Cultura
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25 de maio de 2022
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19:15

Prefeitura coloca em lista para ser vendido antigo imóvel ocupado pela Cia de Arte

Por
Luís Gomes
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Edifício de nove andares do número 1.780 da Rua dos Andradas, no Centro Histórico, que até 2021 era administrado pela Companhia de Arte. Foto: Luiza Castro/Sul21
Edifício de nove andares do número 1.780 da Rua dos Andradas, no Centro Histórico, que até 2021 era administrado pela Companhia de Arte. Foto: Luiza Castro/Sul21

Foi aprovado no último dia 16 de maio pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre, o Projeto de Lei Complementar 02/2022, que autoriza a Prefeitura a alienar 92 imóveis de propriedade do município, seja por venda, permuta, cessão ou parceria. Entre os imóveis, está o edifício de nove andares do número 1.780 da Rua dos Andradas, no Centro Histórico, que até 2021 era administrado pela Companhia de Arte.

Originalmente pertencente à Caixa Econômica, o prédio passou a funcionar como centro cultural em 1997 e, após mobilização da comunidade artística, foi comprado pela Prefeitura no final dos anos 1990. O local passou a sediar entidades de diversos segmentos do setor cultural e suas salas se tornaram um espaço de acesso para ensaios e montagem de espetáculos teatrais, de dança e de música. Em 2004, a Prefeitura firmou um Termo de Cessão de Uso com a Associação do Centro Cultural Cia de Arte, que passou a ocupar oficialmente o edifício.

Agora ex-presidente da Cia de Arte, o ator e produtor cultural Fábio Cunha diz que o espaço sempre foi muito vibrante e importante para a cidade do ponto de vista cultural, mas que encontrava há anos dificuldade para sustentação financeira. Pelo termo de cessão de uso, a Prefeitura cedia o espaço e pagava a luz, mas a manutenção era de responsabilidade da associação.

Fábio conta que assumiu a presidência da entidade em dezembro de 2019, com o objetivo justamente de tentar reorganizar o espaço e resgatar uma relação com a Prefeitura. Contudo, em março de 2020 veio a pandemia, o que dificultou a ideia do resgate do prédio, que acabou fechado. Sem sucesso nas negociações com a Prefeitura para manutenção do uso, a Cia de Arte acabou entregando formalmente as chaves do imóvel ao poder público em fevereiro de 2021.

“Oitenta por cento da produção cultural de Porto Alegre passava por ali, desde bandas, escolas de música, pessoal da dança, pessoal de Yoga, enfim, muitas pessoas iam ali para ensaiar, montar um espetáculo, montar um show”, diz Fábio.

Em nota encaminhada ao Sul21, a Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (Smap) diz que o prédio está atualmente desocupado após ter sido retomado judicialmente em razão de “ter sido desvirtuada a finalidade do termo de permissão de uso, que era não oneroso e impedia a utilização do bem próprio do município para fins comerciais”.

Foto: Luiza Castro/Sul21

“O imóvel foi recebido da Cia de Arte em alto estágio de depreciação, com os elevadores estragados, problemas de vazamentos e infiltrações, ambos fatores que danificaram a estrutura, com infestação interna de pombos e proliferação de zoonoses, entre outros problemas”, diz a nota.

A Smap destaca ainda que a matrícula do imóvel foi regularizada e ele está apto para alienação, uma vez que não é considerado como apto para uso pela Administração Pública em razão do “custo elevado para recuperação e reforma”.

Segundo Fábio, um dos fatores que levou a Prefeitura a considerar que o espaço estava sendo usado irregularmente foi a exploração comercial de algumas salas. Por exemplo, por uma cafeteria. “Não poderia ter uma cafeteria, mas nós tínhamos lá na Cia de Arte um restaurante, que era o que mantinha financeiramente. Agora, com o novo marco regulatório, poderia se regularizar essas relações do uso do espaço”, diz.

Ele reconhece que ocorreram irregularidades em relação ao que era autorizado no Termo de Cessão de Uso, mas avalia a Prefeitura não teve o interesse em formar parceiras com as entidades que estavam no local para regularizar a situação, pois o foco da gestão estaria nos grandes grupos do setor. “O que eles fizeram no Araújo Viana? Passaram para produtora, que resgata o prédio, que recebe uma verba do município, uma estrutura. Ela pode comercializar lá dentro bebida, pode comercializar alimentos. Lá, para uma entidade como a Opus e o Opinião, se tem uma compreensão e uma flexibilização para repassar. Agora, por outro lado, para o produtor cultural, o trabalhador, a pequena produtora que não vai ter o espaço próprio, me parece que há resistência de compreensão desse governo. O lado empresarial, o lado do grande, eles até dão um jeito”, diz.

Fábio ainda pontua que a venda do prédio da Cia de Arte está inserida num processo que vem de anos de fechamentos de espaços culturais da cidade, que antes eram disponíveis para a comunidade artística. “A gente perdeu a Usina do Gasômetro, está perdendo a Cia de Arte, o Fumproarte agora, depois de quase cinco anos sem editais, tem editais com verbas pequenas. A companhia está inserida num contexto. Lá tinha sala específica para dança, outra para música, tinha um teatro com acesso facilitado. Hoje, para tu pegar um teatro como o São Pedro, a diária é R$ 3 mil ou R$ 4 mil”, diz.

Uma das salas do terceiro andar do prédio era ocupada pela ONG Cirandar, que mantém uma rede de bibliotecas comunitárias em Porto Alegre. No prédio da Cia de Arte, funcionava uma biblioteca com 2,5 mil livros, além de uma programação cultural destinada à promoção da leitura e para a formação de educadores.

“O Cirandar foi um dos últimos grupos a se manter no prédio. Nós tivemos diversas reuniões com a Secretaria de Cultura, o secretário Gunter Axt demonstrou interesse em buscar parceria para reativar o prédio. Nós chegamos a apresentar um termo de permissão de uso para permanecer no 3º andar, mas infelizmente o prédio foi interditado pela Secretaria do Patrimônio e nós fomos impedidos de entrar, não podíamos entrar nem para pegar documentos”, diz Márcia Cavalcante, coordenadora de desenvolvimento institucional da Ciranda.

A Secretaria de Cultura foi procurada pela reportagem, mas informou que o assunto estava sendo tratado pela Smap.

Foto: Luiza Castro/Sul21

Márcia avalia que a Cia de Arte foi uma das principais experiências de autogestão cultural brasileiras. “Eu conversei com muitos artistas e produtores culturais de outros lugares que reconheciam e vinham fazer intercâmbios na Cia de Arte no auge da sua efervescência. E, para mim, esse auge da efervescência era justamente quando a gente conseguia ter um diálogo forte entre o poder público e os artistas”, diz. “Infelizmente, no último período a gente não tinha isso”, complementa.

Ela destaca que, nos últimos anos, em função da redução dos editais de incentivo à cultura no Brasil, se foi percebendo a redução das atividades no prédio, o que inclui a redução do apoio de parte da Prefeitura, com redução de ensaios e de cursos oferecidos. Isso também acabou contribuindo, segundo ela, para a que a Cia de Arte passasse a enfrentar cada vez mais dificuldades administrativas e, como consequência, dificuldades para a manutenção do prédio, resultando, por fim, na interdição do prédio.

“Acho que a grande questão da Cia de Arte é que lá atrás, quando o prédio foi comprado, ele foi concebido com a ideia de que os artistas fizessem a autogestão desse espaço, mas em nenhum momento essa autogestão deveria ser distante do poder público. Eu acredito muito num trabalho que seja de parceria, em que os artistas podem ter autonomia e liberdade criativa para fazer o seu processo de autogestão, mas com um suporte do poder público que possa garantir estrutura básica para que aquele espaço pudesse se tornar uma referência, como foi no início.”


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