Geral
|
16 de setembro de 2021
|
17:58

Após mais de 80 anos, Hospital Colônia de Itapuã pode ser fechado

Por
Luís Gomes
[email protected]
Entrada do Hospital Colônia de Itapuã, localizado a quase 60 km de Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Entrada do Hospital Colônia de Itapuã, localizado a quase 60 km de Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Tramita na Câmara de Vereadores de Viamão o projeto de lei 121/2021, de autoria do Executivo municipal, que pode levar ao fechamento do Hospital Colônia de Itapuã (HCI). O projeto autoriza o município de Viamão a firmar um convênio com a Secretaria Estadual de Saúde (SES) para proceder com a desinstitucionalização de pacientes da saúde mental e ex-hansenianos da instituição e transferi-los para residenciais terapêuticos.

Localizado em uma área verde de 1.253 hectares a 53,5 km do Centro de Porto Alegre, o Hospital Colônia foi criado em 1940 como um leprosário para isolar portadores de hanseníase no âmbito de uma política desenvolvida pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. No auge da política, o HCI era uma mini-cidade com igrejas, praças, escola, salão de festas, prefeitura e delegacia, para onde todas as pessoas que eram diagnosticadas com a doença no Rio Grande do Sul eram levadas. Uma internação compulsória que duraria até o fim da vida do paciente.

Com a mudança na política, atualmente a área do Hospital Colônia segue ocupada por 16 pessoas que se curaram da hanseníase, mas decidiram permanecer vivendo no local, e por pacientes psiquiátricos levados posteriormente para a instituição.

Secretária-adjunta de Saúde de Viamão, Michele Galvão afirma que o projeto de desinstitucionalização tem o objetivo de adequar a realidade dos pacientes à Reforma Psiquiátrica, de 2001, que previa o fechamento de hospitais psiquiátricos e a substituição do modelo asilar pelo cuidado em liberdade. Apesar de ser uma política implementada no Brasil há duas décadas, o Rio Grande do Sul ainda permanece como um dos estados mais atrasados do Brasil em relação à mudança.

Um dos objetivos do atual projeto de lei é dar autorização à Secretaria de Saúde de Viamão para comprar os equipamentos e a mobília para os residenciais, uma vez que a pasta terá que adquirir uma série de materiais que hoje não fazem parte de suas atribuições, como roupeiros, camas, eletrodomésticos, utensílios de cozinha, entre outros.

De acordo com Michele, um segundo projeto está sendo elaborado para definir os critérios técnicos para a transferências das pessoas para os residenciais e a localização das casas a serem construídas. Ela ressalta que, via de regra, os pacientes exigem cuidado integral no dia a dia, não apenas tratamento clínico.

Ela explica que os pacientes que moram dentro do Hospital Psiquiátrico vão para residenciais e que os pacientes de hanseníase, que moram sozinhos em casas dentro da Colônia, devem ir para casas semelhantes as que vivem hoje e que também serão providenciadas pelo município.

“Vai ter um residencial que vai ter mais moradores acamados, então esse vai precisar de mais cuidado de enfermagem. Tem outros pacientes que são mais autônomos, que tem que ensinar mais a ir no banco ou no mercado, então esse vai ter mais acompanhante terapêutico”, diz. “Todos eles vão ter acompanhamento, mas o paciente de saúde mental precisa de um monitoramento para se reinserir na comunidade, para refazer a sua autonomia, para refazer a sua vida sozinho. O paciente de hanseníase que tem autonomia preservada, ele vai precisar de cuidados de saúde, de atendimento de unidades de saúde, de medicamento. Eles têm hoje um outro suporte do Estado que é relacionado a tratamento com medicamentos e especialistas em dermatologia sanitária. Isso tudo a gente vai manter”.

Representante do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) na região metropolitana de Porto Alegre, Magda Chagas pondera que a entidade vê uma série de problemas no projeto apresentado pela Prefeitura de Viamão. O primeiro deles é justamente o fato de se tratar de uma iniciativa do governo municipal, quando o HCI é um patrimônio público estadual gerido pela SES.

“Tal projeto se antecipa a qualquer iniciativa do governo estadual, que deveria ser o proponente natural deste tipo de discussão, tendo em vista que não há oficialmente nenhum convênio assinado entre o Estado e a Prefeitura de Viamão. Ao contrário, deveria partir do Estado a busca de parceria com o município, visto que este aparelho estatal está no município de Viamão. Portanto, o Executivo Municipal de Viamão não tem nenhuma ingerência sobre o HCI, e o que ele busca no legislativo local é uma autorização para desinstitucionalização dos internos do hospital através de convênio que ainda não existe”, diz.

