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21 de março de 2023
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07:18

Espaço-tempo de passagem (Coluna da APPOA)

Fachada do prédio que abrigou o
Fachada do prédio que abrigou o "Dopinha", em Porto Alegre. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Manuela Sampaio de Mattos e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

 As passagens parisienses inspiraram Walter Benjamin a pensar uma filosofia materialista, de caráter visual, que fosse capaz de se ater aos limiares, aos locais por onde transitam as contradições, onde se entrecruzam as linhas do tempo, os estados de consciência, as imagens de desejo e dos sonhos, etc. As passagens, monumentos arquitetônicos precursores dos shopping centers, foram tomadas por Benjamin como imagens dialéticas portadoras de uma série de derivações e significações possíveis. Como restos de um sonho de progresso sonhado pelo séc. XIX, essas galerias cobertas carregam um índice histórico próprio e, além disso, no tempo do exílio de Benjamin em Paris, eram capazes de dizer muito ao presente e ao futuro. 

Uma das coisas peculiares a respeito da temática das passagens na obra de Benjamin é que ela permaneceu registrada em manuscritos, no formato de um grande arquivo que foi ganhando novas entradas conforme a atenção do autor ia se voltando cada vez mais para a conjuntura da época e para objetos considerados mundanos. O grande arquivo foi publicado postumamente, reunindo esboços e cartas, além de uma série de esforços dos editores para que o grande projeto das passagens guardasse também a sua característica de ser um projeto inacabado, poroso e, desse modo, portador de um devir. O fato mesmo de esta ser uma obra inacabada contribui para que o significante passagens tenha resguardado o caráter de movimento, pelo que Benjamin estava particularmente interessado. Voltar o olhar e o pensamento para o momento em que o movimento ganha uma imagem da sua própria transitoriedade era um de seus objetivos cruciais – assim, teríamos a chance de resgatar aquilo que fica subsumido, perdido como diferença excluída ou neutralizada em nosso automatismo de síntese operado pela consciência pensante. Olhar para o que está passando, para o que deixa de passar, para o que fica lançado para o futuro como possibilidade de um dia vir a ser narrado. O autor berlinense, profundo estudioso da infância, estava interessado em buscar a chance de sempre podermos contar a história outras vezes, desde outras perspectivas, até o ponto em que os vencidos pudessem ser os narradores. Por isso também é conhecido como um autor que se ocupou seriamente com o tema da memória. 

Seguindo pelo cenário de passagens, e entendendo que elas, como um significante, ainda nos convocam e dizem muito à nossa contemporaneidade e ao futuro, queremos poder pensar o momento sócio-político que estamos vivendo no Brasil como um espaço-tempo de passagem. Abre-se agora, diante de nós, um limiar importantíssimo para sustentarmos a necessidade de julgamento dos responsáveis pelos horrores cometidos neste país nos últimos quatro anos, cuja possibilidade de atroz existência está diretamente ligada à anistia concedida aos responsáveis pela ditadura militar no Brasil. 

Embora o contexto nos mostre o quanto parte significativa de nossa população está paralisada, fixada em uma posição de servidão, seja pelo viés da negação, seja mediante a sustentação de discursos de ódio e de exclusões, a mudança para um governo que zela pela diversidade, pela democracia e pelo resgate das memórias, parece-nos oportuna para avançarmos nessa questão. O ato de passagem da faixa presidencial do novo presidente que tomou posse no dia 1 de janeiro, constituiu-se como um gesto potente de restituição simbólica da história do Brasil.

  Quando Luiz Inácio Lula da Silva recebeu a faixa presidencial do cacique Raoni Metuktire, líder do povo Kayapó, do menino Francisco Carlos do Nascimento e Silva, do professor Murilo de Quadros Jesus, da catadora Aline Sousa, entre tantos outros, testemunhamos em ato, o reconhecimento da diversidade que nos constitui e, ao mesmo tempo, a reparação às violências cometidas contra os povos originários, os pretos, as mulheres, os educadores, os artistas, os pobres, dentre outros. Ou seja, os excluídos, os periféricos e marginalizados que foram sistematicamente anulados, jogados numa condição de invisibilidade social, têm agora a expectativa de passar a ocupar na cena pública um lugar de valor, de respeito, de cidadania e de dignidade social. 

Rememorar e responsabilizar os agentes tanto pelas mais abjetas formas de torturas ocorridas na época da ditadura no nosso país, quanto pela política da morte preconizada nos últimos anos, além de viabilizar o trabalho de elaboração necessário para emancipação das tiranias que insistem em esfacelar a democracia, faz-se indispensável para o futuro de uma nação. Por outro lado, frequentemente, ouvimos argumentos que não devemos recordar a história, restituir os fatos, pois é preciso seguir em frente, buscando assim, “reconciliar” o país.  Desde o nosso ponto de vista, essa posição se trata de um equívoco, mesmo porque entendemos o conceito de memória como algo que justamente pode possibilitar uma ação. Nesse caso, especialmente, em não jogar para baixo do tapete essa sujeira desses fantasmas que nos assombram; do contrário, como já observou Derrida, o fantasma será sempre um retornante dos escombros sob os quais tentam enterrá-lo. Portanto, falar sobre isso não se limita a identificar culpados. Trata-se de responsabilização com o passado e implicação com o futuro, pois não há esperança de um porvir emancipador sem revisitar os escombros, ou ainda, recordar, repetir e perlaborar, como aprendemos com Freud.

Benjamin, ao analisar o declínio da narrativa no seu contexto histórico, mostrou-nos que a arte de narrar corria o risco de se encontrar em vias de extinção e, consequentemente, que os narradores se situariam cada vez mais distantes do nosso convívio. Ele tomou como ponto de partida a experiência da primeira guerra mundial e mostrou que o impacto vivenciado pelos soldados no campo de batalha, mediante a trágica vivência de terem seus corpos cruamente expostos à destruição tecnológico-militar, teve como consequência uma espécie de emudecimento, fragilizando assim as suas capacidades de comunicação, de transmissão do ocorrido vivenciado. O excesso, a desmedida, as garras ferozes da violência têm como um de seus efeitos esse emudecimento e a destituição do pacto dialógico. O nosso trabalho e o nosso caminho, hoje, encontram-se, justamente, na contramão do emudecimento. 

 Lembremos das Clínicas do Testemunho, experiência recente realizada em nosso país e inédita no mundo, a qual possibilitou que, mesmo após vivências degradantes durante a ditadura civil-militar, muitas de suas vítimas apostassem novamente na palavra, narrando suas histórias nos espaços de escuta oferecidos pelo projeto. É tempo de narrar a partir das ruínas, de apostarmos nos espaços de passagem onde a palavra readquira suas possibilidades simbólicas de compartilhamento de experiências. 

Manuela Sampaio de Mattos é  Psicanalista, membro da APPOA, Doutora em Filosofia (PUCRS).

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr é Psicanalista, membro da APPOA e Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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