Geral
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5 de julho de 2023
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13:43

Ausência de protocolo impede localização e atendimento de órfãos do feminicídio

Por
Fernanda Nascimento
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Arte: Matheus Leal/Sul21
Arte: Matheus Leal/Sul21

A emergência de um debate sobre as condições de vida de crianças e adolescentes órfãos em decorrência de feminicídios, com a apresentação de projetos de lei e discussão pública sobre a temática, explicitou a negligência do país com o tema. Não há um número exato ou perfil dessas vítimas secundárias, apenas estimativas baseadas na taxa de feminicídios e de fecundidade. A ausência de dados está diretamente relacionada ao fato de que não existe um protocolo de atendimento relacionado a essa temática. A coordenadora do projeto Órfãos do Feminicídio da Defensoria Pública do Amazonas, Caroline Braz, explica a dimensão do problema: “Não existe um fluxo que determine o que fazer. Nós tomamos conhecimento dos casos pela imprensa ou porque as delegacias já conhecem nosso trabalho e nos informam”, explica.

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Sem um ordenamento sobre os procedimentos que devem ser realizados pelos diferentes órgãos do Estado após o assassinato de uma mulher em decorrência de feminicídio, as famílias, majoritariamente oriundas de situações de vulnerabilidade social, ficam desamparadas. “Muitas vezes, nós temos dificuldade de localizar as famílias, porque depois da tragédia muitas crianças vão para outros estados, vão para locais distantes”, relata Carolina. Para a defensora, as delegacias deveriam ter um protocolo padrão a ser encaminhado para as defensorias públicas. “Essas famílias precisam ser imediatamente atendidas”, afirma.

O projeto no Amazonas já atendeu mais de 80 crianças em cinco anos. Integrante da iniciativa, a assistente social Marcia Maria Moraes da Silva defende que o protocolo é fundamental, já que muitas famílias não têm conhecimento sobre seus direitos. “Quando nós chegamos a família está totalmente perdida. Para a sociedade, no geral, o processo vai resultar em um inquérito, em um processo e em uma pena. Mas existem as vítimas secundárias, que muitas vezes viram o feminicídio, assistiram anos de agressão”, explica.

No caso da assistência social e psicológica, “as demandas vão surgindo ao longo do processo”. “Nós verificamos se a vítima exercia atividade remunerada e as crianças têm direito a algum tipo de pensão, se alguma das crianças recebia BPC [benefício de prestação continuada], se a documentação das crianças está regularizada. Enfim, toda a demanda de acesso aos direitos sociais. Além de encaminhamento psicológico, porque são crianças extremamente fragilizadas”.

Auxiliar as famílias no processo de reorganização não é simples. “O sistema brasileiro é extremamente burocrático, a gente já chegou em famílias que só receberam a declaração de óbito e por não ter orientação não tinham nem feito a certidão de óbito. Não podiam encaminhar nada”, explica.

A defensora Carolina também cita um caso que se arrasta há dois anos: “A mãe recebia um BPC porque uma das crianças possui uma doença que necessita de uma dieta especial. Com a morte da mãe, as crianças estão sendo criadas pela tia e o INSS suspendeu o benefício. Até agora não conseguimos regularizar a guarda da criança e solucionar a situação”.

E a soma de situações de vulnerabilidade e traumas pode gerar ainda mais mortes, como relata Márcia. “Temos um caso em que a mãe foi assassinada na frente de quatro crianças. Uma das crianças tinha lúpus, que é uma doença autoimune, e por causa do trauma, ela acabou piorando e morrendo um mês depois da mãe. Uma das crianças está com o pai e já temos relatos de que sofre agressão física. Então imagina o estrago que causou na vida dessa família”, conta.

Outros casos envolvendo a Justiça e que têm sido bastante debatidos são as situações nas quais homens suspeitos de envolvimento nos feminicídios (seja como mandantes ou executores) requerem a guarda das crianças sob acusação de “alienação parental” da família da vítima. Essa é uma preocupação de organizações como a Themis, conforme explica Rafaela Caporal, assessora da área de violência da organização. “As crianças passam por situações traumáticas, presenciam violências e ainda existe essa violência processual. Se ele é um agressor, ele pode ser um bom pai?”, questiona.

