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23 de dezembro de 2023
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15:45

Trabalho doméstico: ‘Se todo mundo parasse três dias, o patrão ia reconhecer nosso valor’

Por
Duda Romagna
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A doutora honoris causa Creuza Maria Oliveira. Foto: Fenatrad/Divulgação
A doutora honoris causa Creuza Maria Oliveira. Foto: Fenatrad/Divulgação

A Universidade Federal da Bahia (UFBA) concedeu, em novembro, o primeiro título de doutora honoris causa a uma trabalhadora doméstica. Creuza Maria Oliveira é uma mulher negra e baiana, da Cidade de Santo Amaro da Purificação, e começou a trabalhar antes dos 10 anos. É também uma importante liderança entre as trabalhadoras domésticas do Brasil.

Hoje aposentada, segue como ativista política e sindicalista na Bahia, além de fazer parte da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Ela foi uma das mulheres que tornou possível a aprovação da “PEC das Domésticas”, em 2013, que garantiu mais direitos trabalhistas à categoria. Sua luta perpassa questões de gênero, raça e classe, com batalhas contra a exploração trabalho infantil e a violência.

O título foi proposto pela Congregação do Instituto de Psicologia e aprovado pelo Conselho Universitário da UFBA. Em entrevista ao Sul21, Creuza fala um pouco sobre essa conquista e sua luta, confira:

Sul21: Conta como iniciou tua história e quando se reconheceu como doméstica.

Creuza: Eu comecei a trabalhar antes dos 10 anos de idade, meu pai e minha mãe eram do interior da Bahia e vieram aqui para Salvador. Meu pai era vendedor ambulante e minha mãe era dona de casa, antes ela trabalhava no interior, na roça. Trabalhei como doméstica aqui em Salvador em várias casas sem a oportunidade de estudar. Só fui estudar com 16 anos, para terminar de me alfabetizar. Eu ficava sempre desistindo da escola, primeiro porque eu não tinha onde morar, morava no emprego.

Sul21: Como foi o processo de organização da luta da categoria?

Creuza: Na década de 80, eu entrei na luta das trabalhadoras domésticas. Era um pequeno grupo que se reunia duas vezes no mês em um colégio particular que tem aqui em Salvador. À noite tinha uma bolsa para a classe trabalhadora, um supletivo para a classe trabalhadora, e neste supletivo tinha um grupo que discutia o porquê da doméstica ter vergonha de ser doméstica. Foi a partir daí que surgiu o grupo. Na época, não podíamos ter sindicato, então a gente se organizava em associação. Em 1986, a gente criou a Associação das Domésticas da Bahia e essa associação depois, em 1990, se tornou o sindicato.

A minha luta foi sempre essa, dedicada ao direito da categoria de doméstica, porque só nós que vivemos é que sabemos. Como eu comecei a trabalhar antes dos 10 anos de idade eu passei de tudo, da violência física à tentativa de violência sexual, de estar fora da família e não estar na escola, depois dos patrões, de comer o resto deles, almoçava o que sobrava. Eu nunca aceitei isso, as condições do trabalho me revoltavam, principalmente não ter minha casa, não ter salário, não ter folga todos os domingos e feriados. Eu era uma excelente babá, cuidava da criança como fosse minha e me apegava aos filhos deles. Teve época de eu trabalhar de graça por amor à criança que eu estava cuidando. Hoje eu faço um trabalho de conscientização das minhas colegas de dizer que não vale a pena a gente abrir mão dos nossos direitos por causa dos filhos de patroas porque eles vão crescer e fazer as mesmas coisas com os nossos filhos. E aí a gente precisa lutar para mudar isso. Eu tenho praticamente 40 anos nessa luta. Hoje já estou aposentada, mas não deixo em nenhum momento de participar da luta.

Sul21: Como é ser a primeira trabalhadora doméstica a receber o título de doutora honoris causa no Brasil?

Creuza: Eu tive o reconhecimento da Universidade Federal da Bahia, foram dois anos de um grupo de pessoas lutando dentro da Universidade para que eu fosse reconhecida e aí o conselho aprovou. É muito importante para nossa história, para a luta das trabalhadoras domésticas que estão há mais de 80 anos em organização no Brasil.

As conquistas que nós tivemos agora são fruto de uma luta que começou com a Laudelina de Campos Melo na década de 1930, criando a primeira associação de domésticas. Ela lutou para incluir as domésticas nas leis trabalhistas, coisa que aconteceu só em 72, quando a gente conseguiu a primeira lei da carteira assinada, 20 dias de férias e contribuição da previdência. Depois de 1988, e principalmente a partir do primeiro governo Lula, em 2003, a gente começou também a fazer outra mobilização para o direito ao FGTS, horas extra, adicional noturno, acidente de trabalho. Conquistamos isso em 2013 com a PEC das Domésticas.

Sul21: Como é a tua avaliação do cenário político dos últimos anos para os interesses das domésticas?

Creuza: Nos governos Temer e Bolsonaro, com a reforma trabalhista e com a reforma previdenciária, muitos perderam direitos. Nossos patrões e patroas perderam o emprego e quando eles perdem o emprego a gente também perde. Cresceu o número de diaristas, já que as pessoas não podiam empregar, e diarista é um grupo que está vulnerável, só assina a carteira a partir de três dias na semana, sem falar que leva anos trabalhando em várias residências e depois quando chega na idade não tem como se aposentar porque não contribuiu com a previdência. Agora temos mais diálogo.

Sul21: Quais são as reivindicações da categoria no Brasil de hoje, depois de já ter a PEC e depois de ter passado por uma pandemia?

Creuza: O Brasil já ratificou mas ainda não implementou a Convenção 189, da Organização Internacional do Trabalho, que complementa e melhora a Lei 150/2015, que regulamenta o trabalho. Nossa luta vai continuar sendo para que a convenção seja implementada, ainda tem muita coisa na lei que não equipara de fato com outros empregos, como o seguro-desemprego, o FGTS.

E também tem a questão do direito de vida da doméstica, para que a mulher seja o que ela quiser. Não é só porque ela é preta que só resta o emprego doméstico, a gente quer estar em todos os espaços. A gente tem um exemplo de uma colega nossa que é trabalhadora doméstica há 22 anos na mesma casa e ela é formada em pedagogia. Isso é ótimo, ela continua na mesma casa, se ela quisesse, ela já podia até ter saído. Ela é formada, mas existe uma relação de respeito nesse trabalho de doméstica.

É uma luta também para empoderar as trabalhadoras, quando ela for acertar o trabalho e o patrão não quiser assinar carteira, ela tem que dizer ‘então não vou trabalhar com o senhor’. Eu sei que para a gente chegar nesse nível vai demorar muito, se fizesse uma greve, todo mundo não trabalhasse três ou quatro dias, o patrão ia reconhecer o nosso valor.


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