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10 de maio de 2024
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17:40

Meninas são desproporcionalmente afetadas em emergências climáticas, diz pesquisadora

Por
Bettina Gehm
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Foto: Bruna Ourique/PMC
Foto: Bruna Ourique/PMC

Além de toda a destruição causada pela enchente que atingiu o Rio Grande do Sul, autores de crimes sexuais estão vitimando pessoas refugiadas em abrigos. Seis suspeitos dos crimes já foram presos e as denúncias levaram à criação de espaços exclusivos para mulheres e crianças. Como mostramos nesta quinta-feira (9), um agravante para a segurança dos menores de idade é que a enchente também está comprometendo o trabalho dos conselhos tutelares.

 

Júlia Ferraz pesquisa violência de gênero em emergências climáticas. Foto: Arquivo pessoal

Em todo o estado, quase 70 mil pessoas estão em abrigos mantidos pelas prefeituras e pela sociedade civil. Para entender a condição das mulheres e crianças nessa situação, o Sul21 conversou com a pesquisadora Júlia Lambert Gomes Ferraz. Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Júlia é pesquisadora e advogada com ênfase em direitos humanos, mudanças climáticas e gênero.

“Temos que presumir que o risco [do abuso sexual nos abrigos] existe. Não é preciso esperar o dado ser fabricado, a denúncia ser registrada, para darmos valor ao problema. Precisamos presumir que isso é uma realidade e agir rapidamente. Muitos estupros já aconteceram: os que soubemos e os que não ficamos sabendo”, afirma a pesquisadora.

 

 

 

Leia a entrevista na íntegra:

Sul21: O que explica o fato de ocorrer assédio e abuso sexual mesmo em situações extremas como a enchente que atingiu o RS?

Júlia: O abuso não surge nessa situação, a gente fala de locais onde já existe a discriminação com a mulher e essas práticas já aconteciam. No RS, muitos [agressores] eram familiares que já praticavam isso com as vítimas antes da emergência. A emergência não cria o problema do nada. [A violência] é um problema estrutural que a emergência agrava e torna ainda mais severo. A emergência deixa as pessoas ainda mais vulneráveis, porque toda a rede de suporte se rompe, muitos são deslocados compulsoriamente, famílias são separadas. As crianças, separadas dos pais ou cuidadores, ficam muito mais expostas e vulneráveis a sofrer esse tipo de violência.

Muitas vezes, não há presença das forças de segurança pública nem das redes de assistência social. O equipamento é igualmente atingido, não se pode contar com os Cras (Centros de Referência em Assistência Social) ou Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Os pontos de apoio têm que ser recriados e essa ajuda demora a chegar.

E, claro, existem pessoas mal intencionadas que vão a esses lugares porque sabem que vão encontrar vítimas fragilizadas, mulheres sozinhas. Mas o ideal é não entrar nesse lugar de que o estuprador vai ser sempre uma pessoa desconhecida. Muitas vezes a pessoa é de conhecimento da família.

Sul21: No Rio Grande do Sul, estão sendo criados abrigos exclusivos para mulheres e crianças. É uma medida emergencial, mas de que forma ela perpetua um isolamento das vítimas ao invés dos agressores?

Júlia: O central de toda política humanitária em emergência deveria ser a proteção. Deveria ser a medida que garante o máximo de proteção. Infelizmente, no cenário que vivemos agora, deixar [as mulheres em crianças] em abrigos com circulação misturada onde [o abuso] acontecia à luz do dia, [a separação] pode ser necessária. Mas não é o ideal, o ideal é garantir que os espaços sejam seguros para mulheres e meninas. Garantir um espaço separado, com condições para a proteção necessária desse público, ajuda como medida de emergência. É com a finalidade de uma medida urgente de proteção, como nos casos de violência doméstica, em que não é ideal que a mulher vá para um abrigo. Mas a medida protetiva muitas vezes é ineficaz. Se ela vai para um abrigo que comporta os filhos, onde tem acesso à assistência social, como política de urgência para acabar com o risco, é importante. É drástico, mas é importante.

Nas enchentes do RS, a medida é interessante mas infactível. Não é possível separar todas as mulheres e crianças do estado inteiro. O ideal seria pensar em medidas adicionais, que não só a separação de abrigos, e que garantam uma segurança. Seja pelo treinamento e capacitação das guardas civis, da Defesa Civil e dos Bombeiros; pelo patrulhamento maior em área onde há mais abrigos. Já deveria existir um plano, um protocolo para ser simplesmente acionado na emergência. Esse protocolo não existe, o ideal é que já estivesse em prática.

Sul21: Pode detalhar como seria esse protocolo?

Júlia: Já existem muitos materiais interessantes, feitos por consultorias e organizações internacionais, que colocam o passo a passo para a elaboração desse tipo de política pública por atores coordenados. O ideal é sempre pensar na prevenção. O foco deveria ser evitar o desastre, mas caso aconteça, traçar as medidas de prevenção dos riscos de agravamento da violência. Já sabemos os fatores que agravam a violência contra meninas e mulheres e onde estão as famílias que já vivem situação de abuso. Poderia se entender as áreas onde essas pessoas são mais vulneráveis e, a partir desses dados, colocar o treinamento específico para quem trabalha na ponta. Isso pode ser feito de várias formas, depende de como a comunidade se sentir segura. Existem comunidades que não vão querer uma medida de policiamento, por exemplo. Podem optar por outras formas de ter proteção e segurança porque às vezes a polícia agrava situações de conflito. É preciso entender de que forma as famílias gostariam de ter esse atendimento.

Sul21: O que tende a acontecer com essas mulheres de crianças depois que a vida volta “ao normal”, na medida do possível?

Júlia: Quando se atua em desastres, existe uma cobertura muito grande da emergência em si. Mas o desastre tem uma fase posterior, que é a de reestruturação da comunidade que foi atingida. [A mulher] não está mais nos abrigos, mas precisa refazer a casa dela. O que a gente nota de impactos negativos bastante comuns, principalmente para meninas, é um não retorno à escola. Existe uma quebra do acesso à educação. Quando ela está no abrigo, já deveria ser garantido como um direito. As meninas são desproporcionalmente afetadas. Quando voltam para suas casas, elas já não conseguem mais se inserir no ambiente escolar, o que causa danos à escolarização, à profissionalização e à carreira dessas meninas.

Outro evento é meninas que acabam, durante o período emergencial, mudando para outras famílias. Isso em situação de extrema pobreza. Essa menina é dada para outra família onde não é vista como filha, ela acaba se casando. Ocorre o casamento infantil, e a partir daí essa criança vai ter a vida totalmente alterada. Isso é muito comum no Brasil; somos o quarto país no ranking mundial de casamentos infantis, e aqui a gente proíbe essa prática.

Tudo isso fora os traumas psicológicos. Muitas mulheres desenvolvem depressão grave, muitas delas com intenção suicida. É um desespero muito grande. Muitas mulheres atingidas narram o desespero com a incerteza sobre o futuro e como prover o básico para os filhos, uma sobrecarga doméstica gigantesca que elas têm que enfrentar a partir disso.

Sul21: Muitas famílias perderam tudo e devem seguir por muito tempo em situação de abrigamento. Como tornar esses ambientes mais acolhedores para mulheres e crianças?

Júlia: Com certeza, o acompanhamento psicológico é o primeiro passo. Colocar à disposição profissionais da área da saúde que consigam dar o suporte emocional necessário nessa etapa. É importante garantir atividades para essas pessoas, para elas não ficarem sem perspectiva nenhuma. É um ambiente muito carregado e difícil, todos num processo de luto muito forte. Garantir para as crianças, que conseguem viver a vida delas apesar do evento, atividades educativas para elas conseguirem interagir. Tentando deixar isso o mais próximo de um normal para essas crianças, garantindo uma experiência o menos traumática possível. Para as mães é mais difícil, porque são adultos conscientes. Mas integrar essas mulheres. Muitas pessoas também perdem os animais, e está se revelando super importante colocá-las em contato com familiares, animais e itens perdidos. Mas isso precisa ser feito com segurança. 

Geralmente se pensa em prover água, comida e roupa para os abrigados. Mas não se pensa nas necessidades específicas das mulheres. Uma orientação é doar kits de dignidade menstrual, com absorventes e lenços umedecidos, que garantam o cuidado básico no período menstrual para essas mulheres.


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