Além disso, ela afirma que há preocupação quanto ao futuro do acompanhamento dos pacientes, uma vez que o projeto estipula que o convênio a ser firmado para a contratação de vagas nos residenciais terapêuticos terá um prazo mínimo de 60 meses. Para Magda, essa situação gera incerteza sobre o que poderá ocorrer com os pacientes após esse período. “Ressaltamos que na área do hospital há moradores que residem lá a maior parte de suas vidas, e que têm no HCI, além de seus lares, tratamento contínuo e cuidados de saúde. Esta incerteza sobre o futuro tem causado uma imensa perturbação entre os pacientes e também entre os funcionários”, diz.

Coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio destaca que a política de desinstitucionalização na saúde mental não pode ser aplicada nos mesmos moldes aos pacientes de hanseníase, porque se tratam de pessoas que perderam a autonomia ao serem internadas compulsoriamente e mantidas nos chamados leprosários, em muitos casos, por décadas. “São pessoas que foram sequestradas pelo Estado por uma política de internação compulsória. Uma política higienista que o Estado brasileiro, recentemente, reconheceu que cometeu um crime de Estado com relação a elas, fazendo uma política de reparação e de indenização através da lei 11.520”, diz.

Custódio teme que o Estado possa estar cometendo um novo crime contra os direitos humanos, caso não garanta o atendimento adequado aos pacientes de hanseníase num eventual fechamento do Hospital Colônia. “A gente está falando de pessoas que viveram a vida toda e construíram suas redes sociais entre elas e com as pessoas que foram ocupando a área ou que eram profissionais de saúde. São pacientes que têm problemas de autonomia, de percepção, que podem ser tuteladas, curateladas, a gente está falando de pessoas que não respondem por elas próprias. Essa é uma das coisas que a gente está discutindo, que, de novo, o Estado está cometendo um crime com relação a essas pessoas, um crime de direitos humanos à medida que retira sem nenhum diálogo”, diz.

Segundo Magda, o Morhan é contrário ao projeto na forma como ele foi formulado.

Pacientes que se curaram da hanseníase moram em casas no Hospital Colônia de Itapuã | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Acionada pelo movimento, a deputada estadual Luciana Genro apresentou na terça-feira (14) um pedido de informações ao governo do Estado a respeito dos planos para a instituição. Para ela, falta transparência no processo, uma vez que a Prefeitura de Viamão e o governo do Estado não estariam respondendo a questionamentos dos familiares a respeito do projeto.

“O governo não atendeu o movimento, não atendeu os familiares para dar uma explicação, se vai de fato fechar, se vai mandar os pacientes para outro lugar. Enfim, é uma completa falta de consideração com as pessoas e com os familiares”, disse.

No pedido de informações, que o governo tem até 30 dias após a apresentação para responder, ela pergunta se o Hospital Colônia será fechado, quais os critérios que embasaram a medida, se houve diálogo com a comunidade e para onde os pacientes serão transferidos. “É muito estranho que o governo do Estado nada diga a respeito, mas que tramite na Câmara de Viamão um projeto em regime de urgência para a transferência dos pacientes”, diz.

Michele Galvão afirma que o objetivo da Prefeitura é promover a reinserção dos pacientes na comunidade. “A gente vai montar as casas em que eles vão viver em modelo de convivência, em quartos, com cozinha, e vamos trabalhar a reinserção deles, como usar dinheiro, como ir ao mercado, como fazer compras, como fazer comida, como arrumar a cama, num processo de ressocialização como um todo”, diz.

A secretária adjunta afirma que foi feito um estudo prévio de todos os usuários residentes do HCI e quais as condições clínicas, com o objetivo de compreender qual a demanda que eles vão ter após a conclusão do processo de desinstitucionalização.

Para Michele, a mudança, quando concluída, irá trazer ganhos em qualidade de vida para os pacientes residentes da Colônia. “Eles vão poder andar num pátio sozinhos, poder ir no mercado, saber ir em segurança tendo a sua autonomia retomada, sem estar dentro de um asilo, de um prédio com grades”, diz.

Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde diz que o Hospital Colônia Itapuã já vem fomentando a desinstitucionalização dos moradores que estão em sua tutela a partir das bases preconizadas pela Reforma Psiquiátrica e pela Política de Saúde Mental no Brasil. “Desinstitucionalizar visa à inclusão social dos usuários e significa criar oportunidades de pertencimento, onde são respeitados suas diferenças, limites, possibilidades, interesses e habilidades singulares, garantindo a individualidade. Para além da realocação em residenciais terapêuticos, o HCI busca fortalecer o vínculo destes pacientes com a rede municipal”, diz a SES em nota.

Segundo a pasta, os residenciais terapêuticos são alternativas de moradias para as pessoas com internação psiquiátrica de longa permanência que não contam com um suporte familiar e social adequado. “Devido o Hospital Colônia Itapuã pertencer ao território do município de Viamão, o projeto de desinstitucionalização dos moradores deste hospital está tecnicamente estruturado em conjunto com a gestão da secretaria da Saúde do município de Viamão. Neste processo de fortalecimento de vínculo com a rede municipal, estão sendo contemplados todos os pacientes vinculados ao HCI”, diz a pasta.

No próximo dia 22, será realizada uma audiência pública na Câmara de Vereadores de Viamão para debater o projeto.

Pórtico separava as zonas “limpa” e “suja” do HCI, uma vez que pessoas doentes só podiam falar com a família pelo vidro do parlatório | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O projeto de lei da Prefeitura de Viamão não trata do futuro do Hospital Colônia de Viamão após a conclusão do processo de desinstitucionalização. Michele Galvão diz que o futuro das instalações físicas não está na pauta da secretaria e que, no seu entender, elas deverão retornar ao governo do Estado, que é o proprietário da área. “Neste momento, na Secretaria de Saúde, não tem se tratado nada com relação ao patrimônio. É só do cuidado de saúde dos pacientes”, diz.

Para Magda Chagas, o Hospital Colônia desenvolveu ao longo das décadas uma relação importante com a comunidade de Itapuã, que se desenvolveu ao redor da instituição. Por isso, a proposta do Morhan é de que o hospital continue aberto no futuro, atendendo a população local. Ela destaca que isso já ocorreu no passado, quando o ambulatório da instituição atendeu moradores da região.

“É necessário pensarmos em formas de construir uma nova história para o HCI, que atendam a comunidade e que também busquem a preservação de sua história em reparação à memória sensível de todos os que foram confinados brutalmente pelo Estado. Precisamos pensar, juntamente com os moradores de Itapuã, em projetos que atendam às demandas da comunidade, garantindo o desenvolvimento sociocultural e educacional da região. Projetos que acolham e que também sejam acolhidos por diferentes grupos, gerando empregos, integrando a comunidade e trazendo soluções de desenvolvimento social. Projetos que respeitem a memória dos ex-internos e o modo como essas pessoas criaram suas relações de acolhimento com aquele espaço, com a natureza e com a arquitetura do HCI”, diz.

Artur Custódio explica que a memória sensível é uma linha do patrimônio histórico que trata de locais em que violações de direitos e crimes foram cometidos e que a recomendação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) é de que estes locais sejam tombados como patrimônio histórico e preservados para que a memória das violações não se perca.

“A Colônia é um patrimônio porque, quando Getúlio Vargas a constrói, a ideia era tentar montar um modelo que seria replicado no País inteiro. Então, essa Colônia tem um valor histórico nacional. E, por outro lado, para a Unesco, não existe preservação de patrimônio se não tem ocupação”, diz.

Em 2010, a Igreja Luterana instalada na área do hospital, que foi projetada pelo arquiteto e engenheiro alemão Theo Wiederspahn — o mesmo da Casa de Cultura Mário Quintana, do MARGS, entre outros –, foi tombada, assim como suas adjacências, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae).

Cidade do antigo leprosário abriga ainda uma das últimas obras do arquiteto Theo Wiederspahn, a igreja protestante | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Um dos temores do Morhan é que o projeto de desinstitucionalização esteja sendo realizado agora com o objetivo de privatização ou alienação da área, com a eventual construção de empreendimentos residenciais no local. Por entender que as adjacências da Igreja significam todas as instalações da Colônia, Custódio avalia que isso não poderia ser feito.

“Tem muitos prédios lá que poderiam ser usados para treinamento de pessoas, como equipamentos de universidade ou ainda para avançar para a questão de postos de saúde, de assistência social, avançar para ter unidade de emergência para aquela área da comunidade que é longe do centro de Viamão”, defende Custódio.

Apesar de não estar claro o que será feito com as instalações, o coordenador do Morhan questiona a falta de transparência do governo do Estado no processo.

A reportagem encaminhou questionamentos à SES sobre o futuro das instalações do Hospital Colônia de Itapuã, mas a secretaria estadual informou apenas que o trabalho que está sendo feito no momento visa apenas o processo de desinstitucionalização. A pasta não informou sobre os planos futuros para o local.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora