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25 de dezembro de 2021
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09:04

Projeto de história oral registra para a posteridade a memória da pandemia no RS

Por
Luciano Velleda
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Foto: Silvio Avila/HCPA
Foto: Silvio Avila/HCPA

Março de 2020 é a data em que a pandemia do novo coronavírus se abateu sobre o Rio Grande do Sul. Nas semanas seguintes, conforme o isolamento social ia se tornando algo cada vez mais sério e crescia a percepção de que a crise sanitária não seria breve, um grupo de historiadores começou a esboçar a realização de uma iniciativa audaciosa. Nascia assim o projeto de história oral “Documentando a experiência da covid no RS”, reunindo 13 instituições gaúchas engajadas em captar a experiência da pandemia e os sentimentos do momento pelo olhar de diferentes grupos da sociedade, criando um acervo para informar tanto a população atual como as gerações futuras que um dia terão interesse em entender o que aconteceu nesse período histórico.

Concretizar o projeto em meio ao distanciamento social não foi tarefa simples. Tradicionalmente, a história oral se caracteriza por depoimentos presenciais no formato de entrevistas. Para se adaptar à realidade imposta pela pandemia, o caminho escolhido pelos pesquisadores se dividiu em dois processos: o preenchimento de um formulário e a realização de entrevistas por vídeo.

A professora Carla Simone Rodeghero, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do projeto na instituição, explica que a história oral é uma metodologia de pesquisa e constituição de fontes para o estudo da história contemporânea, entrevistando pessoas que participaram ou testemunharam acontecimentos do passado e do presente. O objetivo não é buscar dados objetivos, e sim o significado que o evento teve na vida das pessoas entrevistadas.

Para os pesquisadores atuantes no projeto “Documentando a experiência da covid no RS”, as motivações também tiveram outros fatores. Para Carla, houve o sentimento de encontrar uma forma de colaborar no processo em que a sociedade estava sendo mergulhada, ser útil.

“Queria descobrir uma maneira de contribuir e fugir daquela sensação de imobilidade e de perplexidade que a gente vivia naquele momento”, explica a professora de História da UFRGS, em depoimento ao podcast Farol.

Já para Rodrigo de Azevedo Weimer, historiador no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, a participação no projeto o ajudou a enfrentar o difícil momento e foi um modo de colocar seu trabalho e seu conhecimento à disposição de uma importante tarefa.

As instituições foram aderindo ao projeto aos poucos, cada uma se debruçando sobre um segmento da sociedade. A UFRGS escolheu ouvir os estudantes de baixa renda e seus familiares, enquanto o Arquivo Público do RS optou por entrevistar gestores que conduzem as políticas públicas relativas à crise sanitária, econômica e social, e servidores do Executivo Estadual. As duas instituições compõem a coordenação geral do projeto.

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“A gente vai ter um caleidoscópio de vários setores da sociedade do Rio Grande do Sul dando seus depoimentos. Vamos ter uma visão bem ampla de diferentes setores da sociedade”, avalia Weimer.

No caso da PUC-RS, Cláudia Musa Fay, professora do Programa de Pós Graduação em História da instituição, explica que o foco foi mostrar o cotidiano da experiência com o ensino remoto, ouvindo o depoimento de alunos e professores sobre a pandemia do ponto de vista da educação e do ensino on-line. Ela conta que o trabalho abrangeu alunos de diferentes cursos e perfis, como forma de comparar como o processo de ensino remoto na pandemia estava sendo recebido, além de captar o sentimento dos riscos e perigos que afligiam cada participante.

“Um dos maiores legados que a gente pode ter, além de aprender a trabalhar de forma conjunta, é saber realidades diferentes. Também estamos tendo a oportunidade de fazer um acervo público que as pessoas poderão consultar daqui a alguns anos”, destaca Cláudia, em depoimento ao podcast Tem profissional da História aí?. “A gente sabe que a pandemia vai passar, a história já nos diz isso de várias formas, outras já passaram, mas é muito interessante a gente retratar as especificidades dessa (pandemia), as coisas que foram diferentes nessa, para outros profissionais e pesquisadores terem acesso a essas informações.”

Ela destaca que os conhecimentos históricos podem contribuir para a análise e entendimento da situação vivida. Como exemplo, recorda que o isolamento social, tão debatido na pandemia do coronavírus e motivo de grande discórdia, foi também uma medida adotada durante a crise da peste negra, no século 14, e da gripe espanhola, no começo do século 20.

Por sua vez, a decisão da UFRGS em ouvir os estudantes de baixa renda e seus familiares levou em conta a maior vulnerabilidade das pessoas com esse perfil e a percepção de que são as populações que mais sofrem com a crise sanitária e econômica. A professora de História da UFRGS Carla Rodeghero conta que as entrevistas têm revelado realidades bastante diferentes. Entre os temas que aparecem estão as transformações nas relações familiares, casos de estudantes que já viviam sozinhos e tiveram que voltar para a casa dos pais, situações de desemprego, relatos de estudantes e familiares infectados, assim como avaliações sobre a atuação dos governantes (federal, estadual e municipal) na gestão da pandemia.

“Temos depoimentos muito interessantes de como as relações afetivas e familiares foram sendo transformadas, o lugar que as redes sociais ocuparam no contexto do isolamento, situações variadas à respeito da possibilidade das pessoas se manterem isoladas, diferenças entre grupos e de vulnerabilidade social, além do uso do ensino remoto. Eles nos trazem um banho de realidade em relação aquilo que tem sido a pandemia para nossos estudantes e setores mais vulneráveis da sociedade”, completa Carla, ex-presidente da Associação Brasileira de História Oral.

O primeiro semestre de 2020 foi marcado pelo planejamento do projeto “Documentando a experiência da covid no RS”. As entrevistas por vídeo-chamada e o preenchimento dos formulários on-line começaram efetivamente no segundo semestre de 2020. Conforme o projeto avançava, novas instituições foram aderindo e cada uma encontrando sua área de interesse, fator avaliado como positivo por ter diversificado a iniciativa.

Até agora, as instituições obtiveram, conjuntamente, o preenchimento de 425 formulários on-line. No caso da UFRGS foram realizadas 69 entrevistas com alunos e familiares, sendo que 66 já estão disponíveis no Repositório de Entrevistas de História Oral (REPHO/UFRGS). Ao longo do projeto, os pesquisadores voltaram a realizar novas entrevistas com as pessoas que foram ouvidas em agosto, setembro e outubro de 2020, com o objetivo de acompanhar as mudanças ao longo de um tempo maior. Nas novas entrevistas há relatos sobre a vacinação e também de contágio e morte de familiares e pessoas próximas.

No caso do Arquivo Público do RS foram feitas entrevistas com gestores públicos vinculados ao Comitê de Dados, que subsidia com informações as decisões políticas, e com secretários que compõem o Gabinete de Crise criado pelo governo de Eduardo Leite (PSDB). Em um segundo momento, incluiu-se também servidores do Poder Executivo, totalizando 29 entrevistas distribuídas entre os três grupos.

Além da UFRGS, Arquivo Público e da PUC-RS, participam do projeto outras 10 instituições: Casa da Memória Unimed Federação/RS; Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Centro Histórico Cultural Santa Casa; Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos); Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre; Universidade Federal do Pampa (Unipampa); Faculdades Integradas de Taquara (Faccat); Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Museu Universitário de História da Medicina (MUHM); e o GT Historia e Saúde da Associação Nacional de História-RS.

Também historiadora no Arquivo Público do RS (APERS), Clarissa Sommer reflete sobre a relação da memória em tempos de mudanças profundas nas formas de comunicação na sociedade contemporânea, com uma velocidade jamais vista na circulação de notícias e informações.

“São nesses momento que a gente sente que faz história. No cotidiano, em tempos mais tranquilos, às vezes a história nos parece algo distante, feito pelas pessoas públicas, e a gente esquece que no cotidiano nós ajudamos a constituir aquilo que um dia vai ser percebido a partir de uma escrita da história, e vai colaborar para a construção de uma narrativa do conhecimento histórico”, explica.

Clarissa conta sobre o trabalho que os pesquisadores tiveram em fazer os participantes perceberem que estão vivendo um momento histórico importante e particular, permeado pelo trauma.

Por outro lado, a professora de História da UFRGS diz ter sido possível perceber, desde o início do projeto, o desejo das pessoas em falar. Entre os pesquisadores, a necessidade de compartilhar e participar do projeto foi igualmente grande.

“Se estamos vivendo, desde o início da pandemia, num clima de negacionismo, nosso trabalho é cada vez mais necessário. Porque se agora estamos convivendo com todas essas mortes e ainda existem pessoas que negam os fatos, imaginamos que daqui a algum tempo, quando a vida voltar a algum tipo de normalidade, ainda mais necessário serão os registros de que essas coisas realmente aconteceram”, explica Carla Simone Rodeghero.

O historiador Rodrigo Weimer vai na mesma linha e diz que a disputa da memória já está em curso e ter o registro do que foi vivido é fundamental para contrapor o discurso negacionista no Brasil e no Rio Grande do Sul.


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