Educação
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12 de junho de 2024
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09:17

Volta às aulas no Sarandi: ‘O desafio é garantir a permanência da escola na comunidade’

Por
Luciano Velleda
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Depois de um mês submersa, a enchente revelou o primeiro andar da EMEF João Goulart completamente destruído. Foto: Divulgação
Depois de um mês submersa, a enchente revelou o primeiro andar da EMEF João Goulart completamente destruído. Foto: Divulgação

Manoel José Ávila da Silva recebeu a notícia, na última sexta-feira (7), de que a água havia baixado na Escola Municipal de Ensino Fundamental Presidente João Goulart, localizada no bairro Sarandi, um dos mais afetados pela histórica enchente de maio em Porto Alegre. No dia seguinte, ao entrar na escola depois de um mês, o cenário constatado foi de muito barro e destruição. Todo o primeiro andar foi atingido. Mas podia ter sido pior. O nível da água, como por capricho, subiu até o último degrau da escada que leva ao segundo andar e dali não passou. 

“É como se fossem duas escolas. Tem a escola do primeiro andar, que é a da inundação, tudo revirado, quase nada se aproveita. Já o segundo andar tem o efeito da umidade e a formação de mofo em partes do teto, mas a gente pensa que uma boa varrida e estamos prontos para funcionar”, relata Ávila, diretor da escola, comemorando que equipamentos no segundo andar também estão preservados, assim como o telhado.

O cenário desolador do primeiro andar da escola se repete nas casas da vizinhança. A destruição é profunda, além do grande volume de lixo. Ainda assim, o sentimento de alívio emergiu ao constatar que a situação poderia ser ainda pior. Nesta terça-feira (11) houve a primeira vistoria da Secretaria Municipal de Educação (Smed) e da empresa contratada para fazer a limpeza pesada da escola. Depois de todo o sofrimento vivido ao longo do mês de maio, a etapa da reconstrução para o retorno às aulas finalmente vai começar.    

Ávila recorda que, até poucos dias atrás, a água na escola ainda estava na altura da cintura. Ele conta que mesmo durante a inundação, famílias de alunos já perguntavam quando a escola reabriria ou se tinha como fazer atividades em casa – uma lembrança dos duros tempos da pandemia do novo coronavírus.

Professor de história, ele assumiu temporariamente a direção da EMEF Presidente João Goulart em abril de 2021 e foi eleito em novembro do mesmo ano, com mandato até 2025. Atravessou todo o período conturbado da pandemia e relata que muitas crianças que viveram a reclusão e tiveram o início da escolarização em casa, quando voltaram à escola sentiram dificuldades de aprendizagem e de relacionamento. “A ideia de conviver numa sala de aula com outras crianças, junto com a questão pedagógica, foi também um aprendizado”, destaca.

O pátio da escola é um cenário de terra arrasada. Foto: Divulgação

Os adolescentes também tiveram suas demandas e a escola, naquele momento, foi instigada a adaptar o currículo. Aos poucos, a defasagem foi sendo superada e estava muito perto de ser completamente vencida quando então veio a enchente. “A equipe da EMEF João Goulart, o corpo de professores e funcionários, conseguiu um ambiente muito legal, propício para a recomposição, com boas ideias, sem pressão, com tranquilidade para recuperar a defasagem. E vinha dando certo”, afirma.

A preocupação agora é como recuperar o tempo perdido durante a enchente. Numa perspectiva otimista, Ávila comenta que a pausa foi curta em relação à crise do novo coronavírus, por outro lado, a comunidade do bairro foi diretamente afetada. “Quem já vivia em situação de vulnerabilidade, a enchente potencializou essa vulnerabilidade.”

A EMEF Presidente João Goulart tem hoje 673 alunos. Quando a pandemia começou, tinha 512, ou seja, ganhou mais de 150 estudantes. Para ele, tal acréscimo indica o bom vínculo com a comunidade e a construção de um ambiente bacana de aprendizagem. Do total, cerca de 100 alunos são venezuelanos, inseridos desde a educação infantil até o nono ano, com bons resultados na recomposição curricular, apesar de não estudarem na língua materna.

“Nossa expectativa agora é ver em que pé a gente retoma o vínculo com eles”, reconhece o diretor, que projeta reabrir a escola com cerca de 200 alunos a menos.

Praticamente intacto, o segundo andar parece “outra escola”, diz o diretor. Foto: Divulgação

A primeira reunião presencial da direção da EMEF João Goulart com a coordenação pedagógica da Secretaria Municipal de Educação (Smed) ocorreu há cerca de 10 dias. Semana passada, foi a primeira reunião presencial da direção da escola com os professores e funcionários. Tudo é muito recente. Durante a enchente, mesmo com a escola inundada e inacessível, a instituição atuou no recebimento de doações em outro endereço e na entrega desse material aos desabrigados, sempre procurando manter o vínculo com a comunidade escolar e saber quem estava em qual abrigo. 

Em meio a tanta emergência material das famílias dos alunos, o aspecto pedagógico é um grande desafio no retorno às aulas. Ávila acredita que a escola perderá muitos alunos nesse recomeço, pois famílias vão desistir de morar no Sarandi. Ao contrário da pandemia, em que havia a crise sanitária, mas os “tijolos estavam no lugar”. O diretor, entretanto, vê o quadro desafiador também como uma oportunidade.

“A gente tem uma espécie de terra arrasada, tanto no ponto de vista físico da escola, como no ponto de vista de recomposição curricular. É o momento de buscar pedagogias que nos amparem para essa discussão”, projeta. 

Um dos caminhos é a Pedagogia de Emergência, elaborada para trabalhar com traumas e ligada à Pedagogia Waldorf. A proposta passa por trabalhar com as questões emocionais como caminho para acionar outras inteligências e habilidades. A Pedagogia de Emergência trata das características, tipos e fases do trauma, além das reações e distúrbios que podem surgir sem uma intervenção adequada num momento de crise aguda. 

Outra perspectiva citada por Ávila se relaciona com as relações étnico-raciais, ao entender que as pessoas mais atingidas são periféricas, pretas e pobres. Ele acredita que o momento é ideal para trabalhar com o reconhecimento e a consciência de pertencimento. “Não para ficar remoendo o sofrimento, mas para ter como referência e, inclusive, ter um bom programa de educação ambiental, que é outro aspecto pedagógico que precisa ser acentuado”, afirma.

Pertencimento étnico-racial, questões emocionais e ambientais formam a tríade que o diretor da EMEF Presidente João Goulart acredita ser o melhor caminho para lidar com os alunos na volta às aulas após a maior tragédia climática de Porto Alegre.

O diretor avalia que a escola tem bom recurso financeiro, embora com a estrutura física deteriorada pelo tempo, mas ainda assim razoável. Agora com os estragos provocados pela inundação, é a oportunidade de fazer uma escola nova e melhor, tanto materialmente quanto pedagogicamente.

“É o momento da gente retomar a questão dos conteúdos, dos conhecimentos, mas também pensar outro modelo que não desfaça o que está feito, mas que acrescente uma leitura menos colonizada da educação”, defende Ávila.

Volta às aulas é um grande desafio e também pode ser a oportunidade para uma escola nova e melhor. Foto: Divulgação

A Escola Municipal João Carlos D’avila Paixão Côrtes, localizada no Jardim Ipiranga, pode ser o destino do retorno às aulas dos alunos da EMEF Presidente João Goulart enquanto ela estiver fechada para o serviço de recuperação – que, por sua vez, deve durar longos meses. 

Nova, inicialmente pensada para ser uma escola cívico-militar (ideia arquivada no momento), no terreno que foi sede da Escola Estadual Dr. João Batista de Lacerda, o local conta com 12 salas de aula, laboratório de ciências, sala de inovação e biblioteca. Antes da enchente, a escola atendia em torno de 120 alunos de jardim A e B e do 1º ao 3º anos do Ensino Fundamental. Agora, pode ser o destino para acolher os alunos da EMEF João Goulart num prédio que pertencia ao governo estadual e passou para o município.

O problema, pondera o diretor, é a distância da comunidade. Para driblar o empecilho, está sendo esboçada a ideia de criar um transporte gratuito de ônibus e readequar a quantidade de turmas conforme o número de crianças que se apresentarão para voltar às aulas. 

O diretor da EMEF Presidente João Goulart, Manoel José Ávila da Silva. Foto: Divulgação

 Três anos depois de assumir o cargo de diretor da escola no momento mais grave da pandemia, o professor se vê novamente diante de um momento de dor e tristeza, acrescido de muita destruição material. Durante a enchente, perdeu o sono e foi tomado por um sentimento de perda e luto. O desafio do retorno às aulas tem sido discutido com os colegas de direção em busca do consenso dos melhores rumos a seguir – um caminho influenciado pela formação na Teoria da Ação Comunicativa, do filósofo alemão Jürgen Habermas.

 “A gente saiu da pandemia dialogando muito entre nós e com as famílias, tendo enfrentamentos com desejos das famílias, com questões de conteúdo e com a Secretaria de Educação. Agora parece que a proposta de buscar soluções dialogadas vai de novo ser muito acionada”, acredita. 

A perspectiva de construir caminhos de consenso por meio do diálogo não lhe deixa iludir. Ele sabe que será “atropelado” como instituição escolar em certos momentos. Algumas famílias de alunos devem ser alocadas nas “cidades provisórias” a serem construídas pela Prefeitura e pelo governo do Estado, o que deve causar transtornos de logística para as crianças voltarem à escola. A possibilidade das aulas regressarem numa “escola de campanha” e não na Escola Paixão Côrtes também está no horizonte. 

“O que me movimenta hoje, acima de tudo, é garantir a existência da escola. Os desafios são garantir a permanência da escola na comunidade e a coesão do coletivo de professores, funcionários e servidores que formamos para que a gente continue se vendo como uma escola, fortalecida e capaz de dar conta do desafio que é atender a comunidade da Vila Elizabeth. E voltar para aquele lugar, garantir a nossa permanência”, afirma o professor de história, com quase 40 anos de magistério e que, conta, nunca pensou em ser diretor de escola.

EMEF Presidente João Goulart. Foto: Divulgação
EMEF Presidente João Goulart. Foto: Divulgação
EMEF Presidente João Goulart. Foto: Divulgação
EMEF Presidente João Goulart. Foto: Divulgação

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