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26 de maio de 2024
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10:24

Moradores do Humaitá clamam por volta para casa: ‘Quero que os políticos façam baixar aquela água’

Por
Luciano Velleda
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Miguel (à esq) e Gérson estão acampados no acostamento da Freeway a espera de poder voltar para casa. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Miguel (à esq) e Gérson estão acampados no acostamento da Freeway a espera de poder voltar para casa. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Tão perto, tão longe. Acampados no acostamento da Freeway, próximo à Arena do Grêmio, diversos moradores do bairro Humaitá têm passado os dias observando suas casas submersas na água que ainda inunda a região. O sentimento é de revolta com o poder público, seja prefeito ou governador, às vezes nem fazendo diferença entre um e outro. São pessoas que não aguentam mais estar à deriva em pleno asfalto. O pensamento fixo é cobrar dos responsáveis que façam algo para baixar a água que ainda os impede de voltar às casas e contabilizar os prejuízos causados pela maior enchente da história de Porto Alegre.

A carne picada, cozida no molho temperado numa frigideira grande, espera os minutos que faltam para o macarrão ficar pronto e o almoço ser servido. O fogão improvisado está colocado sob a lona preta, num lado fixada junto a lateral da van cinza e, no outro, à barraca montada em cima de um pallet azul de borracha. Ali, no meio da área coberta pela lona, Gerson Otávio criou seu acampamento temporário, acompanhado pela esposa e alguns amigos.

Sacolas de roupas, calçados, cadeiras, galões d’água, potes de mantimentos e botijão de gás ocupam o espaço, compartilhado ainda com dois cachorros.

“Cuidado com esse!”, alerta Gerson, referindo-se ao animal maior, branco, de porte grande e cara de poucos amigos.

Gesseiro, 44 anos, pai de quatro filhos, ele é escalado pelos amigos para contar como têm sido a vida do grupo no acostamento da Freeway. Estão ali há cerca de 10 dias. Antes, assim que as águas do Guaíba tomaram conta do bairro Humaitá, ficou abrigado junto com muitos outros vizinhos no clube Sogipa. Foram dias agitados. Os sucessivos resgates de moradores criaram um ambiente frenético no abrigo. A organização da comunidade possibilitou colchões, roupas e alimentação para quem chegava e ali ficava.

Gerson lembra do diálogo firme que teve com um homem que, junto com a família, começava a esmorecer o ânimo. “Falei pra ele: ‘Enxuga a lágrima, levanta a cabeça, tua família precisa de ti’.”

Alto, de ombros largos, vestindo bermuda preta esportiva e camiseta também preta da Juventus, time de futebol da Itália, ele se expressa bem, uma fala contínua e concatenada, por vezes com humor, apesar do triste momento. Os olhos brilhantes não expressam tristeza, apenas indignação.

“Eu não sou coitado. A gente aqui não é coitado. Eu não quero dinheiro, vale isso ou vale aquilo, quero que esses políticos façam baixar aquela água pra eu poder voltar pra casa”, afirma, apontando a inundação que toma conta do bairro.

 

A inundação do bairro Humaitá, vista do acostamento da Freeway. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Em cada ponderação sobre o drama que está vivendo, ele faz questão de expressar dignidade. Demonstra saber das promessas de recursos vindas do governo federal e estadual, mas não dá muita atenção ou cria expectativa. O pensamento fixo é voltar para casa, encarar o prejuízo e poder trabalhar novamente.

“Não tenho inveja de quem tem dinheiro não, quero mais que tenham, porque na hora que precisarem fazer gesso no apartamento, chamam o negão aqui!”

Dos quatro filhos, de relacionamentos diferentes, dois moram com ele e a esposa, mas não estão à beira da Freeway. Orgulhoso, conta que a menina se formou em secretariado e está abrigada em casa de amigos. O menino, com quase 2 metros de altura, tem se destacado jogando basquete e também está seguro em outro endereço. A esposa, companheira há 27 anos, está firme com ele no acampamento improvisado.

Quando a enchente começou, Gerson estava trabalhando no interior e voltou às pressas para Porto Alegre ao perceber que a coisa seria grave. Logo constatou que não teria como permanecer na sua residência. Assim que deixou os filhos em segurança, o gesseiro pegou um bote que costuma engatar na van para pescar e caçar na região de Mostardas e tratou de resgatar a vizinhança. Agora, com muitos moradores que decidiram permanecer em suas casas alagadas, o bote segue indo pra lá e pra cá com mantimentos. Outrora meio de transporte para relaxar nas pescarias e caçadas, dessa vez o bote tem funcionado como ambulância.

