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17 de dezembro de 2016
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09:30

Pelas crianças. Ou elas por nós.

Por
Sul 21
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cuba-criancasPor Antonio Claret

Os nomes vêm à memória. Alguns já bem conhecidos, outros nem tanto. São crianças que, com seus pais e mães, ou com um deles, vão para as reuniões do Movimento e, na Ciranda, fazem de tudo; um espaço onde se aprende muito, brincando. Joaquim e João Paulo estão bem crescidinhos. Dandara e Amanda são quase mocinhas. Quanta transformação em tão pouco tempo! João aproveita a presença do Pai, que se faz menino com ele, com a Mãe em viagem à França. Marina e Marília, que são gêmeas, mantêm um pé no Nordeste e outro no Sul do Brasil. Davi, novinho, fica na Ciranda, mas, quando se cansa dela, já sabe que é só chorar e ganha a presença do pai ou da mãe.  Então ele corre daqui pra ali, atravessa a reunião, espalha biscoitinhos pelo chão e até cata, meio sem vontade, quando alguém lhe chama a atenção. Embora tão pequeno, sabe que o choro tem muita força. Inaiá, nome popular de uma palmeira, o mesmo que Indaiá, ainda não tem dois meses. E Maria vai nascer em abril, na Amazônia brasileira, mas já participa ali, com a mãe. Entre as crianças, não há nenhum coleguinha chamado Fidel. Mas o nome não lhes é estranho. Nalgum momento, desde a gestação, ele está presente na vida delas. Uma militante conta do seu sonho com Fidel, quase um pesadelo. Faz lembrar a música Luz da América: ‘América Latina tem uma beleza, que não foi a natureza só que desenhou, foi a força da guerrilha nos braços do povo, que no dia de ano novo enfim triunfou, ela é muito pequena mas muito elegante, forte como um gigante se mantém por lá, desafia o imperialismo e não tem receio, ignora o bloqueio desafia o mar’.

Fidel é sonho, é inspiração, é referência militante. Por isso, filhas e filhos de militante o trazem no sangue. Ele fez muito pelas crianças. Mas elas também devem tê-lo ajudado a não habituar-se ao imperialismo opressor. Nenhuma dessas crianças, presentes na Ciranda do MAB, é cubana. Mas, por causa de vidas e sonhos imbricados, sentem, a seu modo, a morte do Comandante, nesse dia 25 de novembro de 2016. Também outros reagem à sua morte, cada qual a partir do lugar que ocupa ou de sua concepção de mundo. De Trump, presidente eleito dos Estados Unidos, vem o arroto de que ‘morre um ditador brutal’. De políticos nanicos do Governo golpista no Brasil, notas insossas, que podem ser assinadas por qualquer um. Do Papa Francisco, solidariedade à família Castro e ao povo cubano. Às vezes, a Ciranda do MAB tem crianças tão novinhas, que brincam de falar, numa linguagem que só elas mesmas entendem. Quando muito a mãe. E se engolem o ‘d’, Fidel vira ‘fiel’. Fidelidade e ‘fiel da balança’ têm tudo a ver com o processo histórico da revolução cubana. Fidel Castro, com chances reais de ‘subir na vida’, pelas oportunidades que teve e, também, pelo seu carisma pessoal, escolhe o caminho da luta revolucionária, junto com seus camaradas, mulheres e homens, e persiste nele até à altura de seus noventa anos. Jamais disse que se apagassem suas falas e escritos. Sua escolha lhe trouxe desafios concretos. A Ilha rebelde foi invadida algumas vezes para matar a revolução. E, muitas centenas de vezes, a CIA tentou eliminar o Comandante, entendendo que matá-lo era cortar a cabeça da rebeldia, intolerável, por enfrentar o império e por abrir a possibilidade de um caminho novo, para Cuba e para o mundo. A fidelidade de Fidel, assumindo a revolução como instrumento da liberdade do povo oprimido, contribui para o avanço real da consciência emancipatória de toda a humanidade. Ele mostra, uma vez por todas, que é possível tomar o poder de uma Ditadura, por mais sangrenta que seja, e construir um poder popular.

