Colunas>Tau Golin
|
2 de abril de 2012
|
17:38

Audição à lua

Por
Sul 21
[email protected]

Em uma noite clara, a lua me atraiu à sacada. Era um destes momentos que, impregnado de diversas conjecturas, fica-se perplexo, sem aparente causa objetiva. Aquela lua convidativa pedia uma audição. De silêncio, sonoridade calada; de olhar, transe contemplativo; de vazio, musicalidade elástica – uma amplidão cósmica e tempestade de meteoritos humanos de sentidos.

Aquela lua oferecia-se para um brinde; uma pajelança íntima, na circularidade afetiva. A alma ritual da Jacqueline botou rodar o primeiro CD. Então, sentados e abstratos, passamos a oferecer nossa audição à lua, olhando-a plena, bailando com um movimento sutil, elevando-se para o nosso sudoeste. Com ela íamos ao sublime, ao transe civilizatório, à interrogação do humano.

Era uma noite em que eu estava com um doloroso hiato, algo me roía com o apetite da besta, que me levara ao niilismo de um transe, que me aplastara diante do cinismo. Estava envergonhado por algo que simplesmente vira e escutara; algo que criara um tribunal abstrato e intocável da ética e da moral. Horas antes tinha assistido o especial da Globo News sobre a morte de Rubens Paiva, um dos “desaparecidos”, morto pela ditadura militar. A voz e a fisionomia de silicone do general entrevistado, porta-voz do esquecimento, verdugo da memória, polido representante do juridicamente solucionável, detentor da borracha do tempo, da amnésia da vergonha, resistiam em meu subconsciente, com seus fluidos desprezíveis à história. Com a tese da Anistia postulava pela absolvição dos crimes de lesa humanidade, de aceitação da tortura. Da erradicação do direito de aprender com o passado e a experiência.

Na audição à lua, oferecíamos A dos voces, canto e poesia de Daniel Viglietti e Mário Benedetti.

Cantamos porque el niño y porque todo
Y porque algún futuro y porque el pueblo
Cantamos porque los sobreviventes
Y nuestros muertos quieren que cantemos.

Tudo contrastava com a voz obscura de porão, daqueles que se impuseram como donos da vida e do destino. Daqueles que soltaram a rédea da besta, liberando a perversa tirania de cada preposto, os batalhões de estúpidos que tomaram o país.

Não lembremos somente da grande política, da guerra fria, da revolução. Falemos da justificativa para a submersão de um país na miudeza do ódio, na usura das instâncias do cotidiano. Dos jovens presos por inocentes serenatas, do panfleto escolar sobre costumes, da inquietação das gerações; do território infernal das delegacias, dos quartéis, das repartições públicas, das mulheres de todas as idades lambuzadas pelas babas produzidas nos laboratórios das casernas, das polícias, das brigadas; inoculadas pelo veneno do gozo demente e autoritário. Como quantificar as vítimas submetidas e passivas sob os tiranetes, raptadas em toda sua humanidade?

Generais de cara de silicone possuem ouvidos moucos. Todo som chega a eles destorcido como bravatas desafiadoras, como ameaça à pátria de que se imaginam donos, como supressão aos seus privilégios, especialmente de controlar o futuro. Preferem a obediência angelical da arpa, a ordem inquestionável do clarim, o compasso resoluto da caixa, o estrondo de medo do tambor. Odeiam o tango, o molejo do arrabalde, o envolvimento da sonoridade de destinos integradores, temem pelo balanço dos próprios quadris. Um bandônion rasga-lhes a imaginação como o brado de uma proclamação, como se as notas fossem tão-somente milhões de marxs, de lenines metafônicos, de maos flauteadores, de crianças alfabetizando-se com a Marselhesa, assombrando-lhes com o pânico ilusório de outra Internacional.

Pouco produtivos à nação, exercitam-se na cartografia corpórea do povo com os ruídos de suas rascadeiras, enquanto a bandidagem proclama territórios livres, as máfias sesteiam em berço esplêndido e o gigante colosso apenas se espreguiça nas datas cívicas. Nas filigranas de lembranças, a voz bailável de Benedetti sussurra à lua.

Pero cuando dios o pichuco o quien sea
Toma entre sus manos la vida bandoneón
Y le sugiere que llore o regocije
Uno siente el tremendo decoro de ser tango.

É preciso temer homens de cara de silicone, incapazes de rugas para registrar o tempo, de olhos que não cantam e cuja maior expressão é crispar a voz. No rufar do tarol, na baioneta cortante do clarim, mãos e sopros da trilha sonora da barbárie. Na sua recriação do mundo, do bafo vomitável da ideologia fez-se os inimigos; todos condenáveis, independente da diferença dos atos – o que priorizou as flores ou o que decidiu-se pela luta armada; o que desejou manter pinceladas de humanidade; o que encolheu o dedo para não mantê-lo rijo e caluniar colegas; o que observou a cátedra contra a rentável carreira. Quando podem, derrubam a árvore frondosa e almejam exterminar o fruto, como fizeram com Soledad Barret, grávida de quatro meses. Mas, por Soledad, ofertam-se ventres para frutificar o futuro.

Quando um general ventríloquo resguarda-se no refúgio do repicar “anistia”, “anistia”, repetindo como bordão incansável de tristeza vergonhosa, mesmo com a lembrança dos mortos, dos desaparecidos, dos torturados, dos vilipendiados, dos que tiveram suas vidas amarguradas, neuróticas, esquizofrênicas, loucas, o poeta relembra o gesto de

Defender la alegría como um principio
Defenderla del pasmo y las pesadillas
De los neutrales e de los neutrones
De las dulces infamias
Y los graves diagnósticos.

Todavia, não se trata de alegria tola. Pois “de vez en cuando la alegria tira piedritas contra mi ventana, quiere avisar-me que está ahí esperando, pero hoy me siento calmo, casi diría ecuánime, voy a guardar la angustia en su escondite y luego a tenderme cara al pecho, que es una posición gallarda y cómoda para filtrar noticias y creerlas. Está bien no jugaré al desahucio, no tatuaré el recuerdo con olvidos, mucho queda por decir y callar, y también quedan uvas para llenar la boca. Está bien me doy por persuadido, que la alegría no tire más piedritas, abriré la ventana, abriré la ventana”.

Nessa escalada sonora à lua, Mário Benedetti pergunta:

Donde está mi país?
Junto al río o al borde de la noche?
En un pasado del que no hay que hablar
O en el mejor de los agüeros?
Donde?
En la desolación de la memoria?
En el otoño de la gracia
O en el oasis de los quietos?
En los ahora libres calabozos
O en las celdas de fantasmas asiduos?

Uma adaga feita de lâmina de gelo cortou-me aos poucos. Fui gelando. Tentava encontrar humanidade na imagem do general. Não hominídeo, mamífero sapiens; sequer nosso ancestral sagui que saltou das árvores e se transformou em carniceiro na origem dos tempos.

Imaginei a cena e coloquei no cenário dos porões da ditadura pessoas amadas; como um devaneio em câmera lenta, seres anônimos, representantes sociais, militantes políticos. Uma fusão colocou-as nos torpes instrumentos de suplício, como instalação permanente de lesa humanidade, na exposição das épocas, o medievalismo ainda em nós, agregado de outras tecnologias. Os dogmas nos regendo. A condenação dos heréticos.

A cara do general televisivo, diante da história, tinha expressão siliconada, sem emoção, sem variação de tons na fala, monocórdica. Mente estupidamente lógica, calculou os desaparecidos pelos dias de pesadelo da ditadura para demonstrar a insignificância das cifras. Parecia algo irrisório, lógico. Com vidas comparadas a números pequenos, para que perder tempo com miudezas? Ora, abane-se o passado com a aba do seu quepe; pise-se no direito com o emborrachado de seu coturno. E o resto, as milhares de violações cotidianas, sequer deveria ingressar na matemática da caserna de seu cérebro embotado.

Olhando a lua tive o desejo de encontrar ao menos tênue miragem de Soledad Barret para beijar-lhe a dor e molhar sua alma com a solidariedade de minhas lágrimas. Infelizmente, já não se pode mais afagar as vítimas deste eco doloroso. Entretanto, restam-lhe o direito à memória; o efeito em nossas consciências para não vincular mais utopia com terror.

Diante da cena do general na Globo News, prostra-se; talvez a pior condição da imobilidade. Nada se pode, exceto envolver-se na dor vergonhosa motivada pela barbárie, incapaz de suportar estas fétidas inalações da nação.

Na minha tertúlia à lua, Daniel Viglietti faz a trilha das imagens que povoam meu imaginário e a imensidão:

Por detrás de mi voz
– escucha, escucha –
Otra voz canta.
Viene de atrás, de lejos;
Viene de sepultadas
Bocas y canta.
Dicen que no están muertos
— escúchalos, escucha —
mientras se alza la voz
que los recuerda y canta.
Escucha, escucha,
Otra voz canta.

Viglietti e Benedetti propagam-se além da minha sacada. Seguro-me na mão da Jacqueline, beijo-lhe levemente como se fosse o impulso que conduz ao devaneio, e fixo-me na luminosidade da lua. Deixo tudo desfocar como a mandala da existência para girar-me na recordação, enquanto os camaradas uruguaios-universais intercalam declamação poética e versos cantados, misturando no brado estético Desaparecidos (Mário Benedetti) e Outra voz canta (Daniel Viglietti).

A camuflagem da cara siliconada, da voz como o cálculo vergonhoso do passado, do cálculo insignificante dos desaparecidos e vilipendiados, na verdade, não deseja que se perceba claramente aqueles que:

Tuvieron que congregar todos los odios.
Tuvieron que empujar el terror hasta el abismo
Y matar más para seguir matando.
Y eran necesarios más tanques más rencores
Más bombas más aviones más oprobios.
Tuvieron que afiliarse para sempre a la muerte
Matar y matar más para seguir matando
Y condenarse a la blindada soledad.
Tuvieron que convertirse en pesadilla.

A Comissão da Verdade, tão rejeitada pelo general, tem a responsabilidade de auxiliar na passagem deste pesadelo, nem que precisemos incontáveis luas na noite para lembrarmos do nosso direito à memória.

Tau Golin é jornalista, historiador e mestre em navegação.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora