Entrevistas
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5 de dezembro de 2020
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19:35

‘O homem branco pensa a educação como o melhor emprego, o salário alto, e entende a natureza como mercadoria’

Por
Luciano Velleda
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O kaingang doutor Darci Emiliano é autor da tese “A educação ambiental no IFRS: estratégias ecosóficas para construir os dispositivos de ingresso, permanência e êxito dos estudantes indígenas”, defendida em 2020 na FURG. Foto: Branca Lamas/Divulgação/FURG
O kaingang doutor Darci Emiliano é autor da tese “A educação ambiental no IFRS: estratégias ecosóficas para construir os dispositivos de ingresso, permanência e êxito dos estudantes indígenas”, defendida em 2020 na FURG. Foto: Branca Lamas/Divulgação/FURG

O dia 4 de dezembro de 2020 pode vir a ser um marco na história do ensino superior gaúcho. É a data em que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das mais importantes instituições do Brasil, concedeu o primeiro título de doutor para um aluno indígena, o kaingang Bruno Ferreira. Há outros estudantes indígenas fazendo doutorado na UFRGS e que logo devem concluir suas teses, assim como também há indígenas com títulos de doutor obtidos em outras instituições de ensino superior do Estado. São ainda poucos. Há muito a ser feito para que mais Brunos ingressem e concluam seus estudos nas universidades brasileiras.

O kaingang doutor Darci Emiliano conhece de perto essa realidade. Ele é autor da tese “A educação ambiental no IFRS: estratégias ecosóficas para construir os dispositivos de ingresso, permanência e êxito dos estudantes indígenas”, defendida em março de 2020, na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Criado na Terra Indígena de Cacique Doble, no norte do RS, Emiliano mora na pequena cidade de Sertão, e tem filhos, netos, tios, primos e pais vivendo na terra de seu povo.

Servidor público concursado, trabalha há 26 anos no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), no campus Sertão, o campus objeto de estudo do seu doutorado. Bem humorado, brinca que sua função no IFRS é de “vigilância”, enquanto o nome oficial do cargo é o de técnico administrativo. Entre 1987 e 1989, estudou na mesma escola em que agora “vigia”.

Emiliano já trabalhava no IFRS quando a Lei de Cotas passou a vigorar em 2012. Viu de perto o crescimento do número de indígenas que começaram a ingressar na escola, indígenas que antes tentavam entrar na instituição, mas não passavam pelo processo seletivo. Com as cotas, essa barreira foi aos poucos sendo transposta, porém, um novo problema surgiu: a alta evasão.

Ele explica que as razões da evasão dos indígenas são muitas e estão relacionadas ao processo de aculturação do povo, o choque entre a educação diferenciada dos indígenas, voltada para a compreensão da própria cultura, e aquela praticada no IFRS, além do preconceito e da falta de preparo da escola para receber esse aluno. Enquanto nas escolas indígenas são dadas em torno de 12 disciplinas, nos cursos técnicos no campus Sertão do IFRS são 26 disciplinas.

Desde a promulgação da Lei de Cotas, somente dois indígenas concluíram os cursos técnicos, com duração de três anos, no IFRS em que Emiliano trabalha. No mesmo período, em torno de 50 indígenas entraram na instituição.

“É necessário que a gente saiba o que é a educação para nós, indígenas, e que a gente  entenda o porquê na busca dessa educação. Eu busco pela tentativa de fazer uma troca com o mundo do homem branco, mas existe uma diferença: a minha compreensão de educação é o fato dos indígenas, de nós mesmos, nos indianizarmos, revitalizar nossa identidade, nossa cultura, liberdade, autonomia, respeito à natureza e à família. Existe a horizontalidade e a coletividade para os povos indígenas”, explica Emiliano.

Ele destaca que o conhecimento adquirido pelos indígenas com a educação branca é usado como instrumento de luta e desenvolvimento para os temas de interesse do próprio povo. Sobre a educação do homem branco, todavia, sua visão é bem diferente e provavelmente isso explique, ao menos em parte, a evasão dos alunos indígenas. Para ele, a educação branca visa “desaculturar” o povo indígena.

“O homem branco pensa a educação como o melhor emprego, o salário alto, pensa no lucro e no capital. A educação pra ele não está tão relacionada à natureza como para o indígena, ele entende a natureza como mercadoria. A educação do homem branco também é competição e individualismo”, afirma o doutor kaingang.

Emiliano acredita que as dificuldades vivenciadas pelos alunos indígenas na escola do homem branco se repetem no ensino superior. Ressalta, porém, que até chegar no ensino superior esse estudante indígena já trilhou um caminho e se acostumou ao contato com a vida na cidade e a educação branca, tornando-o melhor preparado para a vida acadêmica. Ainda assim, destaca que mesmo o estudante indígena que chega ao ensino superior tem necessidade de um acompanhamento especial.

Para mudar o cenário, avalia que as universidade precisam se abrir mais, principalmente os cursos de exatas, incluindo o conteúdo, um processo para o qual a área das humanas é mais aberto. Além das questões curriculares, Emiliano se preocupa muito com o risco de os indígenas perderem ou terem mais dificuldade em obter bolsas de estudo, um processo em andamento por parte do governo federal, que tem cortado essas verbas. Ele ressalta que as políticas públicas de auxílio e ações afirmativas são fundamentais para manter o estudante indígena no ensino superior.

“As bolsas de estudo precisam permanecer, é uma das formas de reter o estudante indígena, porque eles não têm como se manter. A nossa sobrevivência ainda é do artesanato indígena”, afirma. “O que mantém a gente são as bolsas, sem elas pode ‘desandar a maionese’.”

O ponto central, reforça Emiliano, é que o estudo superior do homem branco lhes dá o caminho e a preparação para lutar pelos direitos dos povos indígenas. Isso, no entanto,  não pode significar a perda de suas origens. “Nós devemos mesclar o conhecimento que adquirimos para levar pro nosso povo o que é bom, porque não podemos levar o uso de agrotóxico e o desmatamento, é isso que viemos contrapor. Se o homem branco puder aprender alguma coisa conosco, nesse sentido, tudo bem, se ele não aprender, devemos levar o que é bom”, explica.

E como exemplo do conhecimento útil a ser levado às terras indígenas, cita as tecnologias de plantio de sementes e técnicas no trabalho com pomar e hortaliças. As sugestões de quem se dedica a estudar o ingresso, a permanência e o êxito dos indígenas no ensino brasileiro, passam pelo melhor acompanhamento desses alunos e a necessidade de professores que falem a língua deles — manter o idioma é vital para a preservação da cultura e do conhecimento dos povos indígenas. A sugestão de Emiliano é que haja a contratação de mais professores indígenas e um sistema de cotas para docentes indígenas no ensino superior. “O êxito dos estudantes indígenas é muito complicado.”

A necessidade de políticas que mantenham os estudante indígenas no ensino superior é defendida por Leticia Cao Ponso, professora de Linguística no Instituto de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Ela acredita que a universidade brasileira tem passado por uma transformação grande nos últimos 30 anos, como consequência das políticas de ação afirmativa, principalmente a partir da Lei de Cotas, possibilitando uma configuração mais inclusiva e democrática. É preciso, agora, ir além.

“O ingresso dos povos tradicionais no ensino superior brasileiro mudou o nosso alunato. Hoje tem muito mais estudantes negros, pardos, indígenas e quilombolas, e isso é uma primeira revolução que aconteceu nos últimos anos”, explica Letícia.

Com esse quadro configurado, a professora da FURG aponta então a necessidade da segunda “revolução”: a permanência desses estudantes nos cursos. O desafio é grande. Leticia indica alguns caminhos, como a garantia de bolsas de estudo, assistência estudantil e a possibilidade de que esses alunos mantenham contato com as famílias nas aldeias ou comunidades. “Para uma mãe indígena na universidade, por exemplo, é muito difícil ficar longe dos filhos”, considera.

A integração nos cursos é outro aspecto a ser considerado para diminuir a evasão dos alunos indígenas. O ambiente ainda é marcado por muito racismo, preconceito e discriminação, tanto por parte dos colegas, como dos gestores e professores. “A universidade brasileira, até por seguir um modelo ocidental e eurocêntrico, é pouco preparada para absorver essas experiências que a vivência intercultural provoca”, analisa.

Trazendo a avaliação para a área da linguística, Leticia ressalta que, muitas vezes, os estudantes indígenas têm o português como segunda língua, o que deveria levar a universidade a ter política linguística e acompanhamento pedagógico que compreenda que esse português dos indígenas é diferente. A professora da FURG enfatiza que até mesmo a linguagem escrita deve ser ponderada, pois é sabido que, entre os povos indígenas, predomina a oralidade.

“A historicidade desses estudantes com a escrita é diferente da nossa, que vivemos no meio urbano. Há uma séria de questões que precisam ser contempladas para que a política de ações afirmativas tenha sucesso. Esse é o segundo momento para o qual temos que nos preocupar agora”, afirma a professora do Instituto de Letras e Artes da FURG, pensando um Brasil com mais Brunos e Darcis, e com o homem branco se libertando dos erros ainda cometidos.   


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