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18 de maio de 2024
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13:52

Mathias Velho: o bairro onde cresci no epicentro do fim do mundo

Bairro Mathias Velho, em Canoas, ficou embaixo d'água | Foto: Arquivo Pessoal
Bairro Mathias Velho, em Canoas, ficou embaixo d'água | Foto: Arquivo Pessoal

Fernanda Nascimento

Escrever sobre a histórica tragédia do Rio Grande do Sul e a maior catástrofe climática do Brasil talvez seja uma tarefa mais simples para quem, como eu, nasceu e cresceu no bairro que é o epicentro do fim do mundo. Não tenho certeza se consigo descrever o que vejo e o que sinto. Tampouco imagino que quem não esteja aqui consiga sentir tudo isso. Nessa tentativa de tradução, talvez o que eu esteja fazendo seja compreender o inexplicável presente.

Nasci em Canoas e até os 23 anos morei na casa dos meus pais, na Mathias Velho. No terreno que hoje está debaixo d’água, eles criaram cinco filhos. Seu Nilson e Dona Rejane se conheceram por lá mesmo e seis quilômetros separam a casa em que vivem da entrada da Mathias – aquele começo do bairro onde as pessoas resgatadas por barcos chegaram a partir de 4 de maio.

Minha avó materna era uma das moradoras mais antigas do bairro. Negra e vinda de São Luiz Gonzaga, na região das missões, a dona Geni lutava com as forças que possuía para criar os sete filhos. Dona Ilda, minha avó paterna, também morou na mesma rua. E a São Borja, hoje alagada, é o endereço em que moram ou moraram muitos tios e primos, parentes por parte de pai ou mãe.

A enchente de 1941 é a tragédia climática de referência para os gaúchos. Há mais de 80 anos o nível que o Guaíba chegou naquela oportunidade, 4,76 m, era utilizado como uma referência triste. Mas, em Canoas, no imaginário dos moradores as piores lembranças são as enchentes dos anos 1960, especialmente a de 1967. Compreendo isso como fruto da ocupação tardia do bairro.

Meu pai viveu as enchentes dos anos 1960 e isso quase foi motivo de uma tragédia ainda maior em 2024.

Com quase 80 anos, ele conta histórias sobre como a região em que mora, mesmo distante do início do bairro, é mais alta, um resultado da topografia irregular da região. Histórias sobre como, aos 20 anos, andou com água na altura do peito em alguns locais e na nossa rua podia caminhar. Ele tinha certeza que estava seguro lá e relutou em sair de casa, mesmo com o alerta de evacuação na região. No primeiro dia da enchente, as imagens e vídeos que vimos dos vizinhos que ficaram por lá mostravam a água na altura das janelas da casa.

Assim como o pai, outros milhares de moradores também não acreditaram na força das águas. E, mesmo para quem acreditou desde o princípio, o que vimos e o que estamos vivendo é inimaginável. A verdade é que, mesmo acompanhando a tragédia que acontecia na Serra e no Vale do Taquari, e sabendo que as águas desceriam para o Rio dos Sinos, não tínhamos a menor ideia do que aconteceria.

 

Farol era o cachorro da família | Foto: Arquivo Pessoal

Nós perdemos o grande amigo da família: o Farol, cachorro do meu pai.

Fui responsável por trazê-lo para casa e isso aconteceu de uma forma inusitada, que até hoje não sei explicar porque aconteceu. Nunca tivemos um cão e meus pais sempre disseram que não queriam animais – uma opção após o trauma da perda de bichos que haviam morrido quando meus irmãos mais velhos ainda eram crianças.

Mas, em uma viagem para o Farol de Santa Marta, em Laguna, conheci o Farol. Um filhote recém nascido de uma ninhada de pequenos vira-latas. Trouxe. O cachorro viajou de ônibus, de balsa e em ônibus intermunicipal num percurso de mais de 8 horas. Com o adendo de que estava dentro de uma mochila. Não latiu em nenhum momento e chegou. Ganhou o nome do local de origem: Farol.

Farol, o cachorro da família | Foto: Arquivo Pessoal

Meu pai, como a maioria das pessoas que acabam amando seus animais, inicialmente não queria o bicho. Pouco tempo depois, o Farol se transformou no cão mais mimado da rua, quiçá do bairro. Ele tinha 12 anos. Era o caramelo mais obeso que conhecemos, pesando mais de 40kg.

No dia 3 de maio, foi dado o alerta de evacuação até a rua São Lourenço – uma rua antes dos meus pais. Meu pai não queria ir. Quando finalmente decidiu que sairia, o Farol resistiu em subir no carro. Quis morder meu pai e meus irmãos. Na hora da saída, em meio ao caos, o pai decidiu que iria e deixaria muita comida e água para o Farol. Comida em todo o pátio. A chave de casa ficou com um vizinho – que ficaria por lá, pois tinha uma residência de dois andares e, como já disse, também não imaginava que a água pudesse chegar até ali.

Na manhã seguinte, em meio às notícias da enchente e do resgate, meu pai chorava abraçado em um urso de pelúcia. Quando liguei para ele, a primeira coisa que ele tentou falar, em meio a soluços, foi sobre o cachorro.