A neuropsicóloga Janaína Lobo afirma que idealmente as crianças deveriam receber atendimento psicoterápico logo após o feminicídio e que isso ajudaria a reduzir as consequências do evento, mas que, em geral, “o foco está todo neste feminicídio e a criança é deixada de lado e só meses depois essa criança começa a receber uma escuta”. “Ajudaria a minimizar o evento essa criança ser levada para um espaço de acolhimento e escuta seguro, porque traumático vai ser de qualquer forma, doloroso vai ser de qualquer forma, difícil de reparar vai ser de qualquer forma”.

Pesquisadoras, profissionais e ativistas ouvidas pelo Sul21 são unânimes: o Estado precisa ser responsável pelos órfãos do feminicídio. “É uma inércia do Estado. Os órfãos parecem invisíveis. Agora existem projetos de lei, mas na prática o que elas precisam é de um auxílio financeiro o mais rápido possível”, afirma Márcia.

Para a professora Carmem Hein Campo, a omissão do Estado é anterior ao feminicídio e só se acentua com o processo de negligenciamento dos órfãos. “É preciso uma responsabilização social, porque o Estado se omite no combate à violência contra a mulher. Há uma ausência de políticas públicas, que não podem ser resumidas à medida protetiva. São necessários outros elementos como a educação para uma sociedade menos sexista, um processo educacional para que homens não se tornem homens aprendendo a ser violentos”, afirma.

Jefferson Fernandes (PT), autor de projeto que prevê prioridade no atendimento de órfãos de feminicídio pelos sistemas de saúde e assistência social – em tramitação na Assembleia Legislativa do RS -, afirma que a questão é bastante simples: o Estado não cumpre suas obrigações. “O Estado deveria cumprir a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que diz que as crianças devem ser atendidas com prioridade, que o recurso público deve ser focado na prioridade”, comenta.

Para Janaína, o Estado precisa assumir o atendimento específico das crianças logo após o crime, ainda na delegacia. “Locais de encaminhamento para a criança ter uma assistência psicossocial específica, que não fosse ali em um núcleo de proteção à mulher, mas sim em algo específico para a infância”. A neuropsicóloga também acredita que um espaço de escuta especial é fundamental, “em que essas crianças não sofram novas violações ao relatarem as experiências vividas”.

Se não existem políticas públicas voltadas para o atendimento de órfãos do feminicídio, alguns projetos de lei propõem a transformação desse quadro. No Congresso Nacional tramita uma proposta da deputada federal gaúcha Maria do Rosário (PT), que prevê pensão de um salário mínimo para os órfãos de vítimas de feminicídio cujas famílias tenham renda per capita igual ou inferior a 25% do salário mínimo (o equivalente a R$ 330). A proposta foi aprovada na Câmara dos Deputados e está em análise no Senado.

Como explica a assessora de Rosário e coordenadora da rede Levante Feminista Contra o Feminicído, Telia Negrao, é preciso que a sociedade passe a “discutir os impactos sociais da tragédia do feminicídio e isso inclui a orfandade”. “Algo que nós temos falado é o seguinte: ‘qual seria o primeiro pensamento de uma mulher que tem filhos e se vê em um quadro eminente de morte? em quem ela pensaria primeiro?’ e, no geral, todas as pessoas nos dizem: nos filhos que vão ficar para trás”.

No Rio Grande do Sul, o projeto de lei de Jefferson Fernandes prevê a priorização no atendimento de assistência social, saúde, alimentação, moradia e educação para crianças e adolescentes órfãos do feminicídio. “O Estado nunca procurou essas famílias. E essas crianças permanecem em um cotidiano de sofrimento sem que ninguém note”. De acordo com o parlamentar, no ano passado, dentre 106 mulheres vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul, 89 eram mães e 219 crianças ficaram órfãs em decorrência do crime. Questionado se pretende incluir um protocolo para a localização e mapeamento dos órfãos de feminicídios em seu projeto – uma demanda de pesquisadoras e profissionais da área -, o deputado afirmou que o projeto pode ser aprimorado com emendas. “Sem informações e diagnósticos não avançamos”, afirmou.

Ao todo, a reportagem localizou 10 projetos de lei sobre o tema, tramitando em municípios, estados e no Congresso Federal. Com exceção do projeto de Maria do Rosário, todas as demais propostas têm como mote a garantia do atendimento prioritário e humanizado – já previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).


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