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8 de junho de 2021
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10:00

Memórias, mortes e luzes

Por
Sul 21
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Moradores do Jacarezinho pedem fim dos massacres nas favelas (Reprodução/TV Globo)
Moradores do Jacarezinho pedem fim dos massacres nas favelas (Reprodução/TV Globo)
Moradores do Jacarezinho pedem fim dos massacres nas favelas (Reprodução/TV Globo)

Robson de Freitas Pereira (*)

No início do mês de maio, ainda sob o impacto das mortes e da repetição da violência contra as comunidades pobres do Rio, das quais o Jacarezinho é uma delas, escrevia  a um amigo.

“Zé . O Jacarezinho pra mim tem muitas memórias em tempo e espaço diferentes. Boa parte da minha infância foi passada em Maria da Graça um dos bairros da zona norte com o qual o Jacarezinho faz fronteira. Explico: uma das fronteiras é o muro da fábrica da GE (General Eletric) que costeia a rua Miguel Angelo e vai quase até a avenida D. Helder Câmara (antiga Suburbana). No final dos anos 50 e inicio dos 60, Brasil em pleno início de industrialização, fabricavam geladeiras e fogões. Como passar do tempo e as crises econômicas sucessivas, foram parando a produção e passaram a fazer somente lâmpadas de filamento – estas que foram extintas no início deste século, até que fechou a fábrica definitivamente em 2008. Na época dos fogões e das geladeiras,  todo mundo no bairro tinha uma. Assim como muita gente da vizinhança trabalhou lá. Minha tia, quando solteira, foi uma delas. Meu padrinho, com duas filhas pequenas,  morava perto. Meus avós e tios e mesmo minha família moravam naquele bairro. Ruas Fernando Esquerdo, Conde de Azambuja, Professor Bôscoli- do Maria da Graça Futebol Clube, eram velhas conhecidas de caminhadas e visitas aos parentes. Passou o tempo. Só ficou um tio, Carlos, o caçula dos seis filhos do meu avô, morando na Luis de Brito. Há alguns anos, ele estava doente e fomos visitá-lo. O motorista do uber, só acostumado com a zona sul , seguiu fielmente as indicações do gps. Resultado: a rua começou a ficar estreita, o lixo se acumulando dos lados e, de repente, meu primo avisa: “todo mundo baixa o vidro do carro pra eles verem que é família . Estamos passando pela entrada do Jacarezinho “. Passamos devagar, quietinhos em sinal de medo e de respeito. Pouco depois, o motorista suando, ainda se refazendo do susto, dizia: ”pôxa, não sabia. O gps mandou vir por aqui”. Na volta, meu primo Carlinhos nos indicou um outro caminho. Foi a última vez que vi meu tio Carlos. Visita de reencontro e despedida.

Há três anos fui ao Rio enterrar meu pai. No velório, Luciano, amigo e psicanalista, me conta que recém tinha aberto um consultório no meio da favela: “Clinica Jacarezinho” [1]. Estava entusiasmado com a possibilidade de abrir um espaço de escuta para os moradores . Contou das negociações com as lideranças comunitárias, ganhar a confiança das pessoas, garantindo que não estava alí  “para fazer pesquisa”, até conseguir se instalar. O prédio da Clínica no Jacarezinho fica em frente ao muro da fábrica da GE. Fiquei de voltar e conhecer. Semana passada, poucos dias depois da chacina, ele estava no evento que a comunidade promoveu para prantear seus mortos. Mesmo na pandemia, achou que esta tragédia valia o risco para compartilhar o luto e  prestar solidariedade.

Sinal dos tempos. Tempos paradoxais onde a pandemia e suas consequências colocam mais dúvidas quanto ao futuro. O futuro dos filhos das comunidades de todo o Brasil. Ou alguém ainda pensa que a violência e desgraça só se abate sobre os filhos dos outros? Não há carro blindado ou condomínio fechado que garanta segurança completa. Entretanto, ainda “viceja” um pensamento que sustenta a segregação e a deliquencia. Vide o ocupante do Palácio do Planalto. Nesta lógica macabra, o Brasil perde espaço na economia local e mundial e  cresce o poder das milícias e do tráfico. Há dois dias, mais um prédio construído em comunidade dominada pelas milícias desabou. Qualidade do material de construção e cuidado com a vida dos outros não é com eles.

Simultaneamente, apesar da necropolítica, o desejo pulsa, os vagalumes sobrevivem e reaparecem mesmo em lugares inesperados, onde a Clínica nó Jacarezinho e a TV Portal Favelas são dois sinais luminosos vitais, muito diferentes das luzes criminosas de uma munição traçante. Pouco depois da chacina de seis de maio passado, participando de um programa de entrevistas, Luciano Elia pôde esclarecer que o desejo de ser escutado perpassa qualquer um, morador de comunidade ou não. Luiz Eduardo Soares, no mesmo programa, concordava e agregava um desejo que pode ser sintetizado na dedicatória de seu livro mais recente: “dedico este livro às mães dos jovens mortos pelas polícias e às mães dos policiais mortos nesta estúpida guerra fratricida. Que o destino trágico as una pelo menos nesta página. Se elas compreenderem, algum dia, que são irmãs na dor e que o inimigo está em outro lugar, a politização do sofrimento promoverá uma revolução no Brasil.”

“Abraços do amigo”.

[1] O com acento agudo é proposital. Refere-se ao nó borromeu que enlaça de forma equivalente as dimensões do real, simbólico e imaginário que sustentam o sujeito. 

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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