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1 de abril de 2017
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10:30

Precisamos resgatar a história e a discografia do Conjunto Farroupilha

Por
Sul 21
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zeca azevedo

É difícil acreditar que um estado que se ufana de sua cultura e de sua história como o Rio Grande do Sul tenha feito tão poucos esforços para recuperar a trajetória artística e a discografia daquele que foi, certamente, seu conjunto vocal mais significativo. O Conjunto Farroupilha foi um dos primeiros grupos a projetar para além das fronteiras gaúchas a cultura regional e certamente foi o primeiro a propor, de forma elegante e consequente, a modernização da música folclórica local, misturando-a com outros gêneros musicais brasileiros e internacionais. De 1948 a 1971, os integrantes do Conjunto Farroupilha foram os verdadeiros embaixadores da música do Rio Grande do Sul no Brasil e no mundo.

É difícil acreditar que um estado que se ufana de sua cultura e de sua história como o Rio Grande do Sul tenha feito tão poucos esforços para recuperar a trajetória artística e a discografia daquele que foi, certamente, seu conjunto vocal mais significativo. O Conjunto Farroupilha foi um dos primeiros grupos a projetar para além das fronteiras gaúchas a cultura regional e certamente foi o primeiro a propor, de forma elegante e consequente, a modernização da música folclórica local, misturando-a com outros gêneros musicais brasileiros e internacionais. De 1948 a 1971, os integrantes do Conjunto Farroupilha foram os verdadeiros embaixadores da música do Rio Grande do Sul no Brasil e no mundo.

A despeito de sua inquestionável importância histórica, o Conjunto Farroupilha é reiteradamente negligenciado pelas iniciativas públicas e privadas de resgate da cultura gaúcha. Em breve testemunharemos o lançamento do DVD Alma Farroupilha, que homenageia, de forma pontual e tardia, a vida e a obra do líder do Conjunto Farroupilha, o maestro Tasso Bangel, que neste ano completa seu octogésimo sexto aniversário. No DVD, gravado ao vivo no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, no dia 19 de maio de 2016, Tasso Bangel é acompanhado pelo grupo instrumental Camerata Pampeana, com o qual o maestro tem desenvolvido premiada mistura de música regional com erudita. O Conjunto Farroupilha estará no DVD por meio de algumas histórias e de canções tradicionais como “Negrinho do Pastoreio” e “Gauchinha Bem Querer”. O DVD Alma Farroupilha será muito bem-vindo, pois Tasso Bangel, instrumentista, arranjador, cantor e compositor (popular e erudito), merece ganhar coroa de louros imarcescíveis por sua notável trajetória artística e pessoal, mas essa iniciativa isolada não é suficiente para recuperar integralmente a história e o legado do Conjunto Farroupilha.

O acervo fonográfico do Conjunto Farroupilha foi minimamente resgatado na era do CD, em esforço frouxo e assistemático. Da discografia oficial do grupo, só o 10 polegadas De Norte a Sul e os 12 polegadas Gaúchos em Hi-Fi e Conjunto Farroupilha 35 foram publicados em CD, além de uma coletânea genérica, sem identidade visual própria e sem informações completas sobre os fonogramas, chamada Presença do Conjunto Farroupilha, que reúne vinte e quatro faixas lançadas nos anos 50 e 60 pela gravadora Columbia. Esses CDs estão fora de catálogo há muitos anos. Os 78 rotações, compactos, EPs e LPs originais do grupo que sobreviveram às mãos de usuários descuidados são raros e, por isso, são muito disputados por colecionadores brasileiros e estrangeiros. Durante alguns anos, blogs de fãs de música brasileira antiga e rara ofereceram versões digitais da discografia do Conjunto Farroupilha para download gratuito, mas esses blogs foram tirados do ar sob a alegação de violação de diretos autorais. Há pouca coisa do grupo para ouvir em streaming: o Spotify, por exemplo, disponibiliza uma compilação de canções do folclore gaúcho gravadas de 1953 a 1956 e um álbum chamado A Bossa do Conjunto Farroupilha, que é na verdade o LP Os Farroupilhas, de 1963, com título e arte de capa adulterados. Infelizmente, a qualidade de som do álbum oferecido pelo Spotify deixa a desejar. Pelo YouTube é possível ouvir vários LPs do conjunto vocal na íntegra, como o lindíssimo Gaúchos na Cidade, de 1958, mas a fidelidade sonora também é insatisfatória.

A bibliografia sobre o Conjunto Farroupilha também é escassa: podemos encontrar informações preciosas em alguns livros de autores gaúchos e brasileiros, mas não existe (que eu saiba) volume exclusivamente dedicado à música e a história de tão destacado conjunto vocal. Na internet, dados sobre o Conjunto Farroupilha estão espalhados por muitos endereços eletrônicos, mas esses dados são confusos e, às vezes, contradizem uns aos outros. A discografia do grupo, por exemplo, varia de site para site. Nem mesmo as datas de falecimento de integrantes do Conjunto Farroupilha podem ser encontradas na internet ou em livros.

O Conjunto Farroupilha foi de tal forma marcante que o principal folclorista gaúcho, Paixão Côrtes, no livro Aspectos da Música e Fonografia Gaúchas, de 1984, chamou de “Estilo Conjunto Farroupilha” um dos três principais estilos de música do Rio Grande do Sul. Essa vertente da música regional foi esboçada pelo legendário grupo vocal Quitandinha Serenaders nos anos 40, mas foi plenamente desenvolvida pelo Conjunto Farroupilha. Segundo Paixão Côrtes, o “Estilo Conjunto Farroupilha” caracteriza-se pela fusão da música de extração folclórica com elementos da música de outros rincões, ou seja, é a um só tempo regionalista e universal. Paixão Côrtes afirma no livro Aspectos da Música e Fonografia Gaúchas que os seguidores do “Estilo Conjunto Farroupilha” foram os grupos Os Sinuelos, Os Gaudérios e Os Araganos.

O vínculo do Conjunto Farroupilha com a infante mídia eletrônica brasileira foi muito intenso. O grupo surgiu na rádio Farroupilha de Porto Alegre em 1948, em perfeita sincronia com o surgimento do Movimento Tradicionalista. Nessa época, a Farroupilha era a emissora local de maior sucesso e tinha grande e variado cast de cantores e instrumentistas que interpretavam ao vivo as músicas dos diversos programas da rádio. Tasso Bangel, que em 1946 viera ainda adolescente da cidade de Taquara para Porto Alegre para estudar música no Instituto de Artes da UFRGS, arranjou emprego como acordeonista na orquestra da rádio Farroupilha em 1947. Iná Vital de Castro, principal cantora da emissora, não se sentia à vontade como solista e tomou a iniciativa de formar um conjunto vocal com o irmão, Danilo. Por indicação do diretor musical da rádio, Salvador Campanella, Iná e Danilo convidaram Tasso para integrar o grupo como cantor e arranjador. Danilo convocou a esposa dele, Estrela D’Alva Lopes de Castro, para unir-se à trupe. Para completar o quinteto vocal, Estrela D’Alva chamou o primo dela, Alfeu de Azevedo, que deixou o grupo na segunda metade dos anos 50. No lugar de Alfeu, entrou o paulista Sidney Moraes (que, nos anos 60, formou o conjunto Os Três Moraes com a irmã Jane e o irmão Roberto). A experiência de Tasso e Iná no Conjunto Farroupilha transformou-se em história de amor: os dois juntaram os trapinhos após três anos de convivência por conta das atividades do grupo vocal.

Os belos arranjos criados por Tasso Bangel para o Conjunto Farroupilha, que interpretava canções nacionais e internacionais na rádio Farroupilha, fizeram sucesso imediato e garantiram ao músico o posto de regente da emissora até o ano de 1956. No dia 18 de setembro de 1950, o Conjunto Farroupilha destacou-se nacionalmente ao representar a cultura rio-grandense no lançamento da primeira emissora televisiva do país, a TV Tupi de São Paulo. O Conjunto Farroupilha estreou em disco em 1953 com o long play de 10 polegadas Gaúcho, lançado pelo selo Rádio, do Rio de Janeiro. Segundo Tasso Bangel, esse foi o quarto LP fabricado no Brasil. O primeiro disco do Conjunto Farroupilha é totalmente dedicado às canções recolhidas do folclore pelo pioneiro Centro de Tradições Gaúchas 35, fundado por Paixão Côrtes e por estudantes do colégio Júlio de Castilhos em 1948. O texto de contracapa de Gaúcho informa que o LP reúne “os mais diferentes ritmos sulistas numa roupagem citadina” e garante que o disco “marcará uma nova etapa na valorização da música popular brasileira”.

Em 1956, os integrantes do conjunto saíram de mala e cuia de Porto Alegre para tentar a sorte nos grandes centros produtores de cultura do país. O grupo foi contratado pela rádio e TV Tupi do Rio de Janeiro e pela rádio e TV Record de São Paulo. Em 1957, a gravadora Columbia publicou Gaúchos em Hi-Fi, primeiro LP de 12 polegadas do Conjunto Farroupilha. O texto de contracapa do LP, escrito pelo folclorista e compositor Barbosa Lessa, afirma: “Pode o Conjunto Farroupilha orgulhar-se de ter sido o pioneiro da difusão da música do Rio Grande, ao ter dado às cantigas gauchescas a roupagem indispensável para que elas fossem aceitas nos centros de apurados gostos artísticos”. Esse trecho pode induzir os leitores a pensar que a música tradicional gaúcha não era feita para pessoas com “apurado gosto artístico”, mas não é esse o sentido pretendido pelo autor do texto. Ao discorrer sobre a telúrica toada “Noites Gaúchas”, faixa de abertura de Gaúchos em Hi-Fi, Barbosa Lessa destaca as qualidades da música regional: “Para se entender a música do Rio Grande, tem-se que entender, antes de mais nada, que ela é uma reza. Que é manifestação pura de uma religião espontânea que o gaúcho aprendeu da natureza ao mergulhar na planura”. O amor à paisagem natural do interior do Rio Grande do Sul raramente encontrou expressão musical mais bela que a gravação de “Noites Gaúchas” do Conjunto Farroupilha.

Quero abrir parênteses para fazer rápida especulação sobre o notório plágio da melodia da canção folclórica “Prenda Minha” cometido por Miles Davis em uma faixa do LP Quiet Nights, de 1963. O álbum de Miles foi tentativa do músico de surfar na crista da onda da bossa nova que arrebatou os corações dos jazzistas norte-americanos no início dos anos 60. É aceitável supor que Miles e Gil Evans (produtor de Quiet Nights) tenham pedido à gravadora Columbia (que tinha o trompetista de jazz sob contrato) uma seleção de discos de música brasileira para realizar pesquisa de repertório para o “álbum de bossa nova” que pretendiam fazer. Entre os discos que a gravadora teria separado para Miles Davis e Gil Evans estaria o LP Gaúchos em Hi-Fi, do Conjunto Farroupilha, editado no Brasil pela mesma Columbia Records. É provável que Miles e Gil Evans tenham conhecido a melodia de “Prenda Minha” pela gravação incluída em Gaúchos em Hi-Fi. Não tenho como provar que essa teoria está correta, mas ela é plausível.

Ainda nos anos 50, o Conjunto Farroupilha levou a música e a dança do Rio Grande do Sul para pagos distantes como União Soviética, China e Alemanha, em profícua parceria com a companhia aérea VARIG. Em 1960, foi lançado pela Columbia o álbum que sumariza a proposta estética do Conjunto Farroupilha e ilustra como nenhum outro a dicotomia própria da cultura gaúcha: Os Farroupilhas em Hi-Fi. O lado A do LP de doze polegadas reúne canções regionalistas compostas por Luís Cosme, Barbosa Lessa e Paixão Côrtes. O lado B apresenta canções de corte urbano escritas por Dorival Caymmi, Jorge Guinle, Tito Madi e Tom Jobim.  A capa do LP é a mais completa tradução da divisão entre campo e cidade característica da cultura rio-grandense, pois exibe fotografia em que os integrantes do grupo aparecem com trajes típicos gaúchos à esquerda, enquanto envergam black-ties e sofisticados vestidos longos à direita. Os integrantes do Conjunto Farroupilha olham para seus duplos de modo debochado e desafiador, como se os dois grupos pertencessem a esferas sociais completamente distintas e não compartilhassem nenhum traço de identidade.

Para aumentar o senso de separação e até de oposição entre campo e cidade, o texto de contracapa do LP Os Farroupilhas em Hi-Fi também é bipartido. O primeiro texto, assinado pelo jornalista B. Madruga Duarte, colaborador da revista Radiolândia, é relativo ao lado “tradicional” do LP e diz: “A música do Rio Grande do Sul possui características especialíssimas. Daí a razão de muito poucos artistas conseguirem êxito com suas gravações típicas. Falta-lhes, vias de regra, uma autenticidade com características nacionais… Ao Conjunto Farroupilha, porém, não acontece isso. Eles conhecem o gosto do público e adaptam, sem deturpar, com modalidades especiais, as músicas gauchescas”. O segundo texto, redigido pelo jornalista e apresentador de programas de rádio Roberto-Côrte Real, afirma: “A outra face deste LP apresenta o Conjunto Farroupilha numa seleção de autênticos sucessos de consagrados autores brasileiros, apresentados com a tão decantada  atualmente bossa nova”. O momento de síntese cultural do disco está na segunda faixa do lado B, “Nunca”, clássico da dor de cotovelo escrito por Lupicínio Rodrigues, compositor que personificou como nenhum outro a passionalidade dos gaúchos, sejam eles do campo ou da cidade.

Ainda em 1960 o Conjunto Farroupilha editou o LP Os Farroupilhas na TV, cujo destaque é a primeira gravação do clássico “Samba de Uma Nota Só”, de Tom Jobim. Em 1963, o grupo fundou seu próprio selo fonográfico, “Farroupilha”, que publicou não só gravações do conjunto vocal gaúcho, mas também discos de artistas como Leny Eversong, Jongo Trio, Jane Moraes e Flora Purim.

O Conjunto Farroupilha acabou pela primeira vez em 1971.  Em 1983, o grupo se reuniu para realizar shows e para registrar o LP Conjunto Farroupilha 35 pela gravadora RGE, mas acabou de vez antes do final daquela década. Depois disso, o maestro Tasso Bangel dedicou-se a projetos musicais de cunho social e à composição de peças eruditas como a “Sinfonia nº 1 em Sol Maior – Farroupilha” e a ópera “Um Romance Gaúcho”, além de dirigir o conjunto vocal Tom da Terra, que lançou belo CD em 1994. Hoje, Tasso Bangel permanece em atividade com a Camerata Pampeana, transmitindo a jovens músicos todo o conhecimento que acumulou em décadas de atividade, com e sem o Conjunto Farroupilha. Seria ótimo se alguma universidade do Rio Grande do Sul, em especial a UFRGS, concedesse a Tasso Bangel o título de doutor honoris causa pela valiosíssima contribuição que deu para o desenvolvimento e para a difusão da música regional e brasileira, popular e erudita. Quanto às atividades musicais dos outros integrantes do Conjunto Farroupilha depois do fim do grupo, infelizmente não consegui encontrar nenhuma informação sobre elas em livros e na internet.

A discografia do Conjunto Farroupilha é artigo de primeira necessidade e precisa ser relançada integralmente em vários formatos de áudio, em edições caprichadas, com restauração esmerada do som e das capas dos discos. Não se trata somente de resgate da memória do Rio Grande do Sul porque a música do Conjunto Farroupilha permanece encantadora e capaz de cativar novos ouvintes pelo mundo afora. Além disso, a história do Conjunto Farroupilha precisa ser contada em detalhes em livros e o legado artístico do grupo deve ser analisado cuidadosamente e difundido tanto no ambiente acadêmico quanto nos veículos de comunicação de massa. Só assim faremos justiça ao conjunto vocal que (de)cantou como nenhum outro a música do Rio Grande do Sul.

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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