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16 de maio de 2024
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18:14

‘Cidade provisória não pode ser campo de refugiados, vai dar errado’, alerta professor

Por
Luís Gomes
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Complexo Cultural Porto Seco é um dos espaços que está sendo pensado para abrigar
Complexo Cultural Porto Seco é um dos espaços que está sendo pensado para abrigar "cidade provisória" | Foto: Luiza Castro/Sul21

À medida que fica claro que milhares de pessoas não terão como retornar para suas casas mesmo após baixarem as águas das inundações que atingem cidades gaúchas, o governo estadual e prefeituras municipais começam a pensar em alternativas de abrigamento para as famílias enquanto não for possível reconstruir suas residências ou garantir novas moradias. Uma das alternativas que ganhou força nos últimos dias é erguer “cidades provisórias”.

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De acordo com o último boletim da Defesa Civil do Estado, 77 mil pessoas permaneciam nesta quinta-feira (16) em abrigos mantidos por prefeituras e sociedade civil. Muitos deles, montados em escolas que, em algum momento, precisarão voltar a funcionar, bem como em outros espaços que não poderão ser cedidos indefinidamente para abrigar os desalojados.

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo publicada nesta quarta-feira (15), o prefeito Sebastião Melo (MDB) tratou oficialmente do tema, mas pontuou que não há um lugar específico para receber todos as pessoas que hoje estão em abrigo, população estimada em 15 mil apenas em Porto Alegre.

“A cidade provisória, a cidade solidária, pode se dar em vários terrenos, sendo que o maior terreno está na zona norte. Agora, aquele terreno não tem como acolher 10 mil pessoas. Não existe espaço em Porto Alegre para fazer um local com 10 mil pessoas”, disse.

A nível estadual, a gestão da ideia está sendo trabalhada pelo gabinete do vice-governador, Gabriel Souza (MDB). O Estado está trabalhando na construção de “cidades provisórias” nos municípios de Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo e Guaíba, que concentram mais de 65% da população desabrigada atualmente.

Já há, inclusive, alguns locais indicados para receber estes espaços. Em Porto Alegre, a indicação é de que seja estruturado no Complexo do Porto Seco, na zona norte. Em Canoas, a alternativa proposta é o Centro Olímpico Municipal (COM), que inclusive recebeu a visita do vice-governador na terça-feira (14), ao lado do prefeito Jairo Jorge (PSD). Em São Leopoldo está sendo indicado o Centro de Eventos e em Guaíba ainda não há definição.

Segundo o gabinete do vice-governador, o objetivo da “cidade provisória” é acolher as pessoas nestes locais com a infraestrutura mínima necessária até que políticas de habitação definitiva sejam executadas. Estas estruturas provisórias deverão oferecer cômodos para as famílias, além de espaços de uso comum, banheiros com chuveiro, cozinha, lavanderia, áreas de lazer para crianças e animais de estimação.

O governo do Estado pretende montar essas estruturas de formas rápida, iniciando a contratação já na próxima semana e a montagem logo em seguida, mas, diz que ainda não é possível anunciar datas e prazos definitivos, uma vez que depende de fornecedores e conversas com prefeituras.

Contudo, o professor Eber Marzulo, do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), alerta que a construção de abrigos temporários precisa ser feita com atenção, observando alguns critérios, entre os quais os principais seriam manter as pessoas o mais próximo possível de suas casas e agrupá-las próximas de seus vizinhos. Ele avalia que, em termos logísticos, erguer uma “cidade provisória” não seria um grande desafio, uma vez que o Exército conta com estruturas para agilizar o processo, mas pontua que este não pode ser o critério principal a ser levado em conta.

“O que parece mais razoável são essas estruturas que o Exército tem e montar bairros provisórios, alocando o mais próximo possível dos locais de origem e por vizinhança. Então, tu não vai pegar uma favela densa e jogar ela num espaço com uma capacidade muito maior que aquela população e reunir comunidades, grupos, vindos de outro lugar. Se faria uma relação de vizinhança e teria que ter ali gente que conhece as suas comunidades, os conselheiros do Plano Direto, das Regiões de Planejamento e Gestão, para ver se tem algum problema mais grave nessas regiões. Mas seria isso e não o contrário, ‘ah, vamos mapear as estruturas existentes, os ginásios e aí vamos jogar lá, vamos redistribuir meio quantitativamente’. Não, tu faz algo mais espacializado, territorializado e com uma abordagem qualitativa das relações de vizinhança, e aí chama o Exército”, diz Eber.

Ele pontua que agrupar as pessoas sem levar em conta relações de vizinhança é algo que historicamente gerou problemas em processos de realocação de pessoas em Porto Alegre e mesmo nas últimas semanas tem gerado intercorrências nos abrigos.

“É o problema clássico que tem das remoções de favelas. As remoções de favelas, em geral, fazem o quê? Tu reúne diferentes comunidades, diferentes favelas, faz uma remoção para um conjunto habitacional da periferia. No caso de Porto Alegre, o clássico é a Restinga. Daí chega lá e dá conflito, porque tem grupos distintos. Lá nos anos 70, eram conflitos mais tênues, culturais, algumas disputas eventualmente ligadas a algum tipo de crime, jogo do bicho. Hoje, temos as facções”, diz.

A respeito dos locais onde poderiam ser erguidas essas novas estruturas, Eber avalia poderiam aproveitar espaços existentes na cidade. “Bota em praça, bota em parque, deixa mais denso, mais orgânico, dentro da própria cidade. Não enclausura os caras. Isso aí é campo de refugiados. Campo de refugiados dá errado, deixa as pessoas completamente perdidas. Isso vai gerar uma crise socioeconômica, psicossocial e sociocultural depois imensurável”, afirma.

 

Abrigo PUCRS. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Decana da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUCRS e uma das coordenadoras do abrigo temporário montado no Parque Esportivo da universidade, a professora Andrea Bandeira compartilha da ideia de que as estruturas temporárias devem levar em conta as relações de vizinhança.

“Acho muito importante manter essa questão de senso de comunidade, que foi um pouco do que a gente tentou preservar aqui [no abrigo da PUCRS], juntar os núcleos familiares e tentar manter próximas aquelas pessoas que já tinham um convívio diário, seja os vizinhos, especialmente que tinham essa convivência”, diz.

Andrea também pontua que é preciso levar em conta que as estruturas permitam que as pessoas possam retomar suas atividades diárias.

“Tu tem que ter acesso à educação e garantir que as crianças voltem à escola, acesso a uma alimentação de qualidade, acesso a emprego, transporte, lazer. Enfim, eu acho que é pensar esses espaços onde a gente consiga garantir minimamente esses direitos de reconstruir a vida dentro de um novo cenário”, diz. “Tem que ter uma estrutura mínima onde as pessoas possam ter desenvolvimento das suas atividades da vida diária, como cozinhar, tomar banho. E locais protegidos, como banheiros com certos cuidados. Infelizmente, nessas situações de crise, a gente pode ter situações de violência que acontecem em diferentes espaços”, complementa.

Além disso, destaca que é essencial pensar também em espaços de lazer, especialmente para as crianças. “Hoje, a gente mantém aqui, claro que dentro de uma estrutura do parque esportivo, atividade física para as crianças, seja na quadra, seja no playground, seja ter uma brinquedoteca. Eu acho que precisa ter espaços também onde esteja oportunizada essa questão de lazer. Eu sempre digo que, à medida que a gente trabalha com um conceito ampliado de saúde, ela não é só ausência de doença”, afirma.

 

Abrigo PUCRS. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

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