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14 de fevereiro de 2012
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08:20

Estátuas que andam

Por
Sul 21
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São anos de andanças pelo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. Juntamente com a professora-pesquisadora Jacqueline Ahlert seguimos as mais imprevisíveis ramificações do espalhado acervo documental das estatuetas missioneiras, criadas durante o período jesuítico e na expansão das remanescências. São documentos materiais aparentemente singelos, curiosos, devocionais; grotescos para o eurocentrismo. Não possuem o impacto estético do barroco celebrador. Frontalistas, esquemáticas, totêmicas, animistas, as imagens são da intimidade doméstica e pessoal.

Estas milhares de estatuetas valem pela historicidade incorporada. São testemunhas aparentemente singelas dos seus criadores, difusores e vivenciadores. Documentam a circularidade das etnias indígenas nos espaços das reduções, das expansões para os demais territórios, ligam passados e heranças. Certamente expressam o conceito de Gaston Bachelard: “a miniatura é uma das moradas da grandeza”. Seus atributos “abrem um mundo”. Contingencialmente, “a miniatura faz sonhar”. Elas contêm o imaginário de capítulos dramáticos e sutis das relações americanas.

De certa forma, as miniaturas tecem os fios da meada da rede fundante do processo missioneiro, entendido como herança autóctone sincrética ao mundo reducional, mas especialmente como remanescência. Talvez em uma expressão reducionista, a miniatura se fez “como valor de uso”, modo de vida, nas dimensões pragmáticas, simbólicas e sagradas. Expandiu-se além da ritualidade litúrgica do poder colonial. Atou-se e dimensionou o sentido de cotidianos anímicos.

Pesquisadora Jacqueline Ahlert. Miniaturas do Museo Histórico de Durazno, Uruguai | Foto: Tau Golin (Clique para ampliar)

Talhadas em madeiras sul-americanas, a exemplo do cedro, a miniatura popularizou em cifras incontáveis como algo adstrito a demografia. Povoaram os altares domésticos e vestiram as proteções e devoções pessoais. Desde os ambientes familiares aos campos de batalhas estiveram presentes. Cada campeiro, agricultor, marinheiro, ou soldado carregavam suas estatuetas nos corpos temerosos de morte. Uma mente museológica, caso se livrasse do pastiche, compreenderia a pujança histórica daquilo que visualiza apenas como toscos pedaços de madeiras. E poderia sonhar com os movimentos reais das miniaturas, andejar com as gentes e seus esforços humanos de povoadores, de orgulho de nossos troncos gentílicos.

Levadas pelos contingentes humanos permanecem como seus registros.

Nelas, cristos melenudos podem usar vinchas; santos, botas de garrão de potro; nossas senhoras, cabelos longos, negros e ondulados, como chinas; anjos, feições de piás da terra; roupas de tecelagem nativa e grafia de cerâmica milenar. Complementaridades, inversões, inclusões, mudanças de arquétipos…

Há algum tempo, sob a coordenação da professora e historiadora da Arte Jacqueline Ahlert, o Núcleo de Documentação Histórica, do mestrado em História da Universidade de Passo Fundo, instituiu o projeto Inventário da Estatuária Missioneira. Entre outros propósitos, procura estabelecer a gênese particularíssima de nossa arte sacra, indígena, mestiça e popular. A ideia é formar também um abrangente banco de dados com os remanescentes que se encontram em museus, residências particulares e colecionadores. Procura-se incorporar outras pesquisas, a exemplo dos inventários do IPHAN, no Brasil, e da professora-arqueóloga Carmen Curbelo, no Uruguai.

Ainda não se consegue estimar as estatuetas em “uso” doméstico e comunitário, ou que simplesmente se encontram nos relicários pessoais, nas coleções particulares. As pessoas sofrem o trauma da origem da política patrimonial brasileira, desde quando os prepostos do governo requisitavam à força policial as imagens dos altares das casas de família, lugares de rezas e benzimentos, capelas ou igrejas comunitárias. O Museu de São Miguel, por exemplo, foi um salvamento, mas também um trauma. Como defesa, incontáveis estátuas foram escondidas. De certa forma, ao não se denotar o barroco litúrgico nas miniaturas, elas também continuaram compartilhando os lares, especialmente os rancherios, e vivendo suas funções protetoras dos corpos animistas.

As ações de Estado encerraram as miniaturas ainda mais na esfera doméstica, revestidas de sigilos de proteção simbólica. O mesmo ocorreu com os demais artefatos, passíveis de expropriação. Como consequência, desde pequenas peças domésticas até sítios arqueológicos comprovou-se trágico processo de “escondimento” ou destruição, pois, geralmente, os ruralistas ainda temem, equivocadamente, intervenções em suas propriedades privadas. Todavia, na questão do patrimônio, as estatuetas missioneiras e remanescentes continuam com seus mistérios.

Mesmo com a destruição programática de ordens religiosas nos séculos XIX e XX, os vassalos dogmáticos não conseguiram exterminá-las. Párocos dedicaram-se a erradicação, fazendo das igrejas católicas fornalhas de imagens, espécie de castigo àqueles que as preferiam, muitas vezes, às imagens de fenótipos europeus sacramentados. Mais recentemente, pastores evangélicos culpam as miniaturas pelas doenças de suas guardiãs idosas. E prometem expurgar todos os males e salvá-las em rituais histriônicos de imolação das estatuetas centenárias no fogo de seus templos de fanáticos. Em São Borja, pela ação emergencial da Polícia, duas foram salvas ainda chamuscadas pelo delírio da pregação intolerante. Outras circulam com as benzedeiras e não são bem vistas por devotas da cristandade. Em um sincretismo fenomenal, também estão em terreiros.

Em janeiro seguimos a trilha de Fructuoso Rivera de 1828, que após as suas manobras para reconquistar as Missões do Rio Grande do Sul, na Guerra da Cisplatina, retirou-se com grande parte da população missioneira para Uruguai, fundando povoações. Com os índios seguiram as inseparáveis estátuas de uso litúrgico oficial, e também centenas de miniaturas de uso doméstico e pessoal. Parte sobrevivente desse acervo foi inventariado pela equipe da arqueóloga Carmen Curbelo. Na região de fronteira, na costa do rio Uruguai, em praticamente todos os departamentos dos hermanos, encontram-se peças do êxodo, e talvez muitas talhadas posteriormente. Tais miniaturas são o movimento e formação das comunidades, a exemplo de São Borja de Yy, em Durazno, pois sempre se inseriram nas suas dinâmicas, festas, devoções, conflitos bélicos.

No conjunto, os museus ainda contam com pessoal desilustrado, sem aproximação com a História e a Antropologia, reproduzindo lendas e registros de memorialistas, invariavelmente preconceituosos, ao reproduzirem o imaginário da intrusão colonial. De nossa expedição recente, pudemos contar com auxílios prestigiosos, como de Antonio Maria Boero, do Museo Sin Fronteras, em Rivera; do bispado e do pároco da catedral, Edgar Arambilhete, do Museo del Indio y del Gaucho, em Tacuarembó; da catedral, do Museo Histórico, e de seu diretor, o historiador Oscar Padrón Favre, em Durazno; da catedral de Florida; da catedral, do Colegio y Liceo Sagrado Corazón, do Museo de Historia del Arte, dos funcionários das casas Fructuoso Rivera e Juan Antonio Lavalleja (pertencentes ao Museo Histórico Nacional), do Museo de Arte Precolombino Indigena – MAPI, do Museo San Bernardino, do Museo Histórico Monseñor Lasagna (Colegio Pío, de Villa Colón), da equipe do Programa Recuperación del Patrimonio Indigena Misionero, coordenado por Carmem Curbelo, do historiador Walter Rela, da Rádio Rural, em Montevidéu; da catedral, do bispado, do Departamento Municipal de Cultura, do Museu Historico, e da Azotea de Haedo, em Maldonado; da catedral, em Rocha; do Archivo y Museo del Carmen, em Carmelo, da Basílica Menor Santísimo Sacramento, do Consejo Ejecutivo Honorário de Colonia del Sacramento, em Colônia. Com essas referências nominamos uma relação extensa de pessoas, cuja contribuição é imensurável. Os fatos de Oscar Padrón Favre e Carmen Curbelo interromperam as férias para ajudar-nos já diz muito desta solidariedade em rede, amalgamada no esforço de um conhecimento aberto e irmanado.

Entretanto, em todos os lugares do mundo, o maior problema do pesquisador é certa malta de funcionários públicos. Contraditam com os abnegados, aqueles que compreendem o patrimônio com esfera pública, carregado dos sentidos da historicidade. Não existe nada pior ao conhecimento do que museus que proíbem fotografias e filmagens para investigadores, mas também não publicam catálogos impressos ou, preferivelmente, digitais. Consomem o tempo no ócio do expediente ao invés de produzir informações sobre as vivências humanas que estão intrinsecamente nas peças.

