Geral
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8 de julho de 2023
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08:49

ONG quer políticas públicas para garantir direitos de crianças e adolescentes trans

Por
Marco Weissheimer
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Famílias que participam da ong participaram da Parada de Luta LGBTQI+, em Porto Alegre (Foto: Minha Criança Trans/Divulgação)
Famílias que participam da ong participaram da Parada de Luta LGBTQI+, em Porto Alegre (Foto: Minha Criança Trans/Divulgação)

Desde os dois anos de idade aproximadamente, quando as escolhas entre “coisa de menino” e “coisa de menina” começaram a ficar mais presentes na sua vida, Milena sempre escolheu as coisas ditas de menina. Isso valia para brincadeiras, desenhos, roupas e outras questões. Carize Muller, técnica de enfermagem no Grupo Hospitalar Conceição (GHC), em Porto Alegre, estudante de Serviço Social e Gestão Hospitalar, e mãe de Milena, não pensou, no início, que isso poderia ser um indicador de que ela tinha uma criança trans. Na época, ela nem tinha conhecimento do que isso significava. Carize queria criar um menino que iria se tornar um pai, que ia cuidar de sua família, da sua casa, nos moldes tradicionais. Mas Milena foi crescendo e as escolhas pelas “coisas de menina” foram se acentuando e sendo também verbalizadas, por volta dos 3 ou 4 anos: “Eu sou uma menina, não sou um menino”. Carize conta que não sabia o que fazer com aquilo e decidiu procurar uma psicóloga. E, para essa profissional, Carize era responsável pelo que estava acontecendo.

“Era uma psicóloga conhecida da família, em quem eu confiava. Ela disse que a culpa era minha, que eu tinha que reforçar o masculino, porque ela (Milena) gostava muito de mim e era muito próxima de mim. Na época, alguns familiares mais próximos achavam que isso era verdade. O pai, na época, também achava que isso era verdade e que a gente tinha que ensinar a nossa criança a ser menino. O pessoal comprou isso e até tentamos por um período: ficar mais com o pai, não deixar assistir aqueles desenhos (“de menina”), não deixar brincar de boneca. Esse foi o pior período. A Milena começou a fazer xixi na cama sempre, roía as unhas o tempo todo. Eu também comecei a sofrer muito com isso e passei a deixar ela fazer o que queria quando estávamos só nós, pra mim não ter que ficar brigando toda hora com todo mundo”, conta.

Carize Muller, mãe de criança trans e integrante da ONG “Minha Criança Trans” (Foto: Marco Weissheimer)

Carize e seus familiares passaram a viver uma realidade que ainda é cercada por tabus, desinformação, preconceitos e intolerância. Ela passou a pesquisar na internet em busca de maiores informações sobre o que estava acontecendo. Neste período, ela teve outra filha (que tem uma diferença de quatro anos em relação à primeira). E a pequena podia se vestir como queria e podia brincar como queria. Milena começou a reclamar cada vez mais sobre essa diferença de tratamento. Entre 2007 e 2008, Carize recebeu um vídeo de uma amiga que falava sobre infância trans no dia das crianças. Neste vídeo, uma das falas era da Thamirys Nunes (fundadora, mais tarde, da ONG Minha Criança Trans), que contava a história dela e da filha dela.

“Quando ouvi aquele vídeo, percebi na hora que ela estava descrevendo a situação do meu filho. Procurei-a nas redes sociais, ela estava online e perguntou se podia me ligar. Eu disse que sim e ficamos mais de 40 minutos no telefone. Aí, caiu a minha ficha. Será que a minha filha é trans? Chorei, chorei, não por ela ser trans, mas por causa do sofrimento que iria enfrentar no âmbito familiar. Como é que eu ia contar isso para a minha família, para o meu marido, para os amigos. Mas neste mesmo dia ela me indicou uma psicóloga aqui de Porto Alegre e marquei a consulta. Eu não falei nada para ela, pois queria ouvir o que ela achava sem ter interferência minha. Na segunda consulta, a psicóloga me chamou e disse: “Carize, tu tem uma filha trans. A Milena não se identifica com o gênero dela”. Ela nos chamou para conversar. Naquele momento, o mundo caiu para o meu marido e para a minha família. Mas a partir daí, começamos a dar cada vez mais liberdade para ela, deixando que ela escolhesse as roupas dela, as brincadeiras que queria fazer, para ver se a gente transformava em felicidade aquela angústia que ela estava sentindo”.  Quanto mais liberdade foram dando para ela, relata ainda Carize, mais ela foi se identificando como Milena, as crises de choro foram cessando e ela se tornou uma criança mais feliz.

Em outubro do ano passado, Thamirys Nunes convidou Carize e outras mães a fazerem parte da criação da ONG Minha Criança Trans. A entidade foi criada para enfrentar a ausência de políticas públicas, para auxiliar as famílias a enfrentar a transfobia e uma série de preconceitos. “Quando a criança transiciona, toda família transiciona junto”, destaca Carize. Muitas famílias, conta, acabam sendo denunciadas para o Conselho Tutelar por assistentes sociais e psicólogas por aceitarem a identidade do filho ou da filha. 

“Em função desse tipo de situação, sentimos a necessidade de criar a ONG que faz um trabalho de acolhimento das famílias, tem uma equipe de psicólogos que fazem atendimento gratuito ou com um valor social e, se for preciso, vamos nas escolas conversar com professores e toda turma para que eles possam entender do que se trata e acolher bem essas crianças e adolescentes na escola. Também temos uma equipe jurídica à disposição, pois muitas famílias acabam sendo processadas por acolherem a identidade de suas crianças”. 

Além disso, as integrantes da ONG estão fazendo hoje um trabalho em Brasília, e também em nível estadual, batendo de porta em porta nos gabinetes dos deputados pedindo políticas públicas nesta área para que “as crianças parem de sofrer transfobia e possam ser  acolhidas nas escolas, que acabam se tornando um ambiente hostil para elas”. 

Carize diz que toda essa trajetória foi muito difícil para ela, para Milena e para toda a família, mas que também foi um grande aprendizado. Hoje, ela se dispõe a compartilhar essa experiência com outras famílias que possam estar vivendo situações semelhantes e, na maioria dos casos, não têm um acompanhamento adequado para entender o que está acontecendo e para enfrentar todo tipo de preconceito e violência. “Há muita desinformação e preconceito circulando. Não há nenhum processo de erotização da criança ou do adolescente, como algumas pessoas dizem. Isso precisa ser entendido”.

Minha Criança Trans é a primeira organização não-governamental do Brasil a tratar exclusivamente de questões que envolvem saúde, qualidade de vida, políticas públicas e direitos de crianças e adolescentes transgêneres. A ONG foi fundada por Thamirys Nunes, mãe de uma criança trans, ativista pelos direitos trans infanto-juvenis e autora dos livros “Minha Criança Trans” (2020) e “A Menina no Espelho” (2023). Além disso, ela também é vice-presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, coordenadora nacional da Área de Proteção e Acolhimento de Crianças, Adolescentes e Famílias LGBTI+ da Aliança Nacional LGBTI+ e Grupo Dignidade.

Carize, Milena e a família na Parada LGBTQIA+, em Porto Alegre (Foto: Divulgação)

Ao acolher a identidade de gênero de sua criança, quando esta tinha menos de 4 anos de idade, Thamirys passou por muitas situações de preconceito, falta de informação e abandono que a levaram a decidir, em 2020, dedicar sua vida a mudar esse cenário e acolher outras famílias que estivessem vivendo uma situação similar. Hoje, a ONG atende crianças e adolescentes trans de vários estados do país e conta com 580 famílias associadas.

No dia 21 de maio, foi realizada a I Conferência Livre Nacional de Saúde de Crianças e Adolescentes Trans, com o objetivo de “discutir os desafios e possibilidades de acesso à saúde especializada para pessoas trans menores de idade, bem como a necessidade de ampliação não só de atendimento qualificado, mas principalmente, digno e respeitoso para crianças e adolescentes transgêneros. O evento contou com a presença de diversos profissionais da saúde especializados em atendimento à comunidade trans, agentes públicos e também com instituições que representam essa comunidade. O encontro foi reconhecido pela 17ª Conferência Nacional de Saúde e aprovou um documento com um conjunto de propostas que foram encaminhadas para a conferência que está sendo realizada neste início de julho, em Brasília. Pela primeira vez, a pauta das crianças e adolescentes trans foi levada para a Conferência.

No dia 11 de junho deste ano, a Minha Criança Trans participou da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, a maior do mundo, com o bloco “Crianças e Adolescentes Trans Existem”, que levou para a Avenida Paulista 120 famílias que reconhecem ter uma criança ou adolescente trans. O tema da 27ª Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo foi “Políticas Sociais para LGBTI+”. Integrantes da organização lembraram que hoje não há qualquer política pública específica estabelecida no Brasil destinada a proteger crianças e adolescentes trans. No dia 2 de julho, a ONG também participou da Parada de Luta LGBTQIA+ em Porto Alegre.

Em São Paulo, a participação da ONG na Parada provocou a reação de grupos conservadores, conforme relatou nota divulgada pela direção da organização: “Fotos e vídeos do nosso bloco, do nosso estandarte, das famílias e das crianças e adolescentes que estiveram conosco estão sendo usados por páginas conservadoras e de políticos que atacam a nossa organização, bem como as famílias e as crianças e adolescentes trans, incitando o ódio, a discriminação e a violência contra essa população, que merece ser protegida e respeitada, como todas as outras pessoas. Membros da entidade também vêm recebendo diversos ataques e ameaças em razão da mobilização desinformada”.

Diante desses ataques, o jurídico da entidade anunciou que está coletando provas e tomará as medidas cabíveis “contra quem está propagando fake news e praticando crimes de injúria, calúnia, difamação, transfobia e incitação ao ódio e à violência”.

A atuação da Minha Criança Trans está dividida em cinco setores:

Acolhimento afetivo – Acolhimento de mães, pais e familiares que reconhecem ter uma criança ou adolescente trans ou convivendo com outras questões de gênero. O objetivo aqui é fortalecer emocionalmente os familiares para que estes possam acolher a identidade de gênero de suas crianças – além de orientar sobre os direitos fundamentais, questões burocráticas e adaptativas para que consigam lidar com as adversidades da melhor forma possível. Atualmente, a ONG trabalha com 428 famílias de diversas regiões do Brasil que reconhecem ter uma criança/adolescente trans. O seu lema é “você não está sozinha!”

Fomento de políticas públicas e advocacy – elaboração de projetos que visam a garantia de direitos e participação de movimentos sociais organizados para fomento de políticas públicas voltadas a crianças e adolescentes trans. Atualmente a ONG possui algumas ações civis públicas em parceria com escritórios de advocacia.

Diálogo nas escolas – trabalho para garantir a permanência saudável das crianças e adolescentes trans dentro do sistema educacional. Algumas escolas procuram a ONG para promover encontros com seus diretores, coordenadores, professores, estudantes e comunidade escolar para tratar de questões relacionadas ao acolhimento de estudantes trans e LGBTI+. Famílias que enfrentam problemas dentro do sistema educacional também recorrem à entidade para mediação de conflitos.

Psicologia responsável – profissionais da área estudam e buscam conhecimentos a fim de promover um atendimento ético, respeitoso e acolhedor para crianças e adolescentes trans e seus familiares. Trabalho de formação e acolhimento para profissionais de psicologia que buscam por conhecimento e supervisão no atendimento. Atendimento voluntário ou com valor social para famílias em situação de vulnerabilidade econômica.

Pesquisa e elaboração de dados – A partir da constatação de que a desinformação é um dos principais motivos que alimentam o preconceito e violência contra a população trans no Brasil, a entidade busca elucidar dados sobre esse recorte da população que é tão silenciado e sofre diariamente com preconceito e transfobia.


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