Marco Weissheimer
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24 de janeiro de 2014
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18:11

A mistificação ideológica de um editorial de Zero Hora

Por
Sul 21
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A mistificação ideológica de um editorial de Zero Hora
A mistificação ideológica de um editorial de Zero Hora
Após a crise de 2008, trilhões de dólares foram drenados do setor público para o setor privado. E não se viu nenhum editorial dos braços midiáticos do capital financeiro afirmando que os investidores privados precisavam tomar medidas urgentes para recuperar a confiança da sociedade.
Após a crise de 2008, trilhões de dólares foram drenados do setor público para o setor privado. E não se viu nenhum editorial dos braços midiáticos do capital financeiro afirmando que os investidores privados precisavam tomar medidas urgentes para recuperar a confiança da sociedade.

“Reconquistar a confiança dos investidores é o grande desafio da presidente da República em sua estreia no Fórum Econômico Mundial”. A frase é do editorial de quinta-feira (23), do jornal Zero Hora, que tratou da viagem de Dilma Rousseff a Davos. Intitulado “Um olhar para Davos”, o editorial é uma peça da mais pura ideologia do mercado que omite completamente o papel dos “investidores” na situação atual da economia mundial.

Mais do que omitir, o texto introduz uma deformação na realidade colocando sobre os ombros do setor público, no caso representado pela presidenta brasileira, a responsabilidade da retomada da confiança. Nenhuma linha sobre a responsabilidade do “mercado” e dos “investidores” na geração da crise e de seus desdobramentos. Essas entidades são apresentadas de modo abstrato, desprovidas de historicidade e de responsabilidade. Já a presidenta brasileira recebe o seguinte tratamento:

“O desafio a ser enfrentado pela senhora Dilma Rousseff, na palestra de amanhã na cidade suíça, é, na essência, o de transmitir confiança a quem nos olha com a certeza de que esta ainda é uma nação que desperdiça chances e potencialidades”.

E ainda:

“A presidente terá dado um passo importante se amanhã transmitir um pouco mais de confiança à elite mundial em relação a projetos que, pelo consenso, deveriam ter suas prioridades postas acima de orientações ideológicas e de governos”.

Vamos falar um pouco, então, de confiança, do desperdício de chances e potencialidades. Quem é, afinal de contas, a elite mundial referida no editorial de Zero Hora? E qual a sua responsabilidade (se é que essa palavra se aplica a essas “elites”) pela crise e pelos problemas na economia? Um informe divulgado pela Oxfam esta semana fornece alguns números interessantes a respeito:

Cerca de 1% das famílias do mundo é dona da metade da riqueza do planeta. As 85 pessoas mais ricas do planeta ganham hoje o mesmo que a metade da população mundial somada. Ainda segundo a Oxfam, em 24 dos 26 países que tem informações estatísticas dos últimos 30 anos, os níveis de desigualdade aumentaram. Isso significa que sete de cada dez pessoas do mundo vivem em um lugar mais desigual que há 30 anos. Por outro lado, cerca de 850 milhões de pessoas passam fome hoje no mundo e  1,2 bilhões sobreviverem com menos de 1,25 dólar. Essas pessoas, talvez, sobrevivam assim porque não conquistaram confiança suficiente do mercado.

Quando o mercado financeiro mundial explodiu em 2008, não se cobrou dos governos a necessidade de recuperar a confiança dos investidores. Quando o cassino de papeis sem lastro real, também conhecidos como derivativos, explodiu em 2008 e arrastou bancos como o Lehman Brothers para o buraco, os executivos do setor financeiro correram para os braços dos governos com uma advertência catastrófica: se o Estado não injetar dinheiro no setor e socorrer os bancos haveria uma quebradeira geral. A advertência em tom de ameaça surtiu efeito. Trilhões de dólares foram drenados do setor público para o setor privado. E não se viu nenhum editorial dos braços midiáticos do capital financeiro afirmando que os investidores privados precisavam tomar medidas urgentes para recuperar a confiança da sociedade.

Não se ouviu nada parecido como as palavras de Ricardo Fuentes-Nieva, chefe do setor de pesquisa da Oxfam, ao falar sobre a pesquisa da desigualdade do mundo:

“O estouro financeiro de 2008 aprofundou a desigualdade com os programas de austeridade aplicados para solucionar uma crise que teve sua origem nos mais ricos do mundo e sua especulação financeira. Os paraísos fiscais foram fundamentais nesta especulação e constituem uma das chaves do desfinanciamento dos estados porque distorcem a política governamental. Por um lado, forçam políticas de redução fiscal para os mais ricos para que não recorram à evasão e à fuga de capital. Por outro, impedem políticas sociais e econômicas que reduziriam a desigualdade (…)”.

Vamos falar de confiança. Segundo as projeções do FMI, até 2018 não haverá solução imediata para a crise global. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), há hoje 202 milhões de desempregados no mundo (5 milhões a mais que em 2012). A projeção para 2018 é de 213 milhões de desempregados, 74% deles jovens de 15 a 24 anos. A crise de 2008 deixou os ricos mais ricos, agravou a situação dos mais pobres e drenou trilhões de dólares do setor público que agora é convocado a fazer “reformas estruturais” para reconquistar a confiança dos mercados. Que nome dar a tal mistificação ideológica?


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