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16 de junho de 2021
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17:28

Em tempos de redobrar a higiene, feirantes de Porto Alegre enfrentam rotina de trabalho sem banheiros

Por
Andressa Marques
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Feirantes da Feira Modelo, no Largo Zumbi dos Palmares, relatam a rotina de trabalho sem fácil acesso a banheiros. Foto: Luiza Castro/Sul21
Feirantes da Feira Modelo, no Largo Zumbi dos Palmares, relatam a rotina de trabalho sem fácil acesso a banheiros. Foto: Luiza Castro/Sul21

No dia 24 de Maio, o vereador Matheus Gomes (PSOL) e Pierre Tazzo, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS) e militante do coletivo Afronte, realizaram um pedido de providência à Prefeitura de Porto Alegre para que seja regulamentada a instalação de sanitários nas feiras de Porto Alegre.

Uma lei sancionada pelo então prefeito João Verle, em janeiro de 2003, determina que as feiras destinadas à comercialização de produtos hortigranjeiros ou agro-industriais, as feiras de produtos artesanais e outras devidamente licenciadas que se realizem na Capital devem ser dotadas de instalações sanitárias destinadas ao uso dos feirantes e de seus frequentadores. A normativa também orienta que esses banheiros estejam em um raio máximo de 100 metros da feira.

Embora a lei já tenha mais de 18 anos, Matheus e Pierre contam que, em conversas com os feirantes durante a campanha eleitoral do ano passado, perceberam que essa era uma das reivindicações mais frequentes. “A gente teve relatos de que prefeitos, vereadores e deputados fizeram promessas nesse sentido, mas nenhuma delas foi alcançada”, afirma Pierre.

Oscar Pellicioli, chefe da Coordenação de Fomento de Atividades (CFA) da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SMDE), argumenta que o Município não tem atribuição de disponibilizar sanitários, mas que deve agir para facilitar o uso desses equipamentos através da comissão de feira e da relação com os comércios locais. “Nós temos três banheiros públicos no espaço das feiras que ficam dentro do Parque Farroupilha e estes satisfazem as necessidades tanto dos feirantes quanto dos frequentadores”, cita como exemplo. Pellicioli afirma que, para que fossem disponibilizados banheiros públicos em todas as feiras, teriam que ser locados e os feirantes arcariam com os custos, mas que eles já demonstraram não ter condições.

Jorge Gomes, Presidente da Associação de Feirantes. Foto: Luiza Castro/Sul21

Jorge Gomes é presidente da Associação de Feirantes e trabalha na feira da Epatur desde 1992. Ele conta que o único modo de usar o banheiro ao longo de dias inteiros de trabalho é com a parceria de lancherias e bares das proximidades. “A gente consome e automaticamente usamos os banheiros também”, diz. Ele afirma que seria melhor se houvesse banheiros disponibilizados diretamente para os feirantes, mas que isso teria um custo alto para os trabalhadores. “Hoje se torna inviável porque a maioria dos feirantes são pequenos produtores rurais, então a nossa margem é cada vez mais curta”, explica.

Jorge menciona que os feirantes já pagam pedágio e combustível para o deslocamento até a feira, o que tornaria quase inviável arcar com novos custos. Ele relata que os insumos agrícolas dispararam nos últimos anos e que para o produtor a margem de lucro fica cada vez menor. “Nós sofremos muito com as intempéries. Quando está perto de colher, dá uma chuvarada, ou cai uma geada ou o sol queima. É bem complicado, mas nós somos persistentes.”

A lei, de fato, deixa brechas sobre o custeio desses equipamentos pelo poder público e acaba colocando os feirantes em uma situação delicada, entre a necessidade física e a dificuldade de arcar com mais um custo para seguir trabalhando. A legislação de 2003 diz que não é obrigatória a construção de sanitários em locais onde houver equipamentos públicos, como parques, e que o Município poderá promover acordos entre os feirantes e os estabelecimentos privados que possuam sanitários nas proximidades da feira para uso dos respectivos equipamentos pelos trabalhadores e frequentadores.

Matheus e Pierre afirmam que, conforme os relatos colhidos com os trabalhadores, nunca houve a disponibilização de sanitários pelo poder público. Eles tomaram conhecimento apenas de algumas iniciativas auto organizadas pelos trabalhadores para usarem os sanitários das praças, quando disponíveis, como no caso do Parque da Redenção. No entanto, com o aumento da pobreza, mesmo esses locais teriam acabado sendo ocupados por pessoas em situação de vulnerabilidade social.

A falta de higiene é outro problema apontado que inviabilizaria o uso desses espaços pelos feirantes, que lidam diretamente com produtos alimentares. “É extremamente importante ter os banheiros para que os trabalhadores e frequentadores das feiras possam ter o mínimo de segurança sanitária, ainda mais em uma pandemia, afinal, são feiras que vendem produtos in natura”, defende Pierre. “A gente vive num período onde a insegurança alimentar e a fome se aprofundam, então o trabalho dos feirantes é importante para a garantia da segurança e da soberania alimentar. O que pedimos é algo que deveria ser básico, que é o direito humano das pessoas fazerem suas necessidades”, completa.

Thamirys, feirante há seis anos. Foto: Luiza Castro/Sul21

Thamirys trabalha na feira há seis anos e explica que a necessidade de deslocamentos mais longos é outro problema enfrentado diante da falta de sanitários próximos. “Temos que nos deslocar e isso é tempo perdido. Além disso, alguns bares e restaurantes têm higienização, mas outros não e isso prejudica ainda mais as mulheres durante o ciclo menstrual”, diz.

“Muitas vezes, esses locais não têm condições de receber um grande número de trabalhadores. Assim como pessoas diabéticas, com deficiências físicas, mulheres, crianças e idosos que necessitam de um lugar higienizado são os principais afetados pela inexistência desses banheiros”, diz Pierre ao destacar que uma política pública, baseada em lei já existente, precisa atender essa demanda.

Raúl Martins da Silva, feirante há 17 anos. Foto: Luiza Castro/Sul21

Raúl Martins da Silva, feirante há 17 anos, relata outras dificuldades na busca por sanitários durante o horário de trabalho. “A nossa sorte é que o pessoal das lancherias deixa a gente usar, mas é complicado porque tem que incomodar a pessoa toda hora e atrapalha o movimento deles também. Tem clientes que perguntam se temos banheiros, mas respondemos que não e indicamos aonde vamos”, diz.

“A gente conta com os comerciantes parceiros de algumas lancherias. Tem feiras nos bairros que os clientes nos cedem os banheiros de casa, mas tem colegas que são diabéticos e urinam mais e isso dificulta a situação deles”, detalha Fabiana, feirante há 17 anos, sobre os percalços vividos pelos trabalhadores.

Fabiana, feirante há 17 anos. Foto: Luiza Castro/Sul21

O pedido de providência feito pelo vereador foi enviado à Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (SMIC) no dia 25 de maio. Segundo Matheus, até o momento a Prefeitura não se posicionou sobre o tema. Enquanto isso, uma reunião está sendo planejada com feirantes e entidades competentes para tratar da demanda e mobilizar a comunidade em torno do assunto. “A Lei 9079 não foi aplicada como deveria, temos quase duas décadas que essa lei não é cumprida”, afirma Matheus. “Esses trabalhadores e trabalhadoras são essenciais para a cidade, sendo inclusive parte daqueles e daquelas que nunca pararam de trabalhar durante uma pandemia mundial, trabalhando de sete a oito horas por dia de pé, desde a saída de casa, o carregamento dos alimentos, passando pela montagem das bancas, a venda de alimentos, a desmontagem das bancas, a limpeza do local e a volta para casa”, afirma no pedido de providência.

Matheus destaca ainda a necessidade de valorizar o trabalho dos feirantes, especialmente diante do alto preço dos alimentos e do empobrecimento da população.  “Nós estamos com o aumento contínuo do valor da cesta básica em Porto Alegre. Hoje, para nós termos uma condição de segurança alimentar nas residências nas comunidades é uma luta muito grande, com a diminuição da renda e a pobreza na Capital, que atingiu mais de 130 mil pessoas. Não há política da Prefeitura para resolver essa situação. Então, as feiras devem ser fortalecidas para tornar acessível para a população da nossa cidade alimentos in natura. E para isso, um espaço que tenha boas condições de trabalho ajuda e fortalece essa ponta, principalmente em meio à pandemia”.

*Andressa Marques é repórter do Programa de Diversidade nas Redações realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative


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