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30 de outubro de 2011
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08:00

Embarcar ou montar, eis a questão

Por
Sul 21
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Há algum tempo defendo a necessidade da formação de um gabinete ou assessoria de assuntos náuticos diretamente vinculada ao governador do Rio Grande do Sul. Sua atribuição cuidaria das políticas de Estado envolvendo o espaço das águas. Nelas navegam múltiplos interesses, cada um dependente de órgãos federais, estaduais e municipais, que atuam de forma independente e insuficiente – muitas vezes, contraditória -, sem uma esfera política que faça a transversalidade de todos esses setores. Marinha, órgãos de meio ambiente, de navegação, a Brigada Militar, comitês de bacias, turismo, etc., operam nas águas. A diversidade sem conexão encalhou na ineficiência. E o pior: não vislumbra as potencialidades.

Praticamente sobram instrumentos legais para políticas públicas. Entretanto, pulverizados, sem que exista uma costura de poder. Muitas medidas são simples e com implicações significativas. Vou dar apenas um exemplo: se fosse vinculado o Plano de Gerenciamento Costeiro sobre águas marítimas, lacustres e fluviais à autorização de empréstimos pelos bancos estatais às prefeituras já seria uma revolução. Se entre os documentos obrigatórios para receber verba o município tivesse que incluir o Plano, uma força civilizatória invadiria as regiões do Rio Grande. As leis federais e estaduais possuem diretrizes a serem obedecidas. O “tal gabinete” auxiliaria na metodologia sobre a ocupação costeira, as áreas de pesca, navegação, etc., na abrangência das águas rio-grandenses, além de elaborar projetos múlti setoriais.

O fenômeno das hidrelétricas criou enormes áreas de navegação. Apenas em extensão, se juntarmos as barragens do Chapecó, de Itá, Machadinho e Lages, com incidência no rio Uruguai, em distância, sem contar a elevação de afluentes, são em torno de 360 km (194 milhas náuticas). É como de Porto Alegre a Rio Grande; extensão correspondente ao Guaíba e lagoa dos Patos. As barragens promoveram uma transformação radical da geografia e da ocupação humana do espaço, pois instantaneamente essas populações passaram do colonato à condição de ribeirinhos. Temos aí um fenômeno social.

Entretanto, são milhões de pessoas sem cultura náutica.

Os novos-ricos, os boyzinhos e representantes da classe média desilustrada, acham que motocross em barranco vale também na água. Quem pode compra lancha para concorrer com vizinho em tamanho e não conforme as condições de navegabilidade. Não é incomum, assim, onde tem poder econômico, embarcação de alto-mar, com potência extraordinária em HPs, andando em “poço”. Pouco importa se a marola vai até o topo da coxilha; se derruba crianças na costa; se vira caiaques e botes. “Eu” quero mais é passar com o meu exibicionismo…

Uma administração pública atenta poderia convergir todas as leis náuticas e de meio ambiente para regulamentos nas diferentes áreas, considerando as normas gerais e os estudos de casos nos variados espaços. E solucionar a inocuidade mais gritante – o órgão fiscalizador. Somente a Brigada Militar tem condições, pela sua presença em todo o território, de realizar uma fiscalização efetiva e responsável. A lei prevê o convênio com a Marinha. Entretanto, este é um acerto que precisa ser feito na alta política.

Hoje, em grande parte, a barbárie das águas se deve a ausência dos Planos de Gerenciamento Costeiro nas esferas municipais. Os ambientes de conflitos existem em função do “vazio material” e da incultura sobre navegação. Além das implicações concretas, a formação do Plano carrega uma metodologia educativa. Não bastam apenas as leis, as normas técnicas. Essas orientações são discutidas em audiências públicas. Obviamente, as “audiências públicas”, quando não orientadas por critérios de interesse superior da nação, podem constituir tão-somente instâncias de legitimação de especulações particulares, de âmbito político ou econômico. Por isso, mais uma vez, a necessidade do “tal gabinete”, ou de qualquer esfera, que oriente e inclua na lei as representações da nação, do estado e do município, as quais devem participar das discussões do Plano.

Acompanho há anos o conflito existente na barragem do Capingüi, localizada em uma das cabeceiras da bacia hidrográfica do Rio Taquari-Antas, cujas águas abrangem os municípios de Mato Castelhano e Marau, no Planalto Médio. É modelar para as demais regiões. Já foi o paraíso, mas a ocupação acelerada do entorno também transferiu para dentro da água o aumento considerável de embarcações e jet skis. Apesar das leis internacionais e do Brasil, além das normas da Marinha, vigentes naquele espaço concedido à CEEE, no geral desobedecidas, as especificações em lei, ou seja, a inexistência de um Plano Municipal Costeiro, estabeleceu de fato o “vale tudo”. A principal causa ali é semelhante a todos os lugares: ausência de limitação de áreas de banhistas (exceto no Clube Náutico Capingüi), liberação da potência de motor inadequado ao espaço, definição de velocidade conforme a área, e presença de jet ski.

A consequência mais evidente da desorganização náutica eliminou ou praticamente extinguiu algumas práticas: sumiram os nadadores, são raros os remadores e velejadores. Ao natural, as águas límpidas do Capingüi ofereceriam inclusive a possibilidade de mergulho. Dois setores têm profundidade média de 20 metros, com fundo e paredão de pedra. Nos últimos anos, o Clube Náutico fez convênios, promoveu circuitos de natação e regatas. Mesmo com a segurança dos bombeiros, jets e lanchas invadiam as áreas de prova devidamente sinalizadas. A inobservância das distâncias e das normas de manobra decretou o cancelamento desses eventos e da iniciação da vela infantil. Os promotores não tinham como garantir a segurança…

Assim como muitas outras áreas “náuticas”, quando a barragem está cheia, o que é raro, o Capingüi possui em torno de 6,27 km2 de superfície, com distâncias variáveis entre as margens, canais e ilhas. Desconsiderando as ilhas, aproximadamente 1/5 do espelho d’água está entre margens de 100 metros; 3/5, entre 200 a 400 m; e 1/5, nos setores de predominância das ilhas, entre 400 a 700 m. Qualquer pessoa com um mínimo de informação sobre navegação sabe que isso é pouco mais que um alagado, sobre o qual as leis preveem medidas de proteção e controle náutico para preservar o meio ambiente e, principalmente, “salvaguardar a vida humana”.

Por óbvio, o comportamento de muitos frequentadores desarmonizou o espaço. Diante às inúmeras denúncias e reclamações, o Ministério Público, através do promotor Paulo da Silva Cirne, moveu uma ação civil com significativos cuidados processuais, considerando as leis de navegação, ouvindo especialistas e autoridades, realizando audiências públicas, etc. Formou-se um processo gigantesco. Por fim, a ação que iniciou em 2006 teve sentença proferida em 27 de junho de 2011, pela juíza Debora Sevik, da 1ª Vara Cível Especializada em Fazenda Pública. Os réus são o município de Mato Castelhano, a FEPAM e a CEEE. Em suma, quem tem responsabilidade sobre a barragem. Fruto das audiências, a CEEE organizou o Plano de uso e ocupação do solo no entorno dos reservatórios da UHE Capiguí, extraordinário avanço, inclusive introduzindo normas náuticas preliminares, e que tem prazo de execução. Quem ficou devendo foi a prefeitura de Mato Castelhano, sem jamais encaminhar o Plano de Gerenciamento Costeiro Municipal. Entretanto, na audiência que determinou a sentença, comprometeu-se a “fiscalizar o esgotamento sanitário das residências, fiscalizar a distância do alagamento, delimitar construções, etc.”

Quanto a navegação, a sentença proibiu o “uso de jet ski” e liberou a navegação somente para as embarcações com motores de 4 tempos, limitando a potência a 90 HP. Quanto ao jet ski existe certo consenso, exceto de seus usuários. Falta área para navegar; a concentração em um único ponto, obedecendo a exigência de distâncias das linhas bases da margem e dos banhistas, geraria crime ambiental. Por óbvio, os motonautas ficaram indignados.

Entretanto, a questão quanto a obrigatoriedade da tecnologia 4 tempos e a potência suscitaram interpretações diferentes. Tecnicamente, assim que saiu a sentença, considerei a necessidade de uma adequação quanto a este requisito, porém ele, de certa forma, depende do inexistente Plano Municipal Costeiro. A questão do meio ambiente está vinculada a da salvaguarda da vida humana. Portanto, a prioridade é baixar potência em razão da velocidade e conceder prazo de transição para a adequação à tecnologia. Sabe-se que um navegador consciente, com um motor mais potente, gera menos alterações ambientais do que um maluco com 15 HP. Como é arriscado exigir “consciência” neste meio, o prudente é limitar potência de motor. Um assassino causa menos dano com um bodoque do que portanto uma metralhadora.

Mesmo depois da sentença proferida, frente às reclamações dos “interditados”, o promotor Paulo da Silva Cirne, demonstrando sensibilidade, convocou uma reunião no Ministério Público para instruir o inquérito civil quanto à navegação. A sessão realizou-se em 18 de outubro de 2011. As posições a favor e contra a sentença foram retificadas. De certa maneira, ficaram prejudicadas as exposições mais ‘técnicas”. A “bancada do jet ski” demonstrou certa dificuldade para a conversação mais metodologicamente respeitosa. Eu praticamente fui abalroado e não consegui contribuir com absolutamente nada, apesar de alguma experiência e conhecimento sobre o tema. Nem a coordenação do promotor e a presença do capitão-de-fragata Jayme Tavares Alves Filho, da Delegacia dos Portos de Porto Alegre, constrangeram as interrupções e xingamentos.

Por fim, a promotoria comprometeu-se a encaminhar à juíza uma petição com a sua posição sobre as questões expostas. Enquanto isso, nada mudou. Continua proibido o jet ski e é permitido somente o motor 4 tempos, com potência até 90 HP, na barragem do Capingüi. Seria importante também incluir a responsabilização da prefeitura de Mato Castelhano no encaminhamento do Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro.

Invariavelmente, certos interesses cegam. É legítimo que os motonautas busquem lugares para pilotarem, mas algumas interpretações sobre aquilo que é evidente nas leis de navegação ferem qualquer prudência. O que deveria ser argumento ficou constrangedor diante de um capitão-de-fragata. As “interpretações” dos defensores do jet ski, na verdade, são constituídas por falácia técnica e ignorância histórica. Contra qualquer prudência, eles assumiram a versão de que o jet ski é benéfico porque seu turbo oxigena a água. Para ser verdade, ele precisa andar em águas profundas, onde não existem micro-organismos (muito raro), especialmente ovas de peixes, para não serem destruídas na sucção de seu turbo, ou rebentadas no seu escape quando imerso na água (versão da maioria). Do contrário, o jet é uma máquina de morte e poluição, mesmo com óleo biodegradável, pois ele destrói o ecossistema aquático e revolve os sedimentos do fundo, operando como um liquidificador; ele mistura e agrega os poluentes flutuantes e da superfície, que retornam para o fundo depois do seu belo serviço de “oxigenação” da água. Ou seja, é um predador. Não deixa ir embora sequer o poluente flutuante. Mistura-o com o sedimento e o aprisiona no fundo.

A ignorância histórica é considerar o jet ski uma embarcação. Qualquer criança percebe que nele não se “embarca”, e sim se “monta”. O jet é um “equipamento” e não uma embarcação. Por isso, mesmo com a pressão econômica, a tradição e as leis de navegação, incorporadas de alguma maneira nas normas da Marinha, estabelece que ele pode andar somente em condições especiais.

Se tivesse graça, poderíamos reproduzir a piada de que os japoneses inventaram o jet para o exibicionismo dos tolos norte-americanos. Os ianques usaram, viram o dano que causa, e procuraram novos tolos para não ficarem no prejuízo e também obterem mais lucro. São raros os países – estes que os motonautas no geral adoram, classificados de primeiro mundo – que permitem o jet ski em águas internas. É admitido somente como “equipamento” de salvamento, de uso exclusivo das instituições do Estado, ou no mar para esportes náuticos, como o surf radical, nos ambientes que oferecem perigo a vida humana. Mesmo no Brasil, são diversas às barragens, lagoas e enseadas onde a moto náutica é proibida. No geral, com muito mais “condições” que no Capingüi… As associações estão viciadas pelo interesse econômico, pois são formadas por (semi)profissionais, patrocinadas por fabricantes e vendedores.

A entrada do jet no Brasil faz parte daqueles meandros que o senso comum gosta de condenar na política. Ele foi introduzido pelo bastidor. Sua “legalizado” tem capítulos vexatórios para a soberania. Consequentemente, a navegação responsável o tem como uma espinha de peixe na garganta. Como se sabe, uma “legalização” desencadeia processos formadores de “direitos”, como inscrição na Marinha, seguro obrigatório, cobrança de IPVA, que vão descaracterizando a gênese do imbróglio. É aquela história, nem tudo que é “legal” é legítimo e eticamente aceitável. Muitas vezes, diante das evidências da realidade, a cidadania estabelece alguns resguardos, como a exigência de licenciamento ambiental para “a utilização de jet ski em rios, lagos, lagoas, no mar e outros cursos d’água”, conforme lei aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro ainda em 1995, que o classifica como “veículo automotor aquático”. A própria Marinha se refere a ele como uma “máquina”. E é a sua excepcionalidade de “máquina”, “equipamento”, que permite o seu enquadramento nos crimes ambientais.

No passado recente se cogitou uma comissão de estudo do jet ski. Não saiu sequer do porto e silenciou por forças nem sempre explícitas. Não se sabe ainda o custo do seu dano – aquele que o povo vai pagar – para manter os negócios das aproximadamente cinco mil unidades comercializadas por ano no país, se os dados divulgados pelo mercado estão corretos. A conjuntura requer ações desenvolvimentistas, pensa o governo. Emprego a qualquer custo. Tudo no mais é sacrificado. Inclusive o bom senso. Assim, o jet “equipamento” vai sendo travestido de “embarcação” e nós ainda achamos que os outros é que são os bobos.

Mesmo naqueles lugares em que o jet ski é permitido, o seu uso está relacionado ao grau de cidadania dos indivíduos. De qualquer forma, parece que a contravenção é o seu maior impulso. Todos sabem que está proibido no Capingüi. Mas todas as semanas estão provocando a justiça. No início andavam como se escondendo, fugindo. Agora, como sabem que a fiscalização é deficiente, andam debochando do Ministério Público, da Justiça e da Marinha. Isto em um país em pleno estado de Direito, com todas as garantias para pleitearem, com o perdão da redundância, aquilo que consideram seu direito. Como se sabe, a quebra do contrato social, representado pelas leis, é o primeiro sintoma da marginalidade. Foram os próprios motoqueiros da água que consagraram sua fama, estragaram seu brinquedinho. A cidadania apenas colocou limites nas suas extravagâncias. A interdição da barbárie é um ato civilizatório.

Muitas pessoas são boníssimas. Entraram na onda pelo modismo, por ser um brinquedo interessante. Porque é permitido, pensam. Mas deixam de lado as “limitações” da permissão; desconsideram sua excepcionalidade. Todos estes elementