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13 de abril de 2012
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13:58

Porque não matei o general Médici

Por
Sul 21
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Na transição das décadas de 1970 e 1980, o Brasil vivia o fenômeno do final da repressão mais incontida da ditadura militar e os encaminhamentos para a redemocratização. Era ainda um período de incertezas. As variadas leituras conjunturais determinavam posições políticas e culturais. Para algumas tendências, não havia garantias no processo de abertura; previam a possibilidade de refluxo, com outro fechamento do regime; a abertura implicava numa espécie de teatralização “democrática” para as posições revolucionárias se revelarem. Expostas, seriam reprimidas… Outras posições de esquerda consideravam a necessidade da democracia apenas taticamente, como momento da propaganda e da formação de representações públicas no âmbito da estratégia revolucionária, imaginada como momento transitório da luta de classes, preparadora à luta armada. O nexo da centralidade da luta armada como condutora a uma hipotética “nova sociedade”, no geral, empobrecia as relações políticas e culturais. O cotidiano parecia algo em que alguém sempre tinha uma intenção escondida. A duplicidade existencial motivadora de plano tão transcendental, não estranhamente transpassava às relações pessoais.

O campo dos defensores da redemocratização, por outro lado, era tão amplo que abrigava notórios oportunistas. Muitos confirmariam a simulação de suas atividades. Como se sabe, a história futura demonstraria que o domínio da bandidagem contemporânea, dos interesses singulares das corporações mafiosas e políticas, possui expoentes com passado ativo nos partidos tradicionais, na esquerda revolucionária, que aliaram-se aos estamentos de poder e à contravenção emergente, do colarinho branco ao narcotráfico. Outros ficaram mais acanhados. O discurso revolucionário com práticas reformistas ficou simplesmente no oportunismo. E, o que era mais doloroso admitir, nem todo militar era criminoso e podia-se encontrar ética e postura civilizatória em conservadores. Éramos reprodutores, gestores, mas também, à medida que amadurecíamos reflexões, heréticos, movidos pela poética solidária do humano. Foi neste ambiente santa-mariense que também viria repercutir e se desenvolver um robusto debate teórico sobre a sociedade civil e o “valor universal da democracia”, que resultou na convicção da necessidade de umneocontratualismo e/ou a radicalização inventiva do republicanismo total.

A cidade de Santa Maria era um pequeno cosmo das situações nacional e internacional. Todas as tendências estavam ali. Éramos intensamente universais. Os militantes, de esquerda ou direita, vinculavam-se a uma organização local, com ilação internacional. Eu era um jovem jornalista que teve o seu primeiro jornal aos 16 anos, em 1971-1972, no vale do rio do Peixe, no centro-oeste catarinense, território de montanhas e florestas, propício para guerrilha. As forças de repressão, sem sabermos, procuravam naquelas serranias os focos guerrilheiros correspondentes ao Araguaia. Vale lembrar que a primeira guerrilha foquista, meiobrancaleona e brizolista, contra a ditadura militar, iniciou as suas ações no Alto Uruguai, parte rio-grandense do grande planalto adequado para ações armadas, e se movimentou em direção ao Oeste de Santa Catarina.

Fazendo minha primeira reportagem para o jornal O Furo e para o Correio do Povo sobre o trem romeiro, que ia do Paraná para a Romaria de Nossa Senhora da Salete, em Marcelino Ramos, sofri o acidente de seu pavoroso descarrilamento. Para não perder uma perna, depois de um mês de hospital, fui transferido para tratamento em Santa Maria, onde morava minha mãe, e ficava perto da matriarca da minha vó, que me criara em São Gabriel. Ali ingressei no Teatro Universitário Independente, onde meu primo-irmão Bráulio era ator e diretor, além de estudante de Medicina, e apresentador de um quadro no jornal do meio-dia na TV Imembuí.

Com tempo de convalescente, dedicava-me ao teatro, a auxiliar o Bráulio com temas para o programa (invariavelmente inspirados em Millôr Fernandes), e a escrever “crítica” de teatro, cinema e música, para os jornais, especialmente A Razão e, depois, O Expresso, dos quais viria a ser repórter e redator, além de criar, produzir e apresentar o programa Continente Latino-Americano, inicialmente na rádio Santamariense e, depois, na Imembuí. Esta atividade radiofônica significou a relevante entrada da música e da história latino-americana em emissora de massa, quando castelhano era considerado abertamente como estrangeiro e festivais de música, a exemplo da Califórnia de Uruguaiana, proibia o idioma e inclusive o sotaque para os hermanos não participarem dos eventos rio-grandenses.

Era um tempo em que a cultura e a literatura tinham espaço nos jornais. Por afinidades culturais e humanas, que desembocaram na política, forjou-se ali um grupo de amigos, com alguns desgarrados de outras cidades, para toda a vida. Possuíamos atributos muito particulares; uns, mais urbanos; outros, mais ruralistas (no bom termo, preocupados com o mundo rural); alguns, latino-americanistas. Apesar de pertencermos a um campo político comum, as nuanças distinguiam personalidades típicas; fazíamos parte de esferas auto-influenciáveis. Formávamos uma espécie de rede transpassada pela comunicação, política, educação, artes, etc. Poderia nominá-los todos, sem negar nenhum…

Entre nós havia alguns, certamente pelo dom sincero das relações humanas, que transcendiam aos espaços e referências políticas. Transitavam em outros campos, levavam vivências particulares e, nem por isso, contraditória com suas posições, digamos, revolucionárias; ou, ao menos, sobre a idéia fundamental que alimentavam em suas utopias humanas.

Mais que um sentimento terrunho, uma manifestação identitária, um desejo latino-americano, uma utopia revolucionária, alguns se aproximaram dos festivais nativistas – viriam a contribuir na organização de outros -, ampliariam as convivências com músicos e cantores, formariam irmandades com Os Tapes e Os Angueras, esteiaram-se na transição dos missioneiros com a latino-americanidade. Músicas, contos e poemas começaram a surgir nessa irmandade atípica. Publicávamos nos jornais de Santa Maria, em algumas revistas, e quando saíamos no famoso Caderno de Sábado do Correio do Povo, ou na Zero Hora, era uma lisonja.

Todavia, o “nativismo” que estava em nós era latino-americano. Para chegar ao sertanejo e o nordestino de raiz e vanguardista fazíamos a volta pelo pampa, com conexão pela cordilheira. Voávamos mais que quero-queros; pensávamos com asas de condores; nosso imaginário povoava-se com o realismo mágico e a contundência da literatura universal. Nesse universo incluíamos muitos dos nossos versejadores e prosadores sulinos.

No final da década de 1970, os “comunistas” de Santa Maria chegaram no Festival da Barranca, na costa do rio Uruguai, em São Borja. A amizade com Os Angueras surgira na Califórnia, nos acampamentos que compartilhávamos em Uruguaiana. Aquela juventude desprovida de forro e municio de boca, sempre encontrava guarida na turma são-borjense. Como teatinos tínhamos lugar para dormir e um prato de bóia. Varávamos a noite conversando. Nascera uma afetividade solidária.

Como a compulsividade leva o jovem em seu alforje, também desejava ver meus contos iniciais publicados em livro. Especialmente a Carreteada da cura tinha recebido algum destaque depois de publicado no Correio do Povo. Como o Martins (Livreiro) gravitava em torno d’Os Angueras, reuni alguns e apresentei-lhe em forma de livro. À distância parecem-me mais como causos. Mas Três léguas de volta, publicado em 1980, apareceu como livro inovador do conto regional. A quantidade de matérias jornalística talvez não se traduzisse em vendas, mas autor e obra estavam substanciosamente amadrinhados. Apparício Silva Rillo, com um prefácio generoso, assumia a posição de ponteiro para abrir caminho àquela tropa de contos, cujos personagens pudessem “cheirar mal para narizes menos afeitos à verdade”, de um “autor com os pés fincados no seu chão e no seu tempo”. Gentilmente, quando enviei os originais ao Rillo, convidou-me para ir a São Borja, hospedou-me e discutiu meus textos de iniciante. Tal amizade lhe renderia problemas, pois invariavelmente, a cada passagem por São Borja, ele era convocado pelo general de plantão e por expoentes repressivos para garantir que “eu não comia criancinhas”. Juntamente com Os Angueras, era meu passaporte…

Pelos flancos das orelhas chancelavam a tropa de contos o historiador Décio Freitas e o poeta-payador Jayme Caetano Braun. Pela culatra da contracapa eram empurrados pelo poeta Laci Osório, pelo crítico, poeta e intelectual Tarso Fernando Genro e o teatrólogo-contista Carlos Carvalho. Modestamente, estava bem a cavalo. Somente o tempo saberia o alcance estético daquela tropeada. Por sorte, logo aprendi que a literatura requer abstração e ócio introspectivo; para fazê-la em uma dimensão esteticamente aceitável era necessário uma forma de vida. Então, exceto as publicações esparsas de alguns concursos, dei aos meus contos e poesias o resguardo das gavetas, que continuo soterrando.

Em seu afloramento, Três léguas de volta “capitalizou”, também, um fenômeno extraordinário de 1980. Em setembro, como evento especial do Dia do Gaúcho, o Gastal, editor do Caderno de Sábado, do Correio do Povo, publicou uma edição especial da viagem a cavalo de Santa Maria a Jaguarão, que eu havia realizado com Luiz Sérgio (Jacaré) Metz e Pedro Luiz da Silveira Osório. À época, para certo público, aquilo tinha sido uma gauchada de causar inveja. Renascia em nós a gesta dos viajantes e tropeiros. A repercussão na mídia foi enorme. A dimensão de seu registro histórico, anos depois, em 2006, motivou a Editora Arquipélago a publicar Terra adentro como livro, com apresentação de Luís Augusto Fischer.

Naquele momento, o início dos anos 1980 representava uma espécie de era gauchesca. A força da comunicação de massa implantou a lógica de que quem não se pilchava, troteasse em algum ritmo tradicionalista, não era rio-grandense, fazia parte de um estranhamento estrangeiro (brasileiro, castelhano, ianque). O gauchismo passou a ser uma poderosa ideologia, um lugar hipotético e real, que anulava as diferenças em outra dimensão simbólica, porém sustentada em poderosos mecanismos concretos. E, naquela conjuntura, eis que, certo dia, chegou o convite para lançar Três léguas de volta na Semana Crioula de Bagé. A imagem bajeense tinha violenta distorção. Ao longe, representava o latifúndio militante, o Rio Grande atrasado, a oligarquia tacanha. Para qualquer militante de esquerda, Bagé era o berço do general-ditador dos anos de chumbo, Emílio Garrastazu Médici, a época mais trágica e intolerante da história brasileira.

Em março de 1980, quando passamos a cavalo por Bagé, já meio esgualepados, o seu grupo barranqueiro (turma do Festival da Barranca) demonstrara solidariedade impressionante. Existia algo além da política partidária, uma esfera do humano, uma possibilidade de convivência sem estar centrada diretamente na militância, sem que se perdesse as referências críticas. Conservadorismo não significava que todos estivessem mancomunados nas práticas escabrosas dos porões da ditadura. Mas esta era uma invernada vazia, em que evitávamos entrar.

Eis que fiz as malas e embarquei no ônibus para Bagé encontrar o meu editor, não sem receber olhares de soslaio de sectários empedernidos, como um traidor que ia se alojar no reduto inimigo. Hospedaram-me em uma barraca no acampamento da Associação Rural. Como andava quase sempre de bombacha, pilchar-me para ocasião, com adaga atravessada na cintura, pelas costas, a moda índio minuano, era viver à vontade; e entrei na festa. Durante as provas campeiras, ciceroneava-me o historiador Tarcisio Taborda. Certo momento, ao chegarmos na tribuna de honra, o Taborda elevou-se e exclamou:

– Meu general!

Apresentou-me. Ali estava um promissor escritor “gauchesco”. Educadamente, apertamos as mãos. E, a convite do militar, sentamos ao seu lado, cada qual por uma espalda, para assistir a espetacularização do mundo do trabalho do latifúndio. Eu estava embretado. Algumas conversas esparsas. A segurança, nem tão discreta, em providencial distância. Tentava dissipar meu desconforto. Na cancha, os cavalos urravam em corcoveadas desesperadas, debatendo-se entre os cortes de esporas dos ginetes. O peso da história tomava-me além do cérebro. O general nos olhava e dava as notas para as provas com contidas expressões. As sessões de espancamentos, celebrando tempos bárbaros de formação das manadas chimarronas, ovacionavam a massa, como se instrumentos medievais de suplício varassem o tempo e estabelecessem na multidão o delírio de um emblema identitário. De repente imaginei que minha mão também poderia ser a imanência de um dogma. Observava-se uma película de orgulho na cara do militar. O cabo da minha faca chamava minha munheca; sua lâmina automatizava alguma purificação obscurantista. Em minha mente, a boca de Martin Fierro repetia como matraca acelerada versos de escárnio contra os milicos.

Talvez, como num filme policial “rolidiano” sobre a conspiração da história, já tivesse sido fotografado pelo SNI. Em sua rede de computadores, milhares de cruzamentos se processavam. Minha imagem era o portal de substanciosos e criativos relatórios sobre operações marxistas-leninistas clandestinas. Quem sabe, as informações estavam retornando para o aparato de segurança. Eu não era mais eu, mas um agente comunista, camuflado de gaudério para executar aquele atentado de vingança. “A faca”, “a faca”, gritavam os agentes pelo sistema interpessoal de comunicação, com seus tons aterrorizados nos ouvidos dos seguranças.

Se soubessem do que era capaz a lâmina daquela faca marca “Sol”, helicópteros tentariam milagrosamente içar o ex-ditador… Porém, a minha faca não incorporava imanência em si, como num conto borgiano. Ela era simplesmente a extensão da minha vontade, consciência e concepção de mundo.

O general, escravo de sua ideologia e estertores de sua memória recente, estrebuchando-se na lâmina carneadeira da minha faca, entenderia a sua morte.

Porém, jamais compreenderia porque um militante revolucionário de esquerda preservaria o seu direito à vida.

– Até logo, general!


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