Entrevistas
|
17 de fevereiro de 2014
|
11:32

Memorial Ico Lisbôa ajudará a eliminar restolho da ditadura, diz Christine Rondon

Por
Sul 21
[email protected]
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Memorial Ico Lisbôa conta com apoio dos governos federal, estadual e municipal para ser criado | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira

Em junho de 2011, o Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça realizou um ato público para identificar o casarão localizado no número 600 da Rua Santo Antônio, em Porto Alegre, como um centro clandestino de tortura durante a ditadura militar (1964-1985). Conhecido como Dopinha, o local será transformado no Memorial Ico Lisbôa – em homenagem ao militante político Luiz Eurico Tejera Lisbôa, assassinado pelo regime.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Christine Rondon coordena do Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

A criação do memorial só será possível por causa da pressão do comitê, que elaborou um projeto e conseguiu o apoio dos governos municipal, estadual e federal. Recentemente, foi realizado um ato no local, com a presença do prefeito José Fortunati (PDT) e do governador Tarso Genro (PT). Na semana passada, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário (PT), visitou a casa.

Nesta entrevista ao Sul21, a coordenadora-geral do Comitê Carlos de Ré, Christine Rondon, fala sobre o projeto de transformação do Dopinha em um centro pela Memória, pela Verdade e pela Justiça – palavras que alimentam a luta de quem deseja uma redemocratização efetiva para o país. Para ela, a criação de um memorial sobre o tema é um passo a mais na direção da eliminação do que identifica como “restolho da ditadura” presente no funcionamento das instituições públicas e na cultura política brasileira.

”O que já temos de informação atualmente comprova que o Dopinha foi um lugar de tortura e morte”

Sul21 – Como surgiu a ideia de transformar aquele casarão em um centro de memória sobre a ditadura?
Christine Rondon –
A ideia principal era ressignificar espaços onde identificáfessmos que tivesse havido tortura e morte. Este foi o projeto de atividades de rua e carro-chefe do comitê em 2013. Identificamos a sede do Palácio da Polícia, que foi o antigo DOPS, e vários outros espaços. Tentávamos, na medida do possível, ressignificá-los. Na Penitenciária Madre Pelletier, fizemos oficinas e assembleias com as apenadas. Existem quatro celas que eram destinadas às presas políticas. Houve tortura lá. Então temos o projeto de ressignificação daquele espaço. É um projeto que elas construíram e está sendo tocado com a Secretaria Estadual de Políticas Públicas para as Mulheres, com a Ariane Leitão. O Dopinha foi um desses espaços, mas era mais especial, por que era um aparelho clandestino dentro da ditadura. Não era um aparelho oficial da repressão. O Dopinha foi identificado pelo comitê e chamava muito a nossa atenção, por que tinha uma placa de “vende-se” na frente. Era uma propriedade privada, não havia sido dada uma outra destinação pra ela. Ela foi alugada para várias pessoas ao longo desses anos. A própria família que é proprietária não chegou a ocupar aquela residência como moradia. Então surgiu a ideia – a exemplo do que a Argentina e outros países da América Latina fazem a respeito de políticas públicas de memória e direitos humanos – de ressignificar e tornar um espaço aberto para toda a sociedade.

Sul21 – Como foi o início da elaboração deste projeto de ressignificação?
Christine –
Existe uma resolução da Reunião de Altas Autoridades de Direitos Humanos do Mercosul (RAD) para se criar em Porto Alegre um espaço de memória da Operação Condor. Pensamos em oferecer o Dopinha como um espaço para construção deste memorial. Nós apresentamos esse projeto para a prefeitura de Porto Alegre e o governo do estado e fizemos várias reuniões com o Fortunati e a assessoria dele e com o governador Tarso Genro e sua assessoria. Desde o início eles foram plenamente favoráveis à ideia. Então modificamos a ideia inicial do projeto, para que não contemple apenas a Operação Condor, mas que seja um espaço de destaque para a memória das vítimas da resistência no Rio Grande do Sul e para resgate da nossa história também. Ampliamos o projeto e tentamos dar alguma objetividade com uma proposta para os poderes públicos. Pala proposta, a prefeitura arca com 50% e tem a iniciativa jurídica do processo, o governo do estado arca com os outros 50% do custo do imóvel – que está à venda -, e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República se compromete a arcar com os custos e buscar parcerias para implementar a reforma no que for preciso e as alterações estruturais para dar a destinação ao memorial.

”Era um espaço clandestino dentro da clandestinidade”

Sul21 – Isso já está acertado.
Christine –
Nossa preocupação imediata era garantir que os poderes públicos municipal e estadual tivessem uma definição, antes que a casa fosse vendida para alguém. Houve uma orientação do Fontelles, da Comissão Nacional da Verdade, pelo tombamento do prédio. Os proprietários tentaram vender e não conseguiram, por que o interesse dos então adquirentes era demolir, que seria mais lucrativo. E não conseguiram demolir por que o processo foi barrado na prefeitura – justamente em função do projeto de construção do memorial. Eles entraram com uma ação judicial, pediram numa liminar a autorização para fazer essa demolição e, na justificativa da juíza para indeferir este pedido, constava justamente o valor histórico do local, citando reportagens e dizendo o quanto já era público que dali sairia um projeto de construção de um espaço de memória.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Ampliamos nosso movimento para aproximar os proprietários” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Se não fosse o projeto de vocês, o prédio já teria sido demolido.
Christine –
Exatamente, já poderia ter ido abaixo já há alguns meses. A partir daí, ampliamos nosso movimento para aproximar os proprietários. Hoje, estamos em contato com o corretor e o advogado da família e com alguns dos irmãos que são proprietários do prédio – que não tem um único proprietário -, e todos apoiam o projeto. Os que estavam no Rio Grande do Sul foram no último ato que fizemos, com a Maria do Rosário, e já nos acompanharam numa reunião com o Fortunati para acertar de que forma isso vai se viabilizar.

Sul21 – Então eles já não querem mais vender para a iniciativa privada?
Christine –
Não. Eles estão apoiando o projeto. Claro que eles têm direitos, eles querem receber o valor da transação. Eles poderiam estar insistindo na via de querer tentar vender pra qualquer outra pessoa num negócio meramente lucrativo. Mas eles estão sabendo valorizar a importância histórica do projeto e, por isso, têm se feito presentes e nos auxiliado em documentação no que nos tem sido demandado pelo governo do estado e pela prefeitura para perfectibilizar o projeto.

”Não tem como falar em democracia sem falar em memória, sem falar em ressignificar estes espaços”

Sul21 – Quais informações vocês possuem a respeito do que ocorreu no Dopinha durante a ditadura?
Christine
– A Comissão Estadual da Verdade tem dado uma atenção especial para o caso do Manuel Raimundo Soares, um sargento que foi torturado no Dopinha durante muitas semanas e que foi encontrado morto no Rio Jacuí. Sua morte ficou conhecida como o “caso das mãos amarradas”, porque o corpo foi encontrado assim. Em Porto Alegre, temos o testemunho de uma pessoa que também foi torturada lá, alguns nomes de torturadores, e uma CPI (sobre o caso das mãos amarradas) que tem um hall de nomes de pessoas envolvidas. Além disso, tem um livro da Suzel Oliveira que trabalha com a memória de alguns lugares de Porto Alegre e que fez um estudo breve sobre o funcionamento do Dopinha durante aquele período. Ainda não temos um estudo focado unicamente nisso, mas fechamos uma parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, que irá nos ceder um pesquisador para juntar todas as informações das comissões nacional e estadual da verdade, os trabalhos que os familiares de mortos e desaparecidos já fizeram, entrevistar as pessoas dos prédios do entorno… O que já temos de informação atualmente comprova que o Dopinha foi um lugar de tortura e morte. Agora precisamos de um dossiê mais amplo para não ficar só nos casos que são conhecidos e para que possamos trazer um pouco mais da realidade do que foi e pra o que serviu aquele aparelho.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Talvez tenha sido o primeiro espaço clandestino onde houve tortura no país” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – De que ano a que ano ele funcionou?
Christine –
Com certeza em 1966 ele já funcionava. Talvez tenha sido o primeiro espaço clandestino onde houve tortura no país. Era um espaço clandestino dentro da clandestinidade. É bom lembrar que ainda não tinha o AI-5, que não era a época em que a tortura era tão massiva no país, e aqui já tinha este espaço de tortura.

