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11 de maio de 2022
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17:29

Discussão sobre cercamento dos parques esconde projeto de privatização de espaços públicos

Por
Luís Gomes
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Foto: Fabricio Gonçalves/DEFESA CIVIL PMPA
Foto: Fabricio Gonçalves/DEFESA CIVIL PMPA

No dia 3 de maio, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), publicou um artigo intitulado “Chegou a hora de cercar os parques?”. Nele, o chefe do Executivo parte do fato de que a nova iluminação instalada na Redenção – 56 refletores, fiação e novos equipamentos – havia sido inteiramente roubada em um intervalo de 48 horas para então observar que a legislação não permite a contratação de vigilância privada para os parques abertos e, na sequência, lançar a pergunta: “Por que, então, não cercar?”

Em resposta a questionamentos encaminhados pela reportagem do Sul21, Melo disse, na última segunda-feira (9), que o objetivo do artigo foi abrir discussão e que não defende o cercamento dos parques como solução única, mas que deseja debater o assunto.

“São 700 praças na cidade, são nove parques e cada caso é um caso, né? Eu não acho que a solução única seja cercar os parques, mas nós estamos vivendo um vandalismo enorme na cidade”, disse. “A Prefeitura não vai fazer de forma autoritária cercamento de parque. Ela quer discutir o assunto. Nossa cidade é uma cidade democrática, sempre constrói consensos, e consenso nem sempre é cem por cento, mas essa discussão está aberta por parte da Prefeitura”, afirmou.

O prefeito defende ainda que a discussão sobre cercamento dos parques precisa levar em conta o fato de que muitos espaços públicos já estariam “fechados” para a população de Porto Alegre em razão da falta de segurança.

“Eu pergunto: à noite, hoje, alguém anda na Redenção? Alguém anda hoje no Mascarenhas, alguém anda hoje no Chico Mendes, à noite? Não, né? Então, eles estão abertos, mas estão cercados para a população usar. Agora, eu não estou dizendo que é a posição da Prefeitura. Nós estamos abrindo a discussão. E abrir a discussão é dar vazão a todos os pensamentos sobre o tema. E lá no final você poder construir esses consensos”, observou.

O prefeito afirmou ainda que a proposta, caso a ideia do cercamento dos parques avance, é iniciar pelo Parcão, em razão de o parque estar passando por obras de revitalização realizadas como contrapartidas de investimentos da construtora Melnick Even e da rede Zaffari. “Começar essa discussão pelo Parcão, em função das melhorias que estão sendo feitas e que, se não tiver uma uma governança próxima depois dessas obras prontas, nós sabemos o que vai acontecer. O que vai acontecer é que todos esse equipamento vão ser destruídos”, afirmou o prefeito.

 

Em obras, Parcão seria o primeiro parque a ser foco da discussão, segundo Melo | Foto: Sérgio Louruz/SMAMUS PMPA

Para o vereador Matheus Gomes (PSOL), a discussão que está sendo proposta pelo prefeito não é sobre o cercamento dos parques, mas sobre a concessão da gestão dos parques para a iniciativa privada. “Isso é o plano de fundo do artigo do Melo e o grande projeto da Prefeitura. Estender para a Redenção e para os diversos parques da nossa cidade o modelo que está sendo desenvolvido de forma pioneira no Harmonia, que foi concedido por décadas a grupos privados e que hoje estão explorando comercialmente aquele espaço”, avalia.

A preocupação de Matheus Gomes é que a concessão dos parques possa restringir a possibilidade de atividades desenvolvidas pela população nestas áreas, o que, segundo ele, já acontece, por exemplo, na Orla do Guaíba.

“Há algumas semanas, nós tivemos uma situação de repressão por parte da Guarda Municipal a blocos [de Carnaval] que aconteceram na Orla, ali no deque. Eu fui acompanhar a situação, inclusive solicitei formalmente informações sobre a capacidade do espaço, quantas pessoas comporta, que tipo de estrutura pode pode ser instalada ali. É uma questão de segurança, inclusive. Alguns dias depois, me deparei com um anúncio de um show ali, um show privado, feito por uma produtora, etc, naquele mesmo espaço. Por que que essa atividade pública, no caso ali um bloco, foi reprimida e um show estava ali sendo estruturado com todas as garantias? São modelos de evento. Eu acho que os dois eventos podem conviver, mas a Prefeitura demonstra que não quer que esse tipo de evento seja realizado dessa forma, apenas o modelo que vai ao encontro dos interesses políticos e da visão ideológica que o governo tem instaurado”, diz.

Para o vereador, antes de discutir o cercamento dos parques, a Prefeitura deveria enfrentar as falhas de gestão e segurança que levaram aos furtos denunciados pelo prefeito. “Como que toda a estrutura de iluminação que foi colocada é furtada num ambiente que é monitorado sem que haja a identificação desse problema? Por que não ataca antes as falhas de monitoramento?”, diz. “O prefeito está indo pra uma linha que vai já direto nesse objetivo de privatizar e cercear. E eu quero enfatizar esse elemento de cercear mesmo, porque o que a gente tem visto é uma Prefeitura que dizia que a cidade estava de costas para a Orla. Pois bem, a Prefeitura se voltou para a Orla e se esqueceu da periferia, ficou de costas para a população de Porto Alegre, e está querendo criar um modelo de desenvolvimento na região central e na Orla que vai excluir a população trabalhadora e periférica desses espaços. Esse é o processo que nós estamos vivenciando nesse momento”, afirma.

Luciano Fedozzi, professor do Departamento de Sociologia da UFRGS e membro do Observatório das Metrópoles, diz que o debate sobre o cercamento dos parques para evitar roubos poderia ser feito. Contudo, ele também concorda que o que está em jogo é a concessão desses espaços para a exploração da iniciativa privada.

Fedozzi avalia como “ingenuidade” reduzir a discussão do cercamento dos parques a um debate sobre eficiência e eficácia da iniciativa privada na gestão de espaços públicos, mas pondera que já seria uma questão “altamente discutível” adotar um modelo em áreas que deveriam ser marcadas pela universalização do acesso público, sem constrangimento, sem seleção de público por critérios de renda, posição social e etnia.

“Mais do que isso, me parece que vem sendo implementada em Porto Alegre a ideia da cidade de mercadoria, ou seja, a ideia é que Porto Alegre tem que se colocar na agenda internacional de vender a cidade como algo que pode atrair a questão de transformar tudo isso, como a linguagem econômica gosta de dizer, quer dizer, os ativos transformados em novas possibilidades de mercantilização e de acumulação de capital. Algo que já vem ocorrendo em outras cidades, outras metrópoles do Brasil, por meio daquilo que nós do Observatório das Metrópoles chamamos de inflexão ultraliberal”, diz.

Fedozzi pontua que Porto Alegre adiou esse movimento ao adotar, durante a década de 1990, nos governos da Frente Popular, um modelo de desenvolvimento baseado em investimentos públicos, na qualificação da prestação de serviços e na participação cidadã. “Um modelo que evidentemente não foi perfeito, como nada é, mas ele nadava na contramão da hegemonia do projeto neoliberal que estava sendo implementado no mundo a partir da década de 80 e que encontrou no Brasil um terreno fértil em algumas grandes metrópoles”, diz.

O sociólogo avalia que, ainda que de forma tardia, Porto Alegre vive essa inflexão de forma muito acelerada a partir do discurso de que a privatização, a concessão e a mercantilização dos serviços e espaços públicos seria inevitável. “Eles apresentam como algo que é inevitável, como algo que vai trazer muito mais resultados do ponto de vista do desenvolvimento urbano, mas, na verdade, isso está cumprindo esse esse papel muito grande de se transformar as fronteiras de ampliação e reprodução da acumulação urbana, acumulação dos capitais que se dá no plano urbano”, diz.

Professor do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, Eber Pires Marzulo avalia que o cercamento é uma proposta simplista mesmo levando em conta apenas a questão da segurança. Segundo ele, um dos problemas é o fato de que um eventual cercamento geraria o que chama de “áreas obscuras” ou “cinzas”, que seriam áreas menos protegidas dentro de um parque. Isso ocorreria porque, com o cercamento, a tendência é de concentração de pessoas próximo aos acessos e em áreas principais, deixando outras áreas mais desprotegidas.

“Vai ficar mais desprotegido porque não vai imprimir a possibilidade da circulação. Tu vê a Redenção, ela tem uma partezinha cercada ali entre o parquinho e o Ramiro Souto, e mesmo com toda a movimentação do parquinho e do próprio parque, é uma área que fica meio isolada ali”, diz, acrescentando também que o cercamento físico de um parque, por si só, não impediria que indivíduos “pulassem a cerca” para roubar equipamentos de iluminação. “Provavelmente não vai resolver esses que andam atrás de fio de cobre, que tem nos parques um espaço atraente para roubos, que vão poder entrar pulando a cerca. E vai gerar novas áreas de insegurança. Vai diminuir a área de uso seguro do parque durante o dia. Então, não vai resolver”, diz.

Além disso, ele destaca que uma das características de parques e praças de Porto Alegre é o uso pela população como rotas de deslocamento, o que seria prejudicado caso o acesso fosse limitado a portões.

“Todas as críticas do século 21, em virtude da crise climática e dos eventos climáticos extremos derivados da crise climática, apontam como uma das alternativas o deslocamento não motorizado por veículos com base na condução de petróleo. Andar a pé, de bicicleta, de skate, patins, e lá no limite final com veículos elétricos, de preferência públicos. Fechar parques e praças vai dificultar esse deslocamento. Vamos de novo para o caso da Redenção, que é mais emblemático. O sujeito vem do Santana para o Bom Fim, da Cidade Baixa para o Centro, ele pode ir pra qualquer um desses bairros que estão na volta atravessando o parque. Agora vamos supor, tu vai colocar um portão no Monumento ao Expedicionário, vai ter um lá na ponta do espelho d’água, um outro na João Pessoa, talvez no eixo que dá para a República e mais outro. Aí tu imagina que o sujeito está chegando no parque por um dos cantos dessas quatro aberturas, ele vai ter que se deslocar”, diz.

O professor avalia também que, do ponto de vista de segurança, o ideal seria o investimento em monitoramento comunitário. “Se tu colocar esses guardas, que não são de alto custo, a circularam no parque durante o dia e a noite, tu já vai ter um bom nível de segurança. Tanto pros bens, quanto para aquilo que deveria ser o bem mais valioso, que é a população. Uma guarda que conheças as pessoas, conheça os usuários, vai ter um efeito melhor do que o cercamento, que vai trazer inevitavelmente o problema de criar áreas escuras dentro do parque e vai dificultar essa função das nossas praças de funcionar para o deslocamento a pé”, diz.

Presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), Rafael Passos considera que a Prefeitura já está resolvida na ideia de concessão dos parques e que, diante disso, o que restaria é a discussão sobre o modelo a ser adotado. “Me parece que há uma linha do governo e que não há muito como modificar ou discutir, e a partir dessa linha temos que discutir os modelos. Os modelos que vêm se apresentando, como o caso paradigmático, que é o Harmonia, e agora parece que se desenha o mesmo para a Orla, naquele trecho do Anfiteatro, o governo diz que só quer fazer uma marina e o resto está tudo aberto a propostas do setor privado. Quer dizer, não há uma discussão inicial com a comunidade porto-alegrense sobre o que se quer dos espaços públicos. Essa deveria ser a primeira premissa”, diz.

Passos defende que o melhor seria a Prefeitura investir mais no “cercamento eletrônico” dos parques, isto é, em câmeras de vigilância. Ele considera que o cercamento físico é uma medida que gera segregação, um problema que seria amplificado com a adoção de segurança privada. “O uso da segurança privada pode vir a trazer uma maior segregação desses espaços porque, primeiro o poder público abre mão do seu monopólio do uso da força, ou seja, da segurança ser uma atividade que deve ser exercida diretamente pelo poder público. E passar a uma segurança privada um poder de polícia sobre espaços públicos é gravíssimo. Por exemplo, essas seguranças privadas podem ser muito bem orientadas pra expulsar pessoas cujas características não venham a condizer com o público que se espera. Então, isso é grave, é uma gentrificação, uma elitização”, diz.

Na mesma linha de Marzulo, Passos avalia que a medida também promove pontos de insegurança e prejudica a circulação de pessoas. “A Redenção e o Parcão são parques utilizados não só como espaços de lazer, mas também são espaços que são utilizados para a mobilidade, de circulação das pessoas, seja o ciclista, seja o pedestre. Com esse uso, as pessoas já criam roteiros, rotas dentro dos parques que ficam consagradas. Quanto mais essa circulação é controlada, como no caso de cercamento com portões pré-definidos, tu cria aí espaços vazios, pouco utilizados e esses espaços acabam se tornando mais perigosos”, diz.

O arquiteto ainda expressa preocupação com o fato de que a discussão está sendo conduzida em meio a processos que estão concentrados na região central e nas áreas mais valorizadas da cidade. “A gente precisa começar a debater que tanto os projetos e programas que estão sendo feitos, quanto essas intervenções, elas estão aí de forma muito desigual, não só os investimentos, mas os esforços públicos, e a cidade então ruma para ser mais desigual do ponto de vista da sua distribuição espacial, mais desigual em melhorias e investimentos, sejam eles diretamente públicos ou através de parcerias”, diz.


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