Mas, no fundo, as proibições sempre são relativas. Dependem de autorização superior. E, no geral, o diretor é tão alado que invariavelmente quase nunca se encontra no trabalho. Esta é uma das maldições da Argentina. Como todo vagabundo é quase sempre mentiroso, promete mandar imagens digitalizadas para as instituições de pesquisa, desde que cumprida a burocracia. Então, formalizam-se pedidos, preenchem-se formulários. Depois, retorna-se e fica-se no “ora vamos ver…” Este é o caso, por exemplo, do Museo de Arte Hispanoamericano Isaac Fernández Blanco, de Buenos Aires. Apropriou-se de fabuloso acervo, mas dificilmente se consegue estudar as peças. O seu sentido patrimonial esgotou-se na cobrança de ingresso e no propósito de servir de cabide de emprego.

No Uruguai encontramos apenas um caso que feriu a amabilidade geral. A diretora da Casa de Fructuoso Rivera, na rua Rincón, 437, de Montevidéu, é uma verdadeira matrona. Parece uma feitora de charqueada. Desde o seu gabinete, no andar superior daquela instituição, contempla o público como uma manada de seu hipotético latifúndio mental. Não distingue investigador de gado para o charque. Alguns funcionários são amabilíssimos, mas nada podem fazer sem a sua autorização. Talvez, por isso, tudo vai ficando impossível, dificultoso. Gastam mais tempo explicando o que está vedado quando poderiam proporcionar espaços produtivos.

Quem leu meu livro A fronteira percebe a existência de algumas figuras emblemáticas na relação geopolítica entre o Uruguai e o Brasil. Uma é Andrés Lamas, chancelar que articulou o Tratado de Limites de 1851, até hoje foco de polêmicas. No segundo pavimento existe um retrato de Lamas, que eu desejava fotografá-lo com resolução de qualidade para o acervo do NDH-PPGH-UPF. Funcionários prontificaram-se em me acompanhar, já que se tratava de tarefa rapidíssima. Todavia, como o andar estava sem acesso ao público, antes, dependiam da autorização da dita senhora. Esperou-se até que falassem com ela. Resposta: Não! Envolveram-se três funcionários para conferenciar com ela com o propósito de simplesmente desapresilhar uma fita da escada que conduzia a Lamas. Este é um dos tantos fatos ridículos da falta de bom senso, de desrespeito com investigadores que viajam (sem subsídios) milhares de quilômetros. É uma situação que implica diretamente no conhecimento e no intercâmbio para um saber mútuo no Mercosul.

Não bastasse isso, o desfecho foi ainda mais arrogante. Tínhamos informações abalizadas de que a Casa Rivera possui em seu complexo miniaturas missioneiras. O possível lugar, conforme um funcionário, está fechado há 20 anos. Como poderíamos ter acesso a ele? Impossível! Em nenhum momento fomos recebidos. Quando a diretora começou a descer as escadas ainda presenciamos o esporo que deu na funcionária que a consultou sobre a fotografia do quadro de Andrés Lamas. E, depois, passou por nós sem desempinar a cabeça, ou dirigirmos o olhar para um simples aceno. E se foi batendo as patas, escramuçando como crioulo de estancieiro no meio do pobrerio.

Já dediquei parte da minha vida a história latino-americana. Sou uma espécie moderna de fronteiriço, universalizado no processo civilizatório, sem desconsiderar como parte de seu engendramento o fenômeno mestiço. Meu bisavô, Antônio Torres, era de Tacuarembó. As decisões de porta fechada sempre foram a maldição uruguaia, como de qualquer lugar. Na política, os privilégios de uma elite excludente; no serviço público, a causa da dilapidação e venda do patrimônio de seu povo. Manuscritos preciosos da história da República Oriental foram vergonhosamente surrupiados. Talvez, a minha principal retribuição ao tanto que recebi em suas bibliotecas e arquivos tenha sido a identificação e publicação, com comentários, do manuscrito de José Custódio de Sá e Faria, no meu livro A guerra guaranítica. Com o sumiço do original, ao menos salvou-se o conteúdo.

Pessoa errada em lugar importante, a primeira coisa que faz é cerrar ou manter portas fechadas. O abandono de acervos, fora dos olhos do público e dos pesquisadores, tem sido a vereda de saída do patrimônio uruguaio, roubado e vendido para colecionadores, principalmente do exterior. Nessa esfera, não se deve admitir nenhuma exceção. Seus danos são irrecuperáveis.

Esse episódio ilustrativo de alguma dificuldade, não interrompe a colaboração em rede dos pesquisadores. Pretendemos continuar contribuindo modestamente para o conhecimento de nossas histórias particulares e involucradas. Pois, como lembrou o mestre da fenomenologia, a incultura não vai sustar a sinergia das estatuetas missioneiras: “as imagens precipitam-se, vão longe demais.” Sem elas não se compreende parte significativa de nossa historicidade.


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