Sul21 – É possível traçar um paralelo entre o Dopinha aqui e o que foi a Casa da Morte em Petrópolis, por exemplo?
Christine –
Estes são os dois grandes projetos que o Brasil tem hoje de ressignificação de espaços de memória. É muito mais público o que aconteceu na Casa da Morte. Existe uma sobrevivente, é algo que impressiona e arrepia a gente. Acreditamos que, sim, tem um paralelo muito forte. Isso indica que estamos seguindo o caminho certo da redemocratização. Não tem como falar em democracia sem falar em memória, sem falar em ressignificar estes espaços.

”Que o memorial passe a ser uma referência de intercâmbio cultural dos países, estados e municípios próximos”

Sul21 – Quais as ideias que vocês estão pensando para o uso do espaço do Dopinha? Se tem dito que não será um espaço somente museológico.
Christine –
A ideia, desde sempre, é que não seja uma coleção museológica de peças e documentos, mas um espaço de apropriação coletiva da memória e de sua ressignificação. A ideia é que ele fique permanentemente aberto para a população de Porto Alegre e de toda a América Latina. Que o memorial passe a ser uma referência de intercâmbio cultural dos países, estados e municípios próximos. E que tenham projetos de disputa de consciência lá, para que o que foi o golpe em 1964 e o que tem sido estes 50 anos de resistência fiquem presentes nas pessoas com a conclusão de que muita coisa ainda precisa ser superada. Nossas instituições precisam ser redemocratizadas. Lidamos, tanto nas nossas instituições oficiais quanto na nossa cultura política, com o restolho da ditadura, que não é pequeno. Que esse espaço sirva para fazer as transformações que a gente precisa no sentido de redemocratizar as instituições e para mudar nossa cultura política, para que a nossa democracia seja mais efetiva.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Nome do memorial homenageia o irmão do cantor Nei Lisboa | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Em São Paulo, o memorial localizado no antigo DEOPS reproduz exatamente os ambientes originais da prisão política. Vocês pretendem fazer o mesmo com o Dopinha?
Christine –
Nada está fechado, mas a ideia é que algumas coisas permaneçam exatamente como estão, como era o caso de um lugar onde eram depositadas as pessoas. Tem uma garagem, que é um túnel comprido, onde as pessoas chegavam de carro e eram jogadas em uma sala e ali eram torturadas. Queremos deixar todo este percurso com a mesma cimentação, com as mesmas teias de aranha, por que quando a gente chega lá, isso nos arrepia. É uma sala pequena, claustrofóbica, as pessoas podem entrar lá e isso é importante para o projeto.

Sul21 – Como tu vês o cenário do Brasil no que diz respeito a essa luta histórica por Memória, Verdade e Justiça?
Christine –
Existem muitos trabalhos concretos feitos pela comissão de familiares de mortos e desaparecidos políticos. Acervos e pesquisas que são, possivelmente, os trabalhos mais avançados que temos. Não sei até que ponto a Comissão Nacional da Verdade vai avançar, mas certamente partiu de uma base muito sólida, que foi feita por militantes, por pessoas que voluntariamente fizeram essa pesquisa, na busca por Justiça, pelo direito de enterrar os seus mortos e desaparecidos, indo atrás de ossadas, descobrindo valas-comuns e, até hoje, lutando pela identificação destes corpos. Atualmente, existe, no Brasil inteiro, comitês de Memória, Verdade e Justiça organizados. Eles nasceram antes da Comissão Nacional da Verdade. A pauta de quase todos é justamente a luta por se ter uma comissão da memória, da verdade e da justiça. Por uma questão conjuntural, a comissão acabou saindo só da verdade, mas os comitês também não vão se extinguir por causa disso, continuam lutando por Justiça. Estes comitês se reúnem nacionalmente na Rede Brasil MVJ – Memória Verdade e Justiça.

”Temos poucos mecanismos de memória, e sem memória a gente não se consegue romper essa inércia social”

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Comitê Carlos de Ré realizou ato no Dopinha, com a presença do governador Tarso Genro e do prefeito José Fortunati | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 Se fala muito que o Brasil avança muito mais lentamente do que os países da América do Sul em termos de Memória, Verdade e Justiça. Tu concordas com essa afirmação?
Christine –
Temos que analisar o contexto dos golpes, o contexto das ditaduras e das redemocratizações em todos os países para compreender este processo. Também se diz que na Argentina o regime foi muito mais violento. Mas algumas ideias desconstroem outras. Como vamos medir o nível de violência de um regime? Não é pela pilha de corpos. Eu acho realmente que no Brasil o processo é mais lento. Temos que analisar que, no Brasil, desde o início, o golpe não se apresentou tão impactante como na Argentina e no Chile. O golpe, aqui, se apresentou como uma medida transitória, necessária e democrática. Até hoje temos uma Lei de Anistia que impede o julgamento das pessoas que cometeram crime de lesa-humanidade em nome deste Estado. Temos poucos mecanismos de memória, e sem memória a gente não se consegue romper essa inércia social. É muito importante a reinterpretação da Lei de Anistia para que possamos começar a rediscutir o que foi a ditadura e desarticular estes grupos que até hoje lançam cartas de ameaça ao Brasil, como o Clube Militar, no Rio de Janeiro. Esses grupos continuam articulados ideologicamente, semeando a ideia de que a ditadura não foi algo ruim.

Sul21 – Nossa redemocratização foi mais pactuada com os governantes da ditadura do que a dos países vizinhos?
Christine –
A luta pela anistia aqui no Brasil foi muito corajosa. Não podemos confundir a bandeira pela reinterpretação da Lei de Anistia como algo que não valorize a luta pela anistia. Ela foi vitoriosa na medida do que era possível na época. Temos que nos colocar no lugar daquelas pessoas e pensar no que era possível fazer naquele momento. A Lei de Anistia não foi a resposta 100% integral aos anseios de uma anistia ampla, geral e irrestrita. Mas ela foi, dentro do seu contexto, vitoriosa. Essa interpretação que a torna bilateral, que a torna uma anistia da impunidade, é que é um problema. É isso que o STF tem que rever, é isso que os grupos sociais, os movimentos, têm que se organizar para lutar. Muitos ministros do STF já sinalizaram que estão dispostos a sustentar essa necessidade de reinterpretação e que, a partir daí, a gente possa fazer Justiça e trazer um pouco mais da verdade à tona para o país.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Corredor por onde passavam os prisioneiros políticos ainda preserva aspecto sombrio e insalubre | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Mas esse aspecto da Justiça tem avançado no país?
Christine –
Não podemos falar em Justiça sem falar em Memória e Verdade. Neste sentido, a Comissão Nacional da Verdade, com certeza, é um passo importante para a disputa dessa consciência. Para que as pessoas, com a narrativa dos fatos e os nomes dos responsáveis, possam compreender o que aconteceu e se indignar. Talvez esse seja o passo que falte para que a luta por Justiça seja um pouco mais popularizada e com caráter totalmente desvinculado do famoso revanchismo. Justiça e revanchismo são coisas que não se comunicam. O que falta para as pessoas compreenderem a diferença entre a busca por Justiça e um revanchismo é justamente a busca pela verdade sobre o que aconteceu nesse período.

Sul21 – O governo federal fala em Memória e em Verdade, mas jamais fala em Justiça.
Christine –
É muito polêmico.

Sul21 – Tu achas que o governo poderia impulsionar, pelo menos, um debate sobre isso?
Christine –
Nunca assumi um cargo público. Sei que existe uma correlação de forças que é complexa. Não sei até que largura poderiam ser dados os passos. O que tenho certeza, e que acho que, como movimento, é o que nos interessa, é que a gente precisa puxar essa pauta e exigir. Não esperar que o governo faça alguma coisa. Exigir que ele faça. Independentemente de ser a vontade dele ou não. Ainda que seja a vontade dele, ele vai precisar de respaldo social para ter vitória nesta pauta. Não vamos conseguir nada se não nos articularmos.

“Que essa anistia não sirva como um pretexto para cobrir de impunidade todas as pessoas que cometeram crime de violação de direitos humanos em nome desse Estado repressor”