“Quem ajudou a salvar vidas aqui no Humaitá fomos nós mesmos”, afirma. “Foi a comunidade que se ajudou, senão seria bem pior.” Ele ainda teme pelo o que vai acontecer quando a água baixar, no sentido do impacto dos moradores. Acredita que o pico da tragédia pode acontecer quando os residentes do Humaitá conseguirem voltar às suas casas e se defrontarem com os prejuízos. “Tem gente que ainda não caiu a ficha.”

Com camisa verde-musgo de manga curta e olhar amistoso, Miguel Sidnei de Quadros, 53 anos, que até então apenas ouvia o amigo falar, concorda. Nascido em Palmitinho, mora no Humaitá desde 2014. Trabalha com fretes e principalmente com reciclagem. Do acostamento da estrada, aponta para o seu galpão embaixo d’água.

Tal como Gerson, só quer dos governantes uma coisa: que façam a água baixar. Ouvinte assíduo de rádio para acompanhar notícias e programas esportivos, tem dúvida de que os benefícios que estão sendo anunciados pelos governos cheguem em suas mãos. E tampouco demonstra fazer questão de receber.

“Eu quero é voltar a trabalhar. É isso que a gente quer”, explica, contando dar preferência para alumínio, cobre e outros metais para vender em Cachoeirinha.

Miguel sabe que as águas baixaram no centro da cidade e nos bairros Cidade Baixa e Menino Deus, entre outros. O olhar em direção ao Humaitá completamente inundado revela indignação. Para ele, a Prefeitura não dá jeito na situação do bairro porque não quer.

“Mas deixa…depois na eleição, eles vão aparecer aqui pedindo voto.. deixa…”

 

O acampamento improvisado de Gérson e Miguel próximo a Arena do Grêmio. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Enquanto dezenas de moradores do Humaitá estão na beira da rodovia, outros optaram por permanecer em suas casas, apesar da extrema dificuldade imposta pela falta de água para beber e cozinhar, sem luz, além da água barrenta por todos os lados.

É o caso de Jaime Camargo, 54 anos. Caminhando pelo acostamento da Freeway, carregando sobre a cabeça uma sacola com alimentos, ele tem no rosto a marca do tempo de uma vida na boleia do caminhão e, no olhar, o cansaço causado pela gigantesca enchente.

O primeiro piso de sua casa, onde mora com a esposa e o filho mais novo, está completamente submerso. Acredita ter perdido tudo. O andar superior, onde vive a filha mais velha com o genro e seus dois netos, está seco e é nele que Jaime decidiu ficar. A escolha tem como objetivo proteger a casa dos assaltos. Antes, articulou para deixar a família em segurança e alugou, por R$ 1.500, uma casa em Estância Velha.

Quase diariamente, seus parentes lhe trazem mantimentos e entregam num ponto da estrada. Para entrar e sair de casa, usa uma canoa. Em meio à falta de água potável e luz, o que mais lhe impressiona é o fedor da enchente ao redor da casa.

“Não dá pra aguentar. Faço a comida e subo no telhado pra comer. O cheiro é horrível, é até difícil de respirar.”

 

Além das casas, há muitos casos submersos nas águas no Humaitá. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Funcionário da Ceasa, Jaime está habituado a passar a vida na estrada transportando alimentos. Por causa da enchente, ganhou férias no trabalho. Há poucos dias, porém, percebeu um certo tom de cobrança sobre quando voltará ao serviço. Chateado, começou a pensar em propor uma demissão para pegar parte do valor da rescisão e investir na reforma da casa quando a água baixar. Ele mora no Humaitá há 50 anos. Era uma criança pequena quando veio de Tapera, sua cidade natal.

A ideia de investir todo o dinheiro da possível rescisão na reforma do imóvel também lhe deixa em dúvida. Quem garante que a água que agora invadiu o Humaitá, não invadirá novamente no futuro? Outra opção é abandonar o bairro. Ir embora de Porto Alegre. A família bem instalada em Estância Velha tem lhe despertado o desejo de mudar radicalmente de vida.

“Trabalho desde os 16 anos. Meus filhos falam pra eu me aposentar. Talvez seja a hora”, reflete.

Assim como Miguel e Gerson, Jaime também aponta sua casa vista do acostamento da estrada. Tão perto, tão longe.

Antes de pegar a sacola com alimentos e pousar novamente sobre a cabeça para seguir seu rumo, o caminhoneiro dá sua versão sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul e do Brasil.

“É bíblico.”

 

O caminhoneiro Jaime recebe mantimentos dos parentes para poder permanecer cuidando da casa. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

 

O gesseiro Gérson Otávio. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

 

O bote de Gérson, normalmente usado para pescar e caçar, agora está à serviço de ajudar a comunidade. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

 

Bairro Humaitá é um dos mais atingidos pela enchente do Guaíba. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

 

Os cachorros acompanham os donos no acampamento na Freeway. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

 

 Foto: Isabelle Rieger/Sul21

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