Cultura
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24 de abril de 2021
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11:41

Biografia de João Gilberto Noll reconstrói as conexões entre vida e obra do aclamado escritor

Por
Luciano Velleda
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Jornalista e escritor Flávio Ilha trabalhou por quatro anos na biografia de Noll. Foto André Reis/Divulgação
Jornalista e escritor Flávio Ilha trabalhou por quatro anos na biografia de Noll. Foto André Reis/Divulgação

Biografar um homem discreto, com vida reservada e pouca atividade social, e que foi um dos maiores escritores contemporâneos do Brasil. Esse foi o desafio no qual mergulhou por quatro anos o jornalista e escritor Flávio Ilha para escrever João aos Pedaços, biografia de João Gilberto Noll que será lançada na próxima edição da FestiPoa Literária, em maio.

Admirador confesso da obra do escritor porto-alegrense, Ilha inicialmente planejou produzir um documentário sobre Noll, com roteiro que o mostraria caminhando por Porto Alegre e realizando suas leituras dramáticas características. A morte do artista, em 2017, alterou os planos. O que não mudou foi o desejo do jornalista em ir adiante no objetivo de melhor conhecer e entender a vida e a obra do premiado escritor.

Uma vida marcada por dificuldades, principalmente financeiras, consequência da escolha feita por Noll em se dedicar exclusivamente à literatura e não obter sustento por outros meios. Ilha diz que a biografia busca encontrar e refazer os laços que ligavam o sujeito João Gilberto Noll com o escritor João Gilberto Noll.

“A linha condutora do livro não é homogênea, dá muitas voltas na vida dele e se mistura com a literatura que ele produzia no momento em que esses fatos aconteciam. Por isso o nome ‘João aos pedaços’, porque são pedaços da vida dele vinculados aos livros que ele escreveu, e também porque ele viveu aos pedaços, era um cara que passou muita dificuldade pela opção incondicional que fez pela literatura, passou muitos perrengues, passou fome, viveu modestamente. E isso gerou muito conflito interno pra ele”, explica.

Ilha acredita que Noll se tornará um autor cultuado e destaca o fato dos seus livros estarem ganhando traduções nos Estados Unidos. Um reconhecimento que o escritor preferiria ter recebido em vida.

“Ele dizia: ‘Adoro ganhar prêmios, mas prefiro os prêmios que me deem dinheiro, porque preciso de dinheiro pra continuar escrevendo’. Mas isso gera um outro dilema, porque se ele não tivesse tido essa vida sofrida, não tivesse feito a escolha incondicional pela literatura e enfrentado todas essas dificuldades, talvez a literatura dele fosse bem mais anódina e bem menos impactante do que como foi, com a vida que ele teve”, pondera o autor de João aos Pedaços.

O biógrafo de Noll avalia que o livro pode iluminar momentos e narrativas angustiantes dos personagens do escritor ao longo da sua obra. “O personagem que ele usava era sempre um alter-ego dele mesmo, geralmente não tinha nome, às vezes tinha o mesmo endereço que ele, às vezes tinha a mesma biografia dele e isso aparece bastante no livro. É interessante ver como alguns fatos marcantes da vida dele foram parar nos livros como narrativas ficcionais, às vezes nem tão ficcionais… É interessante porque muda um pouco o contexto da narrativa ficcional dele.”

João aos Pedaços está em pré-venda no site da livraria Baleia.

Sul21: Como surgiu a ideia de escrever a biografia do João Gilberto Noll?

Flávio Ilha: Leio o Noll desde o primeiro livro, é um escritor referencial pra mim. Um cara que sempre admirei muito pela literatura, sem conhecer pessoalmente. E fui conhecer pessoalmente só em 2016, um ano antes dele morrer, quando fiz uma oficina com ele na antiga Baleia, no Espaço Aldeia. Fiz a oficina com ele, depois publiquei meu primeiro livro e então ficamos relativamente amigos, eu tava planejando fazer um documentário pra mostrar o Noll caminhando pelas ruas de Porto Alegre, fazendo aquelas leituras bem dramáticas que fazia, mas então em 2017 ele morreu repentinamente e o projeto não fazia mais sentido. Então tive que transformar o projeto numa biografia, porque não queria deixar de homenagear um dos meus autores preferidos.

Sul21: E o processo de obter as informações, como foi?

Flávio Ilha: A família foi muito receptiva em franquear cartas, fotos, originais que ele deixou, muitos amigos cederam material, foi uma aventura em que entrei depois da morte dele como uma homenagem e que acabou se transformando numa biografia de um dos maiores escritores e artista contemporâneo do Brasil, que deixou uma marca muito forte. Espero que, com essa biografia, mais pessoas possam conhecê-lo como o artista importante que foi e se apropriar um pouco da vida dura que ele teve, dedicada integralmente à literatura.

Sul21: A biografia segue o modelo tradicional ou há alguma abordagem ou recorte específico?

Flávio Ilha: Foi um trabalho de quatro anos. Não tive a intenção de fazer uma biografia definitiva sobre a vida do Noll, até porque era um cara super discreto, que teve uma vida bem reclusa, saia pouco, tinha muitos amigos, mas a vida pessoal dele era bastante reservada. Procurei preservar isso, na medida do possível, para não entrar em detalhes que não interessam relativamente ao escritor e ao homem. Tentei fazer a relação do sujeito João Gilberto Noll com o escritor João Gilberto Noll, uma figura pública, e com a influência que a vida pessoal teve nos livros e na arte que ele produziu. Não tive a pretensão de abranger tudo detalhadamente, mas evidentemente fui à infância dele, às relações familiares, e pra isso a família foi decisiva, são cinco irmãos, uma família grande e que teve bastante conflitos, em função da educação nos anos de 1940 e 1950.

Abordo a influência que essas relações familiares tiveram na formação humana e artística dele, mas sem entrar em detalhes absurdos e sem remexer demais. Tem bastante informação sobre a infância e juventude dele no bairro Floresta, mas não são informações comprometedoras que o coloquem como um personagem controverso. As relações pessoais também, fui atrás de amigos e conhecidos, namorados e namoradas, reconstruí bastante coisa da vida dele. Procurei não fazer uma biografia convencional com começo-meio-fim e mais com fim-meio-começo. Transgrido essa cronologia do tempo histórico e começo com a morte dele.

Sul21: Por que o título “João aos pedaços”?

Flávio Ilha: A linha condutora do livro não é homogênea, dá muitas voltas na vida dele e se mistura com a literatura que ele produzia no momento em que esses fatos aconteciam. Por isso o nome “João aos pedaços”, porque são pedaços da vida dele vinculados aos livros que ele escreveu, e também porque ele viveu aos pedaços, era um cara que passou muita dificuldade pela opção incondicional que fez pela literatura, passou muitos perrengues, passou fome, viveu modestamente. E isso gerou muito conflito interno pra ele. ‘Aos pedaços’ também se refere a isso, ele meio que se despedaçou pra viver essa opção pela literatura. Num momento do livro, numa entrevista que ele deu e poucos lembram, ele até menciona o arrependimento que tinha por ter feito essa opção tão radical pela literatura e que causou muitos problemas materiais pra ele e sentimentais também, com homens e mulheres com quem ele se relacionou. Ele viveu numa pobreza quase crônica em função dessa opção que fez pela literatura.

João aos Pedaços. Foto: Divulgação

Sul21: Essa opção é um traço marcante do caráter dele…

Flávio Ilha: Ele fez essa opção nos anos de 1980, após publicar o primeiro livro. Ele ainda fazia alguns trabalhos esparsos, dava aula, trabalhou como jornalista em alguns empresas, como revisor, mas depois fez a opção pela arte e foi uma opção cruel. Conscientemente ele aderiu a essa forma de vida, mas no fim, quase 40 anos depois da trajetória da carreira, ele pode olhar pra trás e ver criticamente isso. Morreu com 70 anos e não tinha praticamente nada. Tinha um apartamento pequeno no centro que não tinha praticamente nada dentro, tinha livros, mas muitos ele se desfez ao longo da vida pra poder sobreviver, vendia seus livros. Não houve um arrependimento explícito, mas ele teve um olhar crítico sobre a carreira no final da vida, e acho que morreu um pouco angustiado e talvez rancoroso com essa trajetória que não lhe deu o reconhecimento devido em vida.

Provavelmente ele vai se tornar um autor cultuado, já está se tornando, está sendo frequentemente traduzido nos Estados Unidos, mas ele gostaria de ter tido esse reconhecimento em vida, principalmente de forma monetária. Ele dizia: ‘Adoro ganhar prêmios, mas prefiro os prêmios que me deem dinheiro, porque preciso de dinheiro pra continuar escrevendo’. Mas isso gera um outro dilema, porque se ele não tivesse tido essa vida sofrida, não tivesse feito a escolha incondicional pela literatura e enfrentado todas essas dificuldades, talvez a literatura dele fosse bem mais anódina e bem menos impactante como foi, com a vida que ele teve. A gente jamais vai saber isso, mas é uma hipótese. Talvez ele não produzisse uma literatura tão impactante se tivesse uma família feliz e um emprego confortável que o fizesse se transformar num cidadão de classe média padrão.

Sul21: Mas ele tinha planos de tentar mudar essa realidade sofrida?

Flávio Ilhas: Ele tinha a ideia de dar uma parada, de aproveitar um pouco a vida, tava insatisfeito com o que vinha produzindo. Ele gostaria de dar aulas numa universidade, de ter alunos, ele gostava das oficinas literárias justamente porque tinha contato com jovens que estavam começando a escrever. Ele queria ter uma vida mais calma, menos conflituosa com ele mesmo, mas não conseguiu, não teve tempo de viver essa vida um pouco mais tranquila. Quando morreu, ele tava namorando uma mulher que dava certa estabilidade emocional pra ele, que tinha uma família com filhos e com os quais ele convivia, então ele tava vivendo uma espécie de um sonho quando morreu, e olhando criticamente pra essa trajetória que desempenhou.

Sul21: O que foi mais difícil no trabalho para juntar esses “pedaços”?

Flávio Ilha: Tudo foi difícil, porque ele teve uma vida super discreta. Muita gente não queria aparecer ou revelar as relações que teve com ele. Ele se relacionava com homens e mulheres, era bissexual, apesar de nunca ter mencionado essa expressão, ele nunca se preocupou com isso, se relacionava com quem queria. Ele tinha uma liberdade de comportamento “chocante”, porque nosso padrão de civilização não aceita esse tipo de liberdade, e ele vivia isso livremente. Então teve conflitos familiares, conflitos com pessoas com quem ele queria se relacionar, com pessoas que queriam ter uma estabilidade emocional com ele e ele não oferecia essa estabilidade. Essa liberdade dele chocava muito as pessoas, então muita gente escondia sua relação com o Noll e não queria falar sobre isso, e falou na condição de anonimato.

Ele também era um cara que não escrevia muitas cartas. Escrevia para um ou outro amigo, escrevia para o Luis Fernando, o irmão que era o grande amigo dele, e fora isso mandava um postal de vez em quando, um e-mail, sempre muito objetivo. Foi bastante difícil todo o processo de os “pedaços” dessa trajetória. Tive que recorrer a muitas entrevistas que ele deu e que, numa determinada resposta para uma pergunta específica, tinha uma revelação mais surpreendente e que checando com alguma coisa que ele tava vivendo em determinado momento, era possível reconstruir fatos que tinham acontecido. Foi um trabalho bem difícil para tecer essa rede de informações.

Não foi uma vida, digamos, glamourosa. Ele não teve namoros chocantes, arroubos, brigas homéricas, uma vida de “artista de cinema”, longe disso, teve uma vida absolutamente simples. Viajou bastante, escreveu mais ainda, não teve filhos. Não tem nada glamouroso na vida dele, o que torna mais difícil reconstruir uma vida simples e relativamente calma. Apesar da vida calma, o livro tem muitos fatos relevantes e interessantes que vão agradar a quem gosta e tem admiração pelo Noll.

Sul21: A biografia então ajuda a compreender a obra literária do Noll?

Flávio Ilha: Tu lês de uma forma diferente, consegue contextualizar coisa que parecem obscuras para quem não conhece. Talvez a principal contribuição desse trabalho seja jogar luz em alguns pontos que podem parecer obscuros na obra do Noll. Ele nunca quis transformar a literatura dele numa coisa perfeitamente compreensível a qualquer pessoa. O Noll desafiava o leitor, não dava explicações e quem gostar desse jeito, que goste, e quem não gostar, que “se dane”. Ele não fazia nenhuma concessão. Acho que o livro pode jogar luz em alguns momentos e narrativas dele que são angustiantes, do ponto de vista dos personagens. O personagem que ele usava era sempre um alter-ego dele mesmo, geralmente não tinha nome, às vezes tinha o mesmo endereço que ele, às vezes tinha a mesma biografia dele e isso aparece bastante no livro.

É interessante ver como alguns fatos marcantes da vida dele foram parar nos livros como narrativas ficcionais, às vezes nem tão ficcionais… É interessante porque muda um pouco o contexto da narrativa ficcional dele. Pra mim, mudou bastante. Consigo ver um autor angustiado que transita pelas mazelas humanas de uma forma sublime. Ele consegue ser sublime em questões difíceis de comportamento humano. Espero que os leitores e leitoras do livro consigam captar essa essência humana no personagem que ele usa nos livros, e também na figura humana do João Gilberto Noll. Esses personagens se cruzam com suas mazelas e angústias humanas. Acho que se as pessoas entrarem nessa viagem vão conseguir entender e usufruir um pouco melhor da literatura que o Noll produziu.


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