Sul21 – O papel dos movimentos sociais foi fundamental também nos outros países.
Christine –
A pauta era pulsante na sociedade. Assim se avança. Aqui, temos que tornar essa pauta pulsante. Teremos agora a descomemoração dos 50 anos do golpe. Estamos criando um grande fórum da democracia, que é um fórum que vai ter uma semana auge de descomemoração do golpe do dia 24 de março ao 31, que fique do dia 31 até a 1h da manhã do dia 1 de abril, quando foi deflagrado o golpe civil militar. Teremos uma campanha permanente durante todo o período do fórum com abaixo assinado pela reinterpretação da Lei da Anistia. Temos que fazer isso em todos os estados. Já temos 55 entidades participando deste fórum. Todas as entidades vão propor suas atividades, que serão autônomas e autogestionadas. Aproveitaremos esse momento em que os movimentos estão reunidos para ter uma campanha unificada sobre a importância de a gente reinterpretar a lei de anistia, valorizando a luta que foi feita por sua aprovação – isso tem que ficar muito claro -, mas pedindo que essa anistia não sirva como um pretexto para cobrir de impunidade todas as pessoas que cometeram crime de violação de direitos humanos em nome desse Estado repressor.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Casarão terá diversas utilidades em seus espaços | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Tu falaste em ditadura civil militar. Tu acreditas que essa questão do envolvimento de empresas e grupos privados no financiamento da repressão está sendo bastante debatida?
Christine –
Um dos eixos do nosso fórum vai ser justamente mostrar, de um lado, a cooperação internacional – de que maneira o poder econômico e o poder político internacional interferiram não só no golpe aqui, mas na operação Condor -, e mostrar a falácia com os discursos dentro da ditadura, daí o papel do poder Judiciário e principalmente a mentira do milagre econômico. Vamos mexer no vespeiro dos grandes empresários, de quem financiava, quais eram os interesses financiados. Claro que isso não é algo tão popularizado quanto gostaríamos, mas está cada vez mais presente na pauta dos movimentos que estão debatendo Memória, Verdade e Justiça.

Sul21 – Com surgiu o Comitê pela Memória, Verdade e Justiça Carlos de Ré?
Christine –
O comitê nasceu em 2012. Ele foi lançado num grande ato aberto no Dante Barone, com a presença de centenas de pessoas. No início, reunia pessoas interessadas no debate em geral. Depois começou a pensar em ações concretas e ir para a rua. Somos um comitê popular e de rua. Estamos constantemente pensando em atividades de mobilização. Temos, por exemplo, o trabalho de ir nas ruas que homenageiam protagonistas da luta pela resistência e aí vamos lá panfletear, conversamos com as pessoas que moram na rua. Tem atividade da luta da ressignificação dos espaços e a desmonumentalização: pegar monumento ao Castelo Branco e falar com os nossos vereadores e pedir a retirada ou a colocação de uma placa explicativa de que ele foi um ditador. Uma causa que ajudamos a construir é a troca do nome da avenida Castelo Branco para Avenida da Legalidade. Temos alguns projetos de tentar construir referências na nossa cidade, da construção de uma outra memória coletiva, que seja de resgate do passado. E temos, por outro lado, um grupo de direitos humanos que faz visitas em escolas de ensino médio e universidades com a oficina de Justiça de Transição.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Prefeitura e governo do estado irão viabilizar os recursos para compra do prédio | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Além disso, temos atividades culturais, com saraus. Juntamos artistas, poetas, poesias de alguns poetas falecidos ou ligados à luta pela resistência ou à temática. E a gente faz saraus que são muito bonitos e leves. São espaços onde conseguimos trazer um público muito diversificado. Pessoas que viveram o período e não gostam muito de falar por questões pessoais ou de trauma, mas se sentem a vontade para falar aquilo lendo uma poesia. E muita juventude, pessoas que conseguem se comunicar de uma maneira melhor pelas manifestações culturais. Por último, a gente vê como mais importante os atos de rua. Toda identificação que fizemos fazemos um ato de rua.

Vamos ter um fórum nacional que vai partir de Brasília e vamos ter os fóruns no Brasil inteiro. Vamos ter possivelmente um palco de lutas que esperamos que nos lembre e coloque tanta juventude na rua quanto a gente viu se manifestando por questões como segurança e educação. Pretendemos que fique claro que essas questões estão intrinsecamente ligadas a nossa luta pela redemocratização. Também temos essas bandeiras. Que nestes 50 anos a gente saia com essas bandeiras nas ruas e que a gente compreenda que isso se vincula diretamente com todo o restolho que precisamos superar. A questão da democratização das políticas, do Poder Judiciário, que mantém os privilégios que foram impostos por eles a eles na época da repressão. Muitas das nossas estruturas democráticas ainda são permeadas, não só na estrutura, mas na cultura política, por uma herança que é direta da ditadura.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora