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22 de maio de 2024
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13:37

Enchente histórica leva Região Metropolitana a repensar sistemas de proteção

Por
Bettina Gehm
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Enchente em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Foto: Kelvin Oliveira/PMC
Enchente em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Foto: Kelvin Oliveira/PMC

A enchente que afeta o Rio Grande do Sul desde o final de abril não é – ou não deveria ser – fator surpresa para diversas cidades que agora sofrem com os alagamentos. Em 2018, a Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan) concluiu e entregou Planos de Proteção Contra Cheias nas bacias do Rio Gravataí, Rio dos Sinos, Arroio Feijó e no município de Eldorado do Sul, no Delta do Jacuí.

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O órgão projetou cenários em que seria feito o zoneamento (retirada de moradias em áreas alagadiças) e outros em que seriam executadas obras de proteção. Para a Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, o anteprojeto de engenharia custou R$ 6,3 milhões. Segundo a Metroplan, o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) está em andamento para as obras da bacia e vai demandar quase R$ 400 mil em recursos. A etapa de execução das obras não possui previsão orçamentária.

Uma das cidades contempladas foi Canoas, como mostrou a reportagem do Sul21. No município, o estudo da Metroplan foi seguido de outra pesquisa, conduzida pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS (IPH/UFRGS). A Prefeitura queria calcular os impactos das obras de proteção. A alternativa de concluir o pôlder do Mato Grande, um dos bairros mais afetados pela enchente deste mês, foi identificada como a única que não teria impactos negativos em outras regiões. Conforme o professor do IPH Fernando Dornelles, o que faltava era terminar as comportas de proteção da área. A execução dessa obra teria evitado o alagamento da região.

No entanto, todo o estudo foi baseado em parâmetros bem mais brandos do que o cenário de cheia recorde que aconteceu este mês. Os pesquisadores utilizam o conceito de tempo de retorno (TR), que é o número de anos que uma enchente levaria para se repetir. “O TR da cheia de 1941 era de 1600 em 2022, caiu para 1300 em 2023, e agora com este recorde caiu para 550 anos. Estamos vivenciando um evento raro, o que o torna mais ‘corriqueiro’. O novo dado da série histórica muda tudo”, explica o professor Dornelles.

Questionado sobre a realocação dos moradores de locais que ficaram tomados pela água, como o Mato Grande, o prefeito Jairo Jorge (PSD) afirma que a ideia é construir bairros novos na região leste da cidade “para quem efetivamente quer”. “Muitas pessoas vão voltar, vão retornar [para suas casas]. O governo federal está acenando o apoio para que as pessoas comprem uma casa e também a possibilidade de reforma e reconstrução. Acredito que muitas pessoas vão reformar e reconstruir”, pontua o prefeito.

O gestor de Canoas lembrou que o dique do Mato Grande está em licenciamento ambiental e que irá discutir a construção de um outro dique no São Luís. “Nós precisamos ter celeridade nisso. Claro que os diques precisam ser repensados, não mais em referência à enchente de 1941. Precisamos ter uma estrutura que permita à Prefeitura, juntamente com os governos federal e estadual, elevar os diques”, afirma Jairo.

O secretário de Meio Ambiente de Canoas, Bernardo Caron, afirma que atualmente a cidade conta com três sistemas de dique: um no bairro Mathias Velho, outro no Rio Branco e um em Niterói. Caron detalha que os estudos da Metroplan e do IPH simularam as inundações através de uma malha computacional que abrangia somente até o dique da Mathias Velho. “Nunca se pensou que a água fosse atravessar o dique”, diz. Ainda conforme o secretário, a Prefeitura segue plenamente a instrução normativa do Ministério Público que vedava o licenciamento de novas construções em áreas alagadiças.

O prefeito de São Leopoldo, Ary Vanazzi (PT), afirma que o estudo da Metroplan propunha a realocação de famílias dos bairros São Geraldo e Feitoria, áreas alagadiças. Algumas dessas famílias, segundo Vanazzi, já foram realocadas. “Mas a grande maioria mora em loteamentos regulares feitos por gestões anteriores. Elas estão vivendo lá com propriedade da sua terra, porque o loteador fez sabendo que era a bacia do rio. Agora, precisam ser removidas e indenizadas, mas para isso precisamos ter recurso. Passamos alguns anos sem recursos, porque o governo [federal] anterior acabou com o Minha Casa Minha Vida. Nossa dificuldade é o fim da política habitacional construída anteriormente”.

Em reportagem veiculada no dia 12 de maio, a Agência Pública contou a história de um morador do bairro Feitoria cuja residência ficou submersa até o teto.

Vanazzi explica que São Leopoldo conta com 15 km de diques – um deles adentra Novo Hamburgo, a cidade vizinha – e 21 bombas que drenam a água. No entanto, as obras foram projetadas na década de 1970 e considerando a enchente de 1941, superada em 2024. O prefeito admite a necessidade de repensar todo o sistema de proteção e dragagem. “Sempre tivemos os diques. Inclusive questionamos, na época da construção da BR-448, a proximidade da rodovia com o rio. Acabou tirando parte da área do rio. Quanto mais você ‘aperta’ o rio, mais ele volta para trás e ele extravasa. Com essa enchente histórica, onde os diques são de concreto, a água passou por cima; na Av. João Corrêa e no bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, a água abriu duas grandes crateras”.

O único dique de Novo Hamburgo, com 2,5 km de extensão, é a obra bi-municipal compartilhada com São Leopoldo. A cidade tem seis casas de bombas.

Conforme a Prefeitura de Novo Hamburgo, o plano de proteção da Metroplan previa uma obra de contenção na Vila Integração em Lomba Grande, zona rural do município. A nota da gestão municipal não explica porque a obra não foi implantada. Recentemente, moradores da Vila Integração fizeram um abaixo-assinado online pedindo por proteção contra enchentes no local. Com mais de 600 assinaturas, a página salienta que os moradores do loteamento vivenciaram “sete enchentes devastadoras em menos de um ano”.

A Prefeitura informou ainda que “será fundamental o redimensionamento do sistema contra as cheias da bacia do Sinos que leve em conta a nova realidade a partir desta enchente”.

“As cidades precisam se coordenar para planejar um conjunto de obras. Não adianta só Canoas construir obras”, disse ao Sul21 a especialista em Gestão Estratégica do Território Urbano, Letícia Xavier Corrêa, que trabalhou como Secretária Adjunta de Mobilidade Urbana na Prefeitura Municipal de Canoas de 2021 a 2023. “Para isso, é necessário que um órgão de gestão na escala regional coordene essas iniciativas e principalmente lidere a busca de recursos para sua execução, sejam eles técnicos ou financeiros”.

Mas a Metroplan, que seria esse órgão, está há anos em processo de extinção. O governo de José Ivo Sartori (PMDB) conseguiu aprovar a extinção do órgão em dezembro de 2016. Na época, servidores da Metroplan distribuíram um material para os deputados pedindo que votassem contra a extinção, apontando que o órgão é “o único que atua no desenvolvimento de projetos de prevenção e minimização de enchentes”. A instituição administrava R$ 258 milhões em recursos contra cheias.


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