Cultura
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4 de dezembro de 2021
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19:38

Da Restinga à Cidade Baixa, educador busca a transformação social por meio da arte

Por
Luciano Velleda
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"O conhecimento é algo que nunca ninguém vai poder te tirar”, diz Foguinho, autor da exposição 'Personalidades' na sede do Armazém do Campo, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Lucas Name é um homem de bem com a vida. Tem trabalho, saúde, se alimenta bem e pode acolher pessoas, incluindo as duas filhas, de 12 e 13 anos de idade. Depois de ter passado muita dificuldade, hoje afirma não poder reclamar de nada. “Sou muito grato. Tenho histórias muito tristes, que nem gosto de lembrar, e outras que adoro lembrar e pensar: ‘Sério que isso aconteceu comigo?’. Sou muito feliz”, diz o educador social, conhecido como Foguinho RC.

A idade da filha mais nova é a mesma que ele tinha quando perdeu a mãe. A figura materna é central no desenvolvimento e na vida desse artista de 34 anos, dedicado em usar diferentes formas de expressão como ferramenta educacional, como faz há três anos no Centro Social Aparecida das Águas, localizado na Ilha dos Marinheiros. Educador na área da dança, Foguinho trabalha com 180 crianças na entidade pertencente a Rede Marista.

“Meu crachá diz educador social, e não professor de dança. A ferramenta que uso é a dança, mas tem criança que não gosta de dançar, então a ferramenta que uso é o desenho. Tem criança que não gosta nem de dançar e nem de desenhar, aí a ferramenta que uso é o malabarismo…então tem todas as vertentes pra poder atrair a atenção do educando e passar uma mensagem positiva”, explica.

Essa multiplicidade é característica do artista, que também atua como grafiteiro, ilustrador de telas decorativas e roupas personalizadas. Sua trajetória inclui uma temporada em Londres, onde trabalhou na Portobello Art com customização de peças de vestuário.

O apelido que o acompanha há mais de 20 anos e assina os quadros que estiveram na exposição “Personalidades”, no Armazém do Campo, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, surgiu após a morte da mãe. Lucas começou a pintar o cabelo, atitude na época interpretada como involuntária, mas que hoje ele analisa como um gesto de rebeldia e carência pela perda. As lições aprendidas com a mãe o acompanham pela vida, como o estímulo pelo aprimoramento constante.

“Minha mãe sempre me dizia que a gente tem que buscar conhecimento, saber das coisas. O conhecimento é algo que nunca ninguém vai poder te tirar”, enfatiza.

Foguinho foi morar na Restinga, com a irmã mais velha, após a morte da mãe. Perto de casa havia uma escola municipal e, um pouco mais longe, outra estadual. Optou pela segunda. Pensou que seria melhor ter menos facilidade, com receio de assim se acomodar e não se dedicar aos estudos.

Na escola acabou conhecendo, durante uma oficina de hip hop, Júlio Cesar Oliveira, o Julinho RC, com quem viria a formar o grupo Restinga Crew. Foguinho conta que Julinho já era solto na dança, enquanto ele só observava, atentamente. Certo dia, houve uma apresentação e os outros companheiros de Julinho não apareceram. Ele então não teve dúvida, se encheu de coragem e se candidatou.

“Eu sei fazer essas coreografias que vocês fazem, vejo todos os dias vocês fazerem”, anunciou para o colega. Brotava ali a semente da parceria entre ambos para o nascimento do Restinga Crew.

A conexão com a arte, a começar pela dança, veio também da mãe, que desfilava em escolas de samba. Com a pintura não foi diferente. Foguinho conta que sempre gostou de desenhar e o primeiro contato veio por meio da reescrita de poemas lidos pela irmã. Criança, ainda sem saber ler e escrever, “desenhava” as letras da poesia para mostrar à mãe.

“Toda minha paixão por arte, por expressão, vem dela”, reconhece, com certa dose de orgulho.

“É um sentimento doido saber que o seu trabalho está sendo visto e admirado por outras pessoas”, avalia Foguinho. Foto: Luiza Castro/Sul21

Criado em 2002 como um grupo de dança, quase 20 anos depois os integrantes se veem como algo maior, pois todos os seis membros fixos são, de alguma forma, educadores sociais. O nome surgiu como forma de homenagear o bairro, uma comunidade estigmatizada da periferia da Capital. “A gente queria mudar isso e mostrar que tem muita coisa legal”, explica Foguinho.

A união entre as duas formas de manifestação artística no grupo, dança e desenho, é mais recente. O parceiro Julinho, por exemplo, também autor de quadros da exposição “Personalidades”, começou a pintar não faz muito tempo.

“Desenhar não é difícil, agora…fazer uma coisa que as pessoas olham e dizem: ‘Quero isso pra mim’, aí tem que colocar muito mais do que só desenho, tem que pôr expressão e amor”, acredita Foguinho.

A busca pelo retrato realista sempre foi um desejo latente. Uma das telas que mais chamou atenção na exposição foi um retrato em preto e branco da cantora Elis Regina. “Sempre me dediquei muito pra isso e, depois de um tempo, comecei a ter resultados mais próximos do que eu gostava”, avalia. “Comecei a explorar cada vez mais. Acredito na evolução, a gente não pode entrar em zona de conforto.”

Para pintar, prefere usar pincel, lápis e grafite. Os quadros da exposição foram feitos com tinta acrílica e a estrutura das telas, armação e tecidos, também foram construídas pelos dois artistas.

Durante muitos anos, o Restinga Crew dançou e treinou nos espaços disponíveis no bairro, como nas escolas, montando oficinas abertas ao público. Com o tempo, porém, alguns conflitos foram surgindo, envolvendo questões de horário e atividades paralelas no mesmo espaço. Houve desgaste na relação com os espaços parceiros e os membros do grupo começaram a almejar uma sede própria.

Com os mais variados apoios, o desejo se tornou realidade. Agora, o Restinga Crew está finalizando a sede, onde pretende oferecer atividades diversas. “O espaço vai ter de tudo, um pouco. Pretende ser o mais cultural possível”, explica Foguinho, feliz por vislumbrar uma nova etapa para o grupo.

Além da dança e do hip hop, está no horizonte agregar oficinas de tango, flamenco, capoeira, circo, poesia, entre outras atividades, sem custo para os usuários. A proposta é buscar recursos para remunerar os educadores sociais, sem precisar cobrar dos alunos.

“O espaço não vai ser apenas de hip hop. Tivemos o apoio de muitas pessoas, que nos motivaram a não desistir. É uma trajetória sempre difícil. É desgastante, mas muito positivo ver pronto”, afirma. Atualmente, o grupo tem sete membros fixos, número que varia conforme a participação de colaboradores esporádicos.

“Assim que a gente conseguir deixar o espaço 100%, o fluxo de gente vai ser grande”, projeta. “Nossos treinos são abertos à comunidade, qualquer pessoa pode participar. E qualquer pessoa que está lá é um educando, porque ao mesmo tempo em que se ensina também se aprende. E a dança de rua é muito rica, ninguém nunca vai saber tudo, ela automaticamente vira uma troca”, explica, destacando que os educandos mais novos logo entendem essa dinâmica.

Pintadas com tinta acrílica, todas as obras tiveram as molduras e telas feita pelos próprios artistas. Foto: Luiza Castro/Sul21

Foguinho avalia que o projeto tem impacto positivo não só na comunidade da Restinga, mas também em outros lugares da cidade em que o grupo já atuou, o que inclui a Ilha dos Marinheiros, onde ele trabalha no centro social da Rede Marista.

O artista e educador social comenta que ser da comunidade, ter passado dificuldades e hoje, de certa forma, estar bem, possibilita passar ensinamentos positivos para crianças e adolescentes. Ele conta que os próprios pais começaram a ver a cultura hip hop com outros olhos. Uns que antes não queriam nem que o filho cumprimentasse os integrantes do grupo, hoje dizem que querem ver filho ser um deles. Observar outras educadores sociais se formando e pessoas criando novos grupos a partir de oficinas feitas no Restinga Crew, é igualmente motivo de satisfação.

“Isso é a coisa mais legal e acontece frequentemente, a gente forma pessoas que seguem o nosso mesmo caminho. Mas também encontro pessoas que foram meus educandos, que seguiram suas vidas de maneira diferente, mas contam que exercem coisas que aprenderam comigo. É a coisa mais legal, não tem palavra pra explicar. Pessoas que estão bem, com caráter, dignidade, com respeito pelas outras pessoas. Isso é educação social”, destaca.

A exposição no Armazém do Campo, ele reconhece, significou bastante. Foguinho analisa que sempre teve baixa auto-estima, achando que certas produções suas nunca estavam boas o suficiente para serem exibidas.

“Foi muito emocionante pra mim. Saia do meu trabalho e vinha pra exposição, ficava sentado olhando, sem saber como agir nos primeiros dias”, recorda. “É bem forte. Sempre quis ter. Quem não quer? Todo mundo quer ter reconhecimento. É um sentimento doido saber que o seu trabalho está sendo visto e admirado por outras pessoas.”

A exposição encerrou neste sábado (4), data do seu aniversário. Não poderia ter sido melhor. “Tô muito feliz, dá vontade de rir sozinho na rua.”

Exposição “Personalidades” retratou personalidades da música e figuras históricas de relevância cultural e educacional. Foto: Luiza Castro/Sul21
Quadro de Paulo Freira é uma homenagem à valorização da educação libertadora. Foto: Luiza Castro/Sul21
Lucas Name, o Foguinho, integrante do grupo projeto Restinga Crew. Foto: Luiza Castro/Sul21

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