E se nas primeiras horas os resgates eram todos destinados aos humanos, logo depois, percebemos a possibilidade de tentar buscar o Farol. Mais de cinco barcos foram até lá e não o encontraram – no último, um amigo da família foi até o fundo do terreno, espaço mais alto, e conseguiu resgatar a cachorra da minha prima. Mais jovem, a Bombom resistiu.

Na busca online pelas páginas que começaram a catalogar os animais resgatados e nos abrigos que se estendem por toda a parte não alagada de Canoas, tentamos encontrar o Farol. Meus irmãos percorreram vários locais. Minha irmã chegou a ir ao hospital veterinário em busca de um cachorro que realmente parecia ele. Mas não era.

Assim que cheguei em Canoas também percorri abrigos e voltei arrasada por perceber a quantidade de animais bem cuidados, tristes, à espera de seus tutores. Somente em um dos sites online havia mais de 2.500 animais cadastrados. Nas palavras de um dos voluntários do local: “chegam 20 cachorros por dia e saem dois”.

Uma tarde, vi meu pai sentado com o olhar triste. Sentei ao lado e ele me disse: “Não fico triste pela casa. Eu nunca tive nada nessa vida, mesmo. O que me dói é o meu cachorrinho”.

Assim que a água começou a baixar, conseguimos encontrar o corpo dele, em 17 de maio. Meus pais choraram o choro preso há 15 dias. Desabamos.

É engraçado como depois de uma tragédia as memórias são acionadas para coisas e situações do cotidiano que nos passam despercebidas. Canoas é repleta de diques – locais de contenção construídos para escoamento da água e que hoje têm sido questionados em sua eficácia. Na quadra da nossa casa, no fim da rua, sempre existiu o Dique da Curitiba, aquele mesmo que, mais para o fundo do bairro, estourou e por onde começou a enchente em toda a Mathias.

Há menos de 10 anos, esse dique foi canalizado. Até então, o cheiro de podre por ali era frequente. Lembro de falar “fulano mora perto do dique”. Na rua do dique, uma rua de chão batido pavimentada somente em 2022, andávamos de bicicleta porque era mais tranquilo. Agora, na enchente, soube que o maior medo de infância da minha irmã era cair no dique.

Outra coisa muito comum quando não havia canalização eram os valos ou valas: o local por onde a água corria. Inclusive, havia um local no bairro passível de referenciação com a simples frase: “é perto do valão”. Na infância, o amigo imaginário do meu irmão mais novo se chamava Valo.

Com 60% da cidade atingida pela enchente, Canoas teve mais de 90 mil pessoas deslocadas de casa. Cerca de 20 mil precisaram ir para abrigos. As outras foram para casas de amigos, parentes e conhecidos. Quem anda pela parte seca enxerga as ruas e casas cheias de pessoas, carros e bichos. Desconheço quem não esteja na seguinte situação: desabrigado ou abrigando alguém.

Foto: Arquivo Pessoal

Assim como meus pais, a maioria dos meus irmãos reside em Canoas. Com o alerta de evacuação e com a chegada das águas nos bairros Mathias Velho, Canoas, Harmonia e em parte do Centro, três deles precisaram sair de casa. Por sorte, há dois anos, um dos meus irmãos comprou uma casa espaçosa do outro lado da cidade. E foi para lá que todo mundo se deslocou no dia 3. E é lá que permanecem.

O saldo da enchente na minha família é de três casas alagadas, um centro de treinamento embaixo d’água, uma clínica odontológica ilhada, uma loja de móveis e seu estoque submersos no bairro Navegantes, em Porto Alegre. Naquela casa, 15 pessoas foram diretamente atingidas pela enchente.

Mas, o saldo mais duro é pensar no que não volta. Minha mãe lembrou que perdeu os trabalhinhos de pré-escola de todos os filhos – alguns papéis com mais de 40 anos. Dona Rejane passa o dia inteiro envolvida em mil afazeres domésticos – e mesmo que a gente se antecipe e faça o que ela pretendia fazer, em uma tentativa vã de fazê-la descansar, a mãe vai lá e encontra algo novo para fazer. Uma hora ela me disse: “Minha filha, me deixa. Eu preciso ocupar a minha cabeça para não enlouquecer”.

Acompanhar de longe uma tragédia envolvendo a própria família é desolador. E eu demorei para conseguir me deslocar para Canoas já que, com todas as estradas bloqueadas, um deslocamento de 15km que era realizado em 25 minutos ou 30 minutos, se transformou em uma viagem de 60 km realizada em, no mínimo, 1h30. E que pode demorar mais de 4h – situação que vivi no meu retorno.

Em Canoas, fiquei por dias tentando ajudar como podia. Comprei roupas quentes, roupas de cama, material de limpeza etc. Mas o que sinto é a dor porque meu sobrinho de 5 anos diz que quer voltar para casa e não pode.

Um dia minha irmã me viu triste por não poder fazer tudo. Ela, que perdeu a casa, me olhou e disse: “Mana, tu não vai conseguir comprar um guarda-roupa inteiro para cada um da família”.

Impotência.

Nesses dias de suspensão do espaço-tempo, vivemos em uma realidade de espera pela baixa dos rios e pelo retorno. Um retorno para limpar, mesmo sabendo que não encontraremos o mesmo lugar que deixamos, porque ele já não existe mais.


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