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10 de julho de 2021
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09:22

Projeto quer dar novas moradias a famílias que perderam tudo em incêndio na Cai Cai

Por
Luís Gomes
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Projeto busca reconstruir as casas atingidas por incêndio na Vila Cai Cai | Foto: Reprodução
Projeto busca reconstruir as casas atingidas por incêndio na Vila Cai Cai | Foto: Reprodução

“Eu tinha saído para trabalhar. Quando eu cheguei, já não existia mais casa. Tava só brasa e fogo, não tinha mais nada. Foi uma porrada muito grande”, diz Cristiano de Oliveira Mentes. Ele é um dos antigos moradores do Beco da Vila Cai Cai, localizada no bairro Cavalhada, zona sul de Porto Alegre, afetados por um incêndio que destruiu as casas de seis famílias na manhã do dia 8 de janeiro de 2021. O incêndio durou apenas 30 minutos, mas destruiu todos os pertences da casa em que Cristiano morava com dois filhos. “Fiquei sem chão, sem destino, sem nada”, diz.

Por sorte, os filhos de Cristiano também não estavam no local na hora do incêndio. “Foi Deus quem fez eles teimarem de sair para a rua”, diz. Ao todo, 28 pessoas foram afetadas pelo incêndio, incluindo 13 crianças e adolescentes.

Adriana Escobar de Oliveira, outra moradora atingida pelo incêndio, conta que também não estava em casa na hora do incidente. Mas foi alertada por sua filha, que morava em uma casa ao lado. “Eu estava trabalhando. Saí, a minha casa estava inteira. Quando eu voltei, não tinha mais nada”, diz.

Além dos pertences, também viu o fogo queimar a lancheria que tinha para complementar a renda de seu trabalho como faxineira e ficava localizada no terreno da frente. “Eu perdi tudo. Foi bem difícil”.

De acordo com os moradores, o incêndio foi causado por uma sobrecarga em um transformador na fiação da área. Começou por um vizinho de Adriana, atingindo um botijão de gás, que veio a explodir, fazendo o fogo se espalhar rapidamente pela área. “Eu moro aqui há mais de 24 anos e soube de um incêndio, mas foi pequeno”.

Passados sete meses do incêndio, as famílias de Cristiano e Adriana estão morando de aluguel na Vila Cai Cai. Nos primeiros meses, receberam doações de roupas, móveis e eletrodomésticos e tiveram o aluguel pago por dois meses com recursos de uma campanha de arrecadação que envolveu professores que atuam na Cai Cai, movimentos sociais e o projeto social Seleção do Bem, liderado pelo ex-jogador Dunga. Posteriormente, passaram a receber um auxílio moradia no valor de R$ 500 da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da Prefeitura de Porto Alegre, que será oferecido às famílias por um prazo de dois anos.

No entanto, os movimentos sociais, em parceria com escritórios de Arquitetura, buscam recursos para garantir uma solução de moradia permanente para as famílias. Com o projeto Levanta Cai Cai, estão angariando recursos para a construção de seis casas de alvenaria para as famílias.

Professor da Escola Neuza Brizola, João Francisco Pereira Neto é um dos apoiadores que tem liderado o Levanta Cai Cai. Ele destaca que o loteamento Cavalhada, conhecido como Vila Cai Cai, é originário de uma vila que existia na Orla do Guaíba, próxima ao Beira-Rio, na altura de onde hoje está localizado o viaduto Abdias Nascimento. “Era chamada de Cai Cai porque eles tavam praticamente caindo para dentro do Rio”, diz. O loteamento foi formado após a remoção da vila e de outras áreas da cidade.

Já o Beco da Cai Cai foi ocupado há cerca de 20 anos por famílias que até hoje vivem em situação irregular e sem os serviços de luz, água e esgoto regulares.

João conta que um grupo de professores vinha ajudando o Beco desde antes do incêndio. O grupo foi responsável, por exemplo, por ajudar a construir banheiros para as famílias, reformar telhados e dormitórios das casas. Após o incêndio, eles se uniram a outras entidades para organizar a campanha de arrecadação de doações. Contudo, as entidades decidiram que também seria importante reconstruir as casas afetadas.

Inicialmente, o ex-jogador Dunga sugeriu construir um galpão para abrigar as famílias, mas a ideia das entidades era de que seria importante não apenas reconstruir as casas, mas qualificar as moradias, porque as habitações eram, em geral, casebres com condições precárias.

“Nós começamos a constituir um projeto de casas de verdade para essas pessoas e casas que, principalmente, pudessem dar conta da realidade de cada família”, diz.

Claudia Favaro, sócia do escritório Mãos: Arquitetura, Terra e Território, explica que já há um anteprojeto de arquitetura para as casas pronto, elaborado pelos arquitetos Eduardo Cidade e Jamile Mallet em parceria com estudantes do escritório modelo da PUCRS, Lugares, e com arquitetos dos escritórios Laboratório Urbano e Happy Arquitetura, todos atuando de forma voluntária. O projeto agora conta com o auxílio de um professor da UFRGS na parte de Engenharia.

