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16 de setembro de 2023
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16:57

Guarda Municipal agride deputada e Melo desiste de vender prédio ocupado por movimento social

Por
Luciano Velleda
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Horas após o início da ocupação ReXistência POA, iniciada na manhã deste sábado (16) no número 1.780 da Rua dos Andradas, no Centro Histórico de Porto Alegre, o governo do prefeito Sebastião Melo (MDB) anunciou a intenção de desistir de vender o imóvel. A decisão ocorre pouco depois de membros da Guarda Municipal agredirem com spray de pimenta e tiro de bala da borracha a deputada estadual Laura Sito (PT) e apoiadores que pretendiam entregar marmitas de almoço para integrantes do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). 

De acordo com a deputada, o secretário de Habitação e Regularização Fundiária, André Machado, havia permitido a entrega do almoço, mas mesmo assim a Guarda Municipal agiu contra ela e mais cerca de 15 apoiadores do movimento. “Tomei um spray no rosto e um tiro na perna”, afirma Laura, instantes após fazer exame de corpo delito no Instituto Médico Legal (IML) da capital. 

A parlamentar destaca que os agentes da Guarda Municipal estavam sem identificação, o que é irregular. Ela conta ter conversado, após o incidente, com o secretário Machado e com o prefeito Melo, que lhe garantiram que a agressão será investigada. 

“Se fazem isso comigo, uma deputada, imagino como seria uma ação de reintegração de posso com os ocupantes que não são parlamentares”, ponderou Laura. 

“Há uma decisão já tomada pelo município, por orientação do prefeito Sebastião Melo, de retirada deste prédio da possibilidade de venda, e a destinação dele para habitação social. Lamentamos que isso não tenha sido feito em uma mesa de negociação, não necessariamente em um processo de ocupação”, afirmou o secretário de Habitação e Regularização Fundiária, André Machado.  

Questionada sobre a agressão sofrida pela deputada estadual Laura Sito (PT), a Prefeitura não se manifestou especificamente sobre a violência. Disse, genericamente, que “um procedimento administrativo será instaurado para apurar as circunstâncias do conflito ocorrido entre os invasores e a Guarda Municipal durante a ocorrência”.

Marcelo Nascimento, comandante da Guarda Municipal, disse que a abordagem violenta realizada pela Guarda Municipal “foge à normalidade das ações da corporação, que são pautadas no diálogo”. “Nenhum de nós tem interesse no conflito, na violência. Vamos garantir a segurança de todos até a conclusão do processo”, completou.

O edifício de nove andares do número 1.780 da Rua dos Andradas foi administrado, até 2021, pela Companhia de Arte. Em 2022, foi incluído numa lista de 92 imóveis de propriedade do município que podem ser alienados, seja por venda, permuta, cessão ou parceria. A autorização foi dada à Prefeitura com a aprovação, na Câmara de Vereadores, do Projeto de Lei Complementar 02/2022. 

Segundo a Prefeitura, na negociação firmada entre secretários municipais e representantes do movimento ficou acordado que o prefeito Melo receberá o grupo no Centro Administrativo Municipal Guilherme Socias Villela, na próxima segunda-feira (18), para avançar no debate. 

Ainda de acordo com o governo municipal, na negociação ficou acordado que não haverá ingresso de novos manifestantes e que estão garantidas as entregas de alimentação em horários previamente combinados. O prédio permanecerá isolado e monitorado pela Guarda Municipal e Brigada Militar. 

Coordenadora do MNLM-RS, Ceniriani Vargas da Silva (Ni) explicou pela manhã, horas após o início da ocupação, que a ação reivindica que o espaço volte a ser destinado à cultura, com os andares usados para moradia popular. “Temos disposição de negociar com a Prefeitura, até comprar o imóvel via cooperativa, temos experiência nisso por meio do Minha Casa Minha Vida”, afirmou.

Ni lembra que o edifício foi fechado em 2020, no começo da pandemia do novo coronavírus. Na ocasião, houve a perspectiva do imóvel ser reformado e reaberto, o que acabou não ocorrendo, terminando por ser incluído na lista de 92 imóveis a serem alienados pela Prefeitura.

Ela explica que ocupação também tem o objetivo de chamar atenção para as transformações promovidas pelo governo Melo no centro da capital e que, diz ela, visam favorecer à especulação imobiliária.

Originalmente pertencente à Caixa Econômica, o prédio passou a funcionar como centro cultural em 1997 e, após mobilização da comunidade artística, foi comprado pela Prefeitura no final dos anos 1990. O local passou a sediar entidades de diversos segmentos do setor cultural e suas salas se tornaram um espaço de acesso para ensaios e montagem de espetáculos teatrais, de dança e de música. Em 2004, a Prefeitura firmou um Termo de Cessão de Uso com a Associação do Centro Cultural Cia de Arte, que passou a ocupar oficialmente o edifício.

Ex-presidente da Cia de Arte, o ator e produtor cultural Fábio Cunha disse ao Sul21, em maio de 2022, que o espaço sempre foi muito vibrante e importante para a cidade do ponto de vista cultural, mas que encontrava há anos dificuldade para sustentação financeira. Pelo termo de cessão de uso, a Prefeitura cedia o espaço e pagava a luz, mas a manutenção era de responsabilidade da associação.

Fábio contou que assumiu a presidência da entidade em dezembro de 2019, com o objetivo justamente de tentar reorganizar o espaço e resgatar uma relação com a Prefeitura. Contudo, em março de 2020 veio a pandemia, o que dificultou a ideia do resgate do prédio, que acabou fechado. Sem sucesso nas negociações com a Prefeitura para manutenção do uso, a Cia de Arte acabou entregando formalmente as chaves do imóvel ao poder público em fevereiro de 2021.

Na ocasião, a Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (Smap) argumentou que o prédio estava desocupado após ter sido retomado judicialmente em razão de “ter sido desvirtuada a finalidade do termo de permissão de uso, que era não oneroso e impedia a utilização do bem próprio do município para fins comerciais”.

“O imóvel foi recebido da Cia de Arte em alto estágio de depreciação, com os elevadores estragados, problemas de vazamentos e infiltrações, ambos fatores que danificaram a estrutura, com infestação interna de pombos e proliferação de zoonoses, entre outros problemas”, afirmou a nota da Smap.

Segundo Fábio, um dos fatores que levou a Prefeitura a considerar que o espaço estava sendo usado irregularmente foi a exploração comercial de algumas salas. Por exemplo, por uma cafeteria. “Não poderia ter uma cafeteria, mas nós tínhamos lá na Cia de Arte um restaurante, que era o que mantinha financeiramente. Agora, com o novo marco regulatório, poderia se regularizar essas relações do uso do espaço”, comentou.

Ele reconheceu que ocorreram irregularidades em relação ao que era autorizado no Termo de Cessão de Uso, mas avaliou a Prefeitura não teve o interesse em formar parceiras com as entidades que estavam no local para regularizar a situação, pois o foco da gestão estaria nos grandes grupos do setor.

“O que eles fizeram no Araújo Viana? Passaram para produtora, que resgata o prédio, que recebe uma verba do município, uma estrutura. Ela pode comercializar lá dentro bebida, pode comercializar alimentos. Lá, para uma entidade como a Opus e o Opinião, se tem uma compreensão e uma flexibilização para repassar. Agora, por outro lado, para o produtor cultural, o trabalhador, a pequena produtora que não vai ter o espaço próprio, me parece que há resistência de compreensão desse governo. O lado empresarial, o lado do grande, eles até dão um jeito”, disse.


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