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14 de novembro de 2011
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10:28

De livros e pessoas

Por
Sul 21
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Neste ano estou vivendo uma experiência inusitada. A Associação de Livreiros do Passo Fundo me escolheu como patrono da 25ª Feira do Livro.1 Como tive oportunidade de responder à imprensa, inicialmente fiquei surpreso. Sempre fui um pouco reticente com homenagens. Minha presença nelas sempre foi a consequência de alguns prêmios recebidos, ou como membro de comissões, de entidades culturais e convidado para solenidades. Nunca imaginei que pudesse ser homenageado. Não faz muito o meu perfil. Mas os livreiros de Passo Fundo me deram uma lição. Acabei convencido que já fiz por merecer. A repercussão foi excelente, diversas pessoas se manifestando. Os “emburrados” permaneceram, até agora, mudos.

Tudo isso aumentou a minha responsabilidade na Feira, pois ela agora está vinculada também a gratidão com os seus organizadores, que, entre tantos nomes, escolheram o meu. De forma humilde, apenas desejo contribuir com a formação de uma sociedade leitora, que as pessoas possam se intelectualizar e desenvolverem a capacidade de ler o mundo e entendê-lo.

Neste particular, os livros contém os olhares dos autores, não representam nenhuma profecia além da suas imaginações, apensar de muitos acharem que estão possuídos pelos deuses. Nessa concepção, no discurso de abertura de 4 de novembro, com a missão de falar para o público em geral, destaquei os temas indissociáveis do livro como panorama decisivo do conhecimento, de sua provocação intrínseca de convocar o leitor para se transformar em autor, possuir uma narrativa autoral sobre sua experiência, a particularidade da palavra e a possibilidade que a narrativa dá ao indivíduo para estar no mundo, o seu palco de consciência no sistema social hegemônico.

Nesse conjunto, os livros são acervos de leituras sobre os mais variados temas.

Representam as narrativas que servem de propostas metodológicas para que cada indivíduo elabore a sua compreensão sobre o seu universo.

Os livros possuem a sinergia que provoca o leitor a ser também autor.

No fundo, cada autor sabe que o ato de escrever significa as buscas para responder as questões que lhe inquietam como indivíduo. É a formulação lenta e pacienciosa na auto-formação do sujeito.

Por isso, os livros, muitas vezes, são as temíveis pontes de travessia para o estado de consciência. Eles sugerem o abandono do conformismo, do embotamento de serial alienado, que apenas responde aos estímulos do consumo, das programações ofertadas pela cultura de massa, que multiplicam por milhões os simulacros do humano, além de criar incontáveis aberrações que se projetam como esquizofrenias, neuroses e outros distúrbios.

Com o perdão da metáfora, os livros constituem a chave para as multidões de consumidores, que não acrescentam uma vírgula à humanidade, chegarem à condição de cidadãos. Além das classes, a sociedade está polarizada em dois blocos de estranhamentos, os da cidadania e dos consumidores; este, com todos os seus derivados agressivos, de barbárie, de comportamento infrator, de cultura grileira.

Os livros, por óbvio, são formados por palavras. Articuladas, constituem discursos, narrativas de sentidos. Consequentemente, quando dogmático, fanático, intolerante, sustenta práticas escatológicas, coloca em movimento o que existe de mais terrível e obscuro nos humanos. Mas, os livros encerram também um tesouro de valor insuperável, a relíquia da palavra formadora de sentidos humanizados, a teia comuneira como principal contrato das sociedades de destino, imaginadas como espaço fraterno de todos.

Somente através das palavras podemos narrar nossas particularidades, as sociedades e o mundo. Quando as palavras se transformam em categorias adquirimos o saber de atribuir sentido às coisas.

As palavras construíram a humanidade.

O verbo é a nossa carne e o nosso cérebro.

Uma imagem pode ter impacto estético. Entretanto, além do êxtase ou do nojo, precisa-se das palavras para explicá-la, compreendê-la e descrever seus sentidos.

As palavras articulam narrativas complexas, fazem representações para se perceber as realidades.

Os livros são os nossos acervos. Os bancos de nosso maior capital – o ouro humano das palavras. Principal instrumento de convencimento para um futuro que, associado às medidas concretas, avance para a socialização do humano com valores universais, perceptivos às particularidades e escolhas. As palavras não existem em si, não substituem à política, mas ajudam no reconhecimento do que potencializa ou embota os caminhos civilizatórios.

Dentro do sistema hegemônico que domina o mundo, a humanidade resiste e propõe alternativas através da cultura.

Neste sistema perverso, se reproduz o pior dos flagelos. O mostro do poder econômico inculto. As elites indigentes de saber. Depois do período histórico dos déspotas, vivemos a era do absolutismo desesclarecido. Nele se confunde saber, com adestramento produtivo; conhecimento, com treinamento. A lógica do adestramento em série naturaliza algumas perversidades. Realmente, não sei o quanto podemos ser otimistas em sociedades do Terceiro Mundo em que os petit shop superam em número as creches, que são os berçários afetivos da infância. Nos bairros e prédios, parece que se habita canis; raramente se escuta a algaravia esperançosa das crianças. Os país não frequentam mais os bancos das praças para leituras e conversas. Passeiam neles para seus cães de estimação defecarem nos espaços públicos. As praças já não são mais do povo…

Nesta sociedade de consumo, os valores estão na contramão do humanismo.

Paga-se o olho da cara pelo boné de marca, pela calcinha que a celebridade usou na novela, pela bolsa, pelo sapato, por todo tipo de penduricalho, mas se sobe nos tamancos quando o professor solicita um livro, que se pode adquirir a preço de banana.

Justamente o livro, que poderia ser um patrimônio para a família, para as gerações.

A luta é terrível contra a incultura e a insensibilidade.

Todo o investimento é para o parecer-ser, para a parte exterior do corpo. Ser universitário já não é mais um ritual de passagem de superação da idiotice.

Se o livro no for prioritário para as pessoas, o bonezinho de marca, na verdade, é apenas um adereço de cabeças vazias. Os sapatos, que dão de goleada no salário mínimo, sustentam pés sem rumo (se a situação fosse de riso, diria que são pés de vento); as bolsas são alforges da mediocridade. É a consagração do espírito de porco, com a devida vênia aos suínos.

Para esta parte infelizmente dominante da sociedade, o “conhecimento” é tão-somente uma técnica, um meio para a aquisição de bens materiais, ou o desejo esquizofrênico de tê-los. As artes, a literatura, a poesia – o perigo da História – uma perda de tempo.

Todas as expressões estéticas de humanização, de construção do processo civilizatório, são desprezadas. Talvez, a maior maldição do mundo contemporâneo, seja o novo-rico, esta nova elite mediana, apegada ao consumismo e que dá destino supérfluo aos bens materiais, que invariavelmente se envergonha de seus antepassados plebeus e se reinventam como supostos nobres. Que também se reproduzem nas igrejas e templos inoculando o veneno de suas ladainhas, sem perceberem os eventuais estímulos humanizadores.

Lamentavelmente ainda não perceberam que a familiaridade com os livros constituiria o seu maior patrimônio. Que a poesia, a literatura e o saber, constituem o maior dos capitais: auxiliam a remover a idiotice ofensiva e nos transformam em pessoas mais humildes, além de nos sintonizarmos com a humanidade.

Por sorte, ainda estamos sobre os efeitos da ilustração: a plenitude do indivíduo depende de sua inquietação cultural, de seu estímulo ao saber, de seu conhecimento humanizado, o que vale tanto para o artesão popular como para o acadêmico intelectualizado. O indivíduo cultural não precisa de certificação. Em seus olhos brilha a humanidade.

Espera-se que na vigésima quinta feira de Passo Fundo, os livros sejam como a fumaça dos pajés: espantem os espíritos da ignorância, da indigência cultural, a adoração do vulgar.

Conviver com o livro significa celebrar a melhor sinergia da humanidade.

1 A Feira do Livro de Passo Fundo acontece de 4 a 12 de novembro de 2011. Discurso do Patrono, no dia 4.


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