“Acho que o diferencial do projeto é a questão dele ter sido trabalhado, estudado e concebido junto com as famílias. Várias visitas e reuniões foram feitas com as famílias e o projeto acabou ficando a cara delas, no sentido de reconhecer e responder à real necessidade das famílias, não simplesmente fazer um modelo e replicar. Não são casas iguais. A gente tem famílias com seis ou sete crianças e famílias que não têm, então a gente foi trabalhando essa realidade adaptada aos lotes já existentes, à forma de divisão territorial que já existia ali, até para não criar conflitos entre as famílias”, afirma.

O professor João reconhece que se trata de um projeto ousado por conta dos custos para a construção das casas, que variam de R$ 35 mil a R$ 80 mil. Neste momento, o projeto tem buscado o recursos para começar as obras com a colocação das fundações. Posteriormente, a ideia é conseguir a doação de materiais para a realização das obras. Realizada nas redes sociais, a campanha Levanta Cai Cai tem recebido o apoio de diversas figuras conhecidas na cidade pela atuação na área cultural e em esportes, como o ex-jogador Falcão, o cantor Armandinho, entre outros.

Claudia explica que, além de uma campanha de arrecadação feita pelo site Apoia-Se, estão recebendo recursos via Pix (confira mais informações). A ideia é arrecadar R$ 200 mil num primeiro momento. Ela conta que representantes do projeto já se reuniram com o secretário municipal de Habitação e Regularização Fundiária, André Machado, que deu apoio institucional ao projeto.

Em conversa com a reportagem, Machado explica que, por enquanto, a Prefeitura não pode auxiliar no projeto de reconstrução das casas, mas que ele tem trabalhado junto com a secretária de Parcerias Estratégicas, Ana Maria Pellini, para buscar parceiros privados. “Por ser uma área irregular, é muito difícil a gente colocar diretamente recursos do município. Mas a gente está afim de buscar parcerias”, afirma.

O secretário destaca que o incêndio ocorreu nos primeiros dias do governo e que a primeira medida tomada foi uma visita de técnicos do Demhab ao local. Uma possibilidade estudada pelos técnicos foi a construção de casas de emergência, mas o terreno não comportaria mais do que três unidades.

Machado saúda o fato de entidades da sociedade civil terem se organizado para tocar o projeto. “Se nós fôssemos trazer para o município o projeto que eles estão fazendo lá, nós não conseguiríamos fazer pela burocracia, pela necessidade de regularização, mas a gente acha que o projeto que está sendo construído lá pode ser uma marca bacana para outras ações que a gente venha a realizar no futuro”, diz.

Claudia Favaro avalia que, mesmo que o poder público tivesse condições para a auxiliar na reconstrução das casas, seria necessário abrir um processo licitatório e não haveria como priorizar as famílias da Cai Cai, uma vez que a destruição de casas por incêndios é algo rotineiro em comunidades carentes de Porto Alegre.

A respeito da possibilidade de regularização fundiária da área, o secretário de Habitação diz que não está no horizonte imediato a regularização da área porque a Prefeitura, neste momento, está priorizando áreas que não estejam sob conflito fundiários e contestações sobre a posse. “A determinação do prefeito é que a gente faça regularização onde for possível. Se for possível fazer lá, nós vamos, mas, nesse momento, não está no horizonte. Talvez o projeto nos ajude a fazer com que seja, porque eu acho que vai ter um fator irradiador de melhorias nas outras casas também”, diz.

Adriana Oliveira diz que o projeto Levanta Cai Cai é um sonho e que se emociona com carinho dos voluntários com a comunidade. “A gente não esperava que desse essa repercussão toda, mas foram aparecendo pessoas e ficou maravilhoso o projeto”, diz. “A minha esperança é que sirva de exemplo para outras coisas, não só nos casos como o nosso”, complementa.

Ela explica que, no momento, está morando na comunidade com um de seus filhos adolescentes. O outro que morava com ela passou a morar com o pai após o incêndio.

Cristiano Mentes diz que está com os “dois pés no chão” porque sabe que o valor pretendido para a arrecadação é elevado, mas considera como um sonho a ser realizado. “É uma luz no fim do túnel, uma esperança que a gente tem de realizar esse sonho, de poder ter o nosso lar de volta, a gente poder voltar cada um para a sua casa, para o seu cantinho, porque nós estamos todos divididos, cada um num canto”, diz.

Antes do incêndio, ele morava no Beco com uma filha de 10 anos e um filho de 7. Os dois hoje estão morando com a mãe, no bairro Restinga, porque ele não consegue mais ajuda para cuidar deles. Felizmente, no final de junho, conseguiu um emprego com carteira assinada e agora espera que o projeto sai do papel para ajudar a reconstruir a vida.

“Não é um luxo. Nós estamos na necessidade. É um sonho de ter uma moradia digna. Tu poder chegar em casa e ter um banheiro, um quarto fechadinho, quentinho, tudo direitinho. Que eu vou ter um conforto para poder ficar com os meus filhos.”


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