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10 de junho de 2017
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10:30

A voz de madrugada profunda de Nora Ney

Por
Sul 21
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zeca azevedo

“MORREU OUVINDO NORA NEY CANTAR. O bar estava quase fechado, a noite morna e quieta quando a estranha moça apareceu. Os cabelos desarrumados, os olhos magros e tristes: um vinco de amargura na boca. Comprou duas fichas pondo-as no toca-discos, ocupou uma das mesas e pediu um guaraná. O ambiente logo se encheu de lânguidos queixumes, ao som da melodia predileta: ‘Ninguém me ama, ninguém me quer…’ A voz de Nora Ney era um lamento longo que a desditosa jovem escolhera para moldurar sua tragédia. O tóxico diluiu-se no copo de refrigerante e, depois de alguns goles, começou a agonia da mente, da mistura com a música dolente, meio mórbida, do samba-canção. As duas fichas no toca-discos visavam a prolongar a melodia, até que a última gota de vida pingasse dos lábios da infeliz. O pessoal do bar se alvoroçou, pediu ambulância, mas tudo inútil. Quando Nora acabou de cantar, a desventurada suicida dormia profundamente para não mais acordar. Era uma bela jovem, de vinte e quatro anos presumíveis.”

O texto acima é de autoria de Celso Matos e foi publicado originalmente na edição de 23 de maio de 1953 da Revista do Rádio. Eu o encontrei no excelente livro Cantores do Rádio – A Trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico de seu tempo, escrito por Alcir Lenharo e publicado em 1995 pela Editora da UNICAMP. O livro forneceu a maior parte das informações que coletei para produzir este texto sobre Nora Ney.

Dona de voz de madrugada profunda, Nora Ney foi o equivalente brasileiro dos cantores de blues, que cantam para almas estilhaçadas pela dor da solidão e do fracasso existencial. O repertório de Nora foi além dos sambas-canções de fossa abissal, mas foi nesse escaninho que ela brilhou como nenhuma outra cantora brasileira. A autocomiseração dos derrotados pela vida encontrou o veículo definitivo na voz da mulher nascida no Rio de Janeiro em 1922.

Iracema de Sousa Ferreira era uma menina levada, que gostava de ficar solta pela rua. Para segurar a filha em casa, Dácio, o pai de Iracema, deu a ela um violão. A inclinação natural para a música aflorou imediatamente, fato que fez com que o pai da jovem pensasse que, a partir dali, ela ficaria mais dócil. Não foi o que aconteceu. Iracema continuava a zanzar pelas ruas do bairro de Olaria, no qual nasceu. Segundo a própria cantora, o pai batia nela diariamente, “de palmadas, até urinar na calcinha”. Nada que detivesse o espírito indomável de Iracema.

Adolescente, Iracema fazia as primeiras incursões pelo mundo da música cantando em programas das rádios Cruzeiro do Sul e Mayrink Veiga. O repertório da jovem Iracema era dominado pelas canções norte-americanas. A cantora acreditava que o modo carregado como pronunciava os ‘erres’ a impedia de cantar em português. O aparecimento em cena de cantores brasileiros com influência da música norte-americana fez com que Iracema encontrasse o seu nicho musical. A jovem conheceu pessoalmente Dick Farney e Lúcio Alves e passou a cantar informalmente com os dois em eventos sociais. Esse contato seria fundamental na vida da futura Nora Ney.

Como era comum na primeira metade do século XX, Iracema foi criada para ser esposa e mãe. Segundo depoimento da cantora, registrado no já citado livro de Alcir Lenhado, “[O] casamento era a nossa única saída, nossa realização pessoal, nosso sonho”. Ela casou bem jovem, com um homem seis anos mais velho que ela e que pertencia ao Partido Comunista. Ao participar da militância do velho partidão, ainda que de forma tímida, Iracema adquiriu consciência política e viveu sob a ameaça da perseguição da polícia de Getúlio Vargas. A cantora teve dois filhos desse primeiro casamento, Vera Lúcia e Hélio. O marido comunista de Iracema era também vaidoso, machista, farrista e alcoolista. Ele batia em Iracema e torrava o dinheiro que ganhava com bebidas e com outras mulheres.

A porta de saída desse pesadelo e do início de uma nova vida, na qual realizaria seus sonhos de menina, abriu-se para Iracema quando ela ficou íntima do casal Dick Farney e Cibele. Na residência deste casal, aos sábados, rolavam as reuniões do fã-clube Sinatra-Farney, que contavam com as presenças de talentos como Johnny Alf, João Donato, Paulo Moura e até de Lúcio Alves, que publicamente era apresentado como rival de Dick Farney, mas que era grande amigo do cantor e pianista de nome americanizado. Nessas reuniões, Iracema encantava a todos com a sua voz personalíssima e com o seu jeito de cantar quase falado, sem vibrato, direto como uma flecha que sempre acerta seu alvo. Lúcio Alves ficou impressionado e ofereceu à cantora a oportunidade de participar do programa Fantasias Musicais da rádio Tupi.

Talhado para as emissões noturnas da rádio Tupi, o timbre grave e dramático de contralto da cantora era único no cenário musical brasileiro daquele tempo. Haroldo Barbosa, que tinha um programa de sucesso na Tupi, convenceu a jovem cantora a abandonar as canções norte-americanas e a dedicar-se ao repertório de compositores brasileiros, em especial aos sambas “de andamento lento, melodia romântica e letra sentimental”, definição de samba-canção formulada pelo pesquisador e compositor Nei Lopes. Iracema apresentava-se na rádio como Nora May, mas a carta de Nini Xavier, fã que grafou equivocadamente o nome da cantora como Nora Ney, foi decisiva para a adoção do nome artístico definitivo.

Em 1952, Nora Ney fazia muito sucesso como crooner nas boates Meia-Noite e Midnight. A intérprete começou a atrair a atenção da imprensa e logo recebeu convite da gravadora Continental para gravar o primeiro disco. Publicado em maio de 1952, o 78 rotações que marcou a estreia fonográfica de Nora Ney destaca a canção de ninar marmanjos “Menino Grande”, co-escrita por Antonio Maria, jornalista, poeta e letrista pernambucano radicado no Rio de Janeiro, com quem a intérprete tinha especial identificação. “Menino Grande” conquistou fãs por todo o país, entre eles Getúlio Vargas, que a jovem Nora Ney temia em seu período de militância comunista. O segundo bolachão de goma-laca da cantora, lançado em agosto daquele mesmo ano, a transformou em uma estrela. No lado B desse disco está “Ninguém me Ama”, desolador samba-canção escrito por Fernando Lobo e Antônio Maria que virou a trilha sonora favorita dos corações solitários do Brasil, inclusive de alguns suicidas (como vimos no primeiro parágrafo deste artigo). O 78 rotações com “Ninguém me Ama” foi o primeiro disco brasileiro a receber um Disco de Ouro por conta do extraordinário sucesso de vendas. Na sequência, vieram “Bar da Noite” (de Bidú Reis e Haroldo Barbosa), “De Cigarro em Cigarro” (de Luis Bonfá) e “Solidão” (de Dolores Duran) e muitas outras baladas de cortar os pulsos que se tornaram marcos na trajetória artística de Nora Ney e na história da música popular brasileira. Em 1953, Nora Ney recebeu o prestigiadíssimo título de “Rainha do Rádio”, indicação clara de que se tornara uma grande estrela da música.

Quanto mais espaço Nora Ney conquistava no competitivo cenário da música brasileira dos anos cinquenta, mais tinha que lidar com a violência do marido, Cleido, que fazia de tudo para controlá-la. Na madrugada — sempre ela — do dia 28 para o dia 29 de agosto de 1952, Nora Ney foi encontrada em coma em seu apartamento por vizinhos depois de ser brutalmente espancada pelo marido. Segundo a cantora contou à polícia, Cleido fez com que ela ingerisse à força o conteúdo de três frascos de entorpecentes. O episódio foi explorado à exaustão pela imprensa da época, fato que acabou tornando o nome de Nora Ney conhecido do grande público, ainda que de forma indesejável.

Para escapar do marido violento, Nora Ney aceitou retirar todas as acusações contra ele na justiça desde que ele lhe concedesse o desquite, o que aconteceu em 1953. A cantora estava, então, pronta para o estrelato. O sucesso profissional de Nora Ney foi acompanhado pelo sucesso no amor quando Nora assumiu o relacionamento com o cantor Jorge Goulart, com quem viveu por mais de cinquenta anos.

Abro parêntese para um fato curioso na carreira de Nora Ney. Em 1955, em um lance francamente oportunista, a gravadora Continental decidiu fazer um registro em 78 rotações de uma canção norte-americana que estava estourada no exterior, “Rock Around the Clock”, gravada por Bill Haley & His Comets e lançada no filme Blackboard Jungle, estrelado por Glenn Ford (no Brasil, o filme recebeu o título de “Sementes de Violência”). Dentre os contratados da gravadora, Nora Ney era a que tinha maior facilidade para cantar em inglês. Em outubro daquele ano, acompanhada do grupo Sexteto Continental, Nora Ney registrou aquela que seria a primeira gravação de rock’n’roll feita no país, “Ronda das Horas”. Nora não tinha nenhuma identificação com o rock’n’roll, fato que ficou evidente quando ela lançou em julho de 1961 o samba irônico “Cansei de rock”, cuja letra condena o ritmo norte-americano bastante popular entre os jovens do mundo todo: “Eu ligo o rádio e tome rock/Vou a boate e tome rock/Vejo filme italiano/Da Lollo ou da Mangano/E tome rock e tome rock…” Embora o registro de “Rock Around the Clock” seja um estranho no ninho da fonografia de Nora Ney, tem grande valor histórico e não pode ser desconsiderado. Fecha parêntese.

A afinidade entre Nora Ney e Jorge Goulart era também política: os dois eram ligados ao Partido Comunista. Em 1958, em tentativa de melhorar as relações entre o Brasil e os países comunistas, o casal de cantores realizou turnê pela União Soviética e pela China, na qual se apresentou para milhares de pessoas (a caravana de artistas brasileiros que participou dessa excursão incluiu também o Conjunto Farroupilha, Dolores Duran e Paulo Moura, entre outros). Nora e Jorge logo seriam conhecidos por sua militância e descritos pejorativamente como “os vermelhos” por figuras públicas do Brasil. Em 1964, com o golpe militar, Jorge Goulart e Nora Ney perderam os empregos na Rádio Nacional e enfrentaram um período em que as portas do show business brasileiro eram fechadas nas caras deles sem cerimônia. Para escapar da perseguição política e da falta de alternativas profissionais, Nora e Jorge optaram por fazer constantes turnês para o exterior, em especial pelos países comunistas, em companhia de outros artistas como Rildo Hora e Rosinha de Valença.

Em 1971, depois de muito tempo passado no exterior, Nora Ney e Jorge Goulart voltaram de vez ao Brasil para retomar suas carreiras. Em 1972, a Som Livre lançou o LP Tire seu Sorriso do Caminho, que Eu Quero Passar com a Minha Dor, que trouxe de volta a voz inigualável de Nora Ney à cena fonográfica do país. No texto de contracapa do disco, Vinícius de Moraes se derrama de amores pela cantora. Sobre a voz de Nora Ney, Vinícius diz: “[É] suja de vida e de mundo, com fraseado bem escandido, cheio de misteriosas pausas, onde parecem se esconder todas as mágoas, todos os dilemas, todas as retaliações, todas as distâncias, todas as esperar, todas as frustrações e todos os êxtases a que está sujeita uma mulher que se dá por inteiro ao amor”.

O álbum da Som Livre é um dos dois títulos da discografia original de Nora Ney que está à disposição dos usuários do Spotify; o outro é Jubileu de Prata, LP de 1977 de Nora e Jorge Goulart que comemora vinte e cinco anos de união amorosa e profissional do casal. Os outros títulos oferecidos pelo Spotify são coletâneas. Na era do CD, a discografia de Nora Ney foi maltratada pelas gravadoras, em especial pela multinacional Warner, que detém os direitos de publicação dos fonogramas da extinta Continental, companhia pela qual Nora Ney publicou suas gravações mais famosas. Dóris Monteiro, cantora contemporânea de Nora Ney, teve muitos de seus álbuns clássicos relançados em CD, mas os discos de 10 e de 12 polegadas originais da intérprete de “Ninguém me Ama” foram solenemente ignorados, exceto pelos títulos da Som Livre já mencionados (mesmo esses foram editados em CD sem as capas originais). Poucas compilações de Nora Ney foram lançadas no mercado, todas com capas feias e com escassas informações sobre a cantora e sobre as gravações. Os fãs de música brasileira foram privados de adquirir em CD o dez polegadas de estreia da cantora, chamado “Canta Nora Ney” e lançado em 1955, um dos mais importantes itens da história da fonografia no Brasil (esse disco inclui outra signature song de Nora, “Se Eu Morresse Amanhã (de Manhã)”, escrita pelo compositor de estimação dela, Antônio Maria). O único recurso para o colecionador é procurar em sites de leilões por edições originais em vinil e em goma-laca. Para quem apenas deseja ouvir a discografia de Nora Ney de forma extensa, o YouTube é a melhor opção.

Em sua fase crepuscular, Nora Ney seguiu lançando gravações muito bonitas que permanecem desconhecidas do grande público, sobretudo dos jovens. Os discos da intérprete não figuram nas listas de “melhores álbuns de música brasileira de todos os tempos” que volta e meia empesteiam revistas, jornais e redes sociais, fato que atribuo não só ao desconhecimento do legado artístico e pessoal da cantora, mas também à supervalorização da música brasileira pós-bossa nova, que jogou para debaixo do tapete da História quase toda a produção fonográfica do país da primeira metade do século XX.

Em setembro de 1992, Nora Ney sofreu um AVC que interrompeu sua carreira. A cantora maior da fossa faleceu no dia 28 de outubro de 2003, aos 82 anos de idade. A repercussão da morte de Nora Ney não foi proporcional ao talento, à originalidade e à importância da intérprete. O Brasil precisa olhar de novo para dentro de si e, sob o manto da noite, redescobrir a voz catártica de Nora Ney.

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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