase tudo limpo. Como na cozinha, só que esta não tem nenhum móvel, apenas o porcelanato da pia.

“É muito difícil, porque a gente tem medo de comprar algum móvel. Por exemplo, nós perdemos todos os móveis. A casa ficou de pé. E a casa de trás que tinha, que era da minha filha, caiu tudo. E a da vizinha aqui do lado, também. Caiu todo esse muro. E agora, o que a gente espera? Botar os móveis ou não botar os móveis? A gente não sabe o que faz. Nós estamos limpando, já está todinha limpa por dentro.”

Na manhã desta sexta-feira, o casal seguia limpando a casa.  Todos os dias, por doze horas, há semanas. Na quarta-feira, a mesma coisa, mas com uma diferença, soprava o vento sul. Com ele, voltou a água. Por volta das 14h, Humberto deixou de ouvir o barulho vindo da Av. Guaíba. Estava tudo em silêncio, diz. “‘Tem coisa errada’. Porque tem muitos ônibus e caminhões aqui. Saímos na rua, o rio estava aqui na rua. Em duas horas o rio estava aqui”, diz, apontando para o joelho.

 

Oraci e Humberto adotaram rotina de limpeza de 12 horas  diárias | Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A água vai e volta. Assim tem sido o maio prolongado, que avançou sobre junho, para os moradores do Guarujá. Apesar do que diz o calendário, julho talvez também tarde a chegar. A previsão dos professores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS) é de manutenção dos níveis do Guaíba acima da cota de alerta nos próximos dias, com possibilidade de vento sul e volumes vindos de afluentes causarem elevação no final de semana, podendo, no pior cenário, superar mais uma vez a cota de inundação.

“É uma pressão psicológica. Quem está bom da cabeça, ainda tira de letra. E quem não está?”, pergunta Humberto.

Confira mais fotos do bairro Guarujá: 

 

Vizinhos do casal tiveram a casa arrasada pela força d’água | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Área onde família de Oraci e Humberto se reunia para fazer churrasco, aos fundos da casa, agora tem buracos na parede | Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

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