Além da fidelidade, a revolução cubana introduz o país caribenho na condição de fiel da balança do mundo. Sua geografia é estratégica, pois próximo do império, capaz de potencializar o contrapeso Russo e causar-lhe uma ameaça real. Essa condição chega ao limite explosivo, administrada sempre com habilidade, coragem e grandeza de espírito, dada a ‘pequenez’ do país. Mas a sabedoria da revolução cubana não se restringe à busca do equilíbrio de forças através dos países aliados. Ela busca, também, a saída humanitária pelo internacionalismo solidário. Cuba percebe que quem ajuda o outro dentro de uma intencionalidade se fortalece. Cuba percebe que qualquer sistema só avança se tiver perspectiva hegemônica. Autonomia isolada é fracasso. Dois exemplos se destacam nessa saída humanitária. São combatentes cubanos enviados a diferentes regiões do mundo para ajudar o povo a libertar-se do jugo da opressão. São profissionais da Saúde enviados a diversos países e, por outro lado, são estudantes de outros tantos que vêm estudar Medicina em Cuba. Uma dessas estudantes, enviada pela MAB, testemunha que, ali, se estuda Medicina não para abrir um consultório e enricar-se, mas para promover a saúde do povo. O Brasil é beneficiário direto da ‘saída humanitária’ cubana. Por um lado, o profissionalismo e sensibilidade de médicos cubanos, através do Mais Médico, proporcionam um melhor atendimento ao povo, especialmente nas áreas historicamente empobrecidas e abandonadas. Por outro lado, a lógica da promoção da saúde, e não da indústria da doença, incomoda e questiona as máfias que fazem da doença, do remédio e do paciente um dos negócios mais rendáveis. Não é à toa que eles podem ser rejeitados pelo  governo golpista instalado no Brasil. A revolução cubana faz de Cuba uma nação com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano de toda a América Latina. O destaque, reconhecido até por seus inimigos históricos, são educação e saúde. Essa conquista, sob um bloqueio econômico, injusto e covarde, mostra que o Socialismo é plenamente viável. A subserviência ao capital e ao império pode trazer, a duras penas e com grandes lutas da classe trabalhadora, benefícios temporários, mas somente a perspectiva de rompimento, que contrarie radicalmente a Ordem e Progresso impostos pelo capital poderá trazer a real emancipação humanitária. A conciliação de classes tem seu ponto de estrangulamento e, no limite, quem perde é sempre o povo. Qualquer socialismo não é o céu. As contradições fazem parte da história. Mas ele dá a possibilidade real da saída do inferno da sociedade dividida entre opressores e oprimidos. Cuba é linda! Quem já foi lá sabe disso.O azul-escuro do Caribe dá a Havana um tom especial. Seus monumentos históricos são imponentes. A Ilha é agraciada pela natureza e seus artistas. O mais belo de tudo, porém, é o seu povo, a sua vida, o seu coração, a sua ideologia, a sua história. O povo traz no rosto um sentimento de vitória. Em Cuba, as pessoas são mais belas que as coisas. Isso significa uma construção histórica radicalmente diferente dos países capitalistas. No capitalismo, as coisas se tornam muito belas e ganham vida. A mercadoria, de tão atraente, convida o cliente a comprá-la. O mercado muda de humor segundo interesses de grandes grupos econômicos. Um simples manequim na loja, em época de natal, desperta em tantos homens e mulheres o desejo de serem aquela coisa, com aquela blusa, com aquele relógio, com aquela calça, com aquele brinco. Coisificar-se, espécie de transgenia criada no capital, é mais que tornar-se objeto; é ser tomado pelo desejo ardente de ser ‘coisa’ por achá-la mais interessante do que ser humano. Enquanto o capitalismo constrói coisas e mais coisas, o socialismo é desafiado a construir seres humanos, através da luta consciente. Essa é a maior herança da teimosia da Ilha rebelde. Cuba se despede do Comandante. Formam-se filas intermináveis na Praça da Revolução. Os presentes assinam em livro sua melhor homenagem: o compromisso assumido de levar adiante o processo revolucionário no cotidiano da vida. Tarefa tão desafiante e necessária só mesmo na força popular.

Na segunda-feira, Fidel recebe homenagem em frente ao Memorial José Martí e celebração de missa, esta na Praça Havana. Na quarta, as cinzas de Fidel seguem por várias cidades do país e, no sábado, chegam a Santiago, onde ficam depositadas e onde ocorre mais uma missa. A força simbólica desse itinerário é muito forte, pois é em Santiago que Fidel cresce e estuda. É daí também que, em 1959, da janela da Prefeitura, ele anuncia ao mundo a revolução cubana. Não me admira se alguma criança de qualquer lugar do mundo ouse imaginar-se brincando com Fidel, e com suas cinzas, tomando-as em suas mãos ternas, misturando-as à terra, colocando-as na mente, guardando-as no coração, e fazendo germinar, na sua fértil imaginação, a semente de liberdade plantada na América Latina. Criança é impossível! E essa é a memória que fica de Fidel! Que as crianças sejam por nós: as cubanas, que usufruem das conquistas da revolução; as empobrecidas de qualquer parte do mundo, que brincam de viver, por teimosia; e as filhas de militantes. As crianças podem nos ajudar. É que nelas não há barreira intransponível entre sonho e realidade. O mundo inteiro vive uma onda à direita. A classe dominante no Brasil surfa nessa maré alta. Nesse momento, sonho é importante demais para a construção de uma nova ordem: pra muito além da ordem e progresso e pra muito além do horizonte imposto pelo capital.

A luta segue.

Até à vitória, sempre.

.oOo.

Antônio Claret Fernandes, militante do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e missionário na Prelazia do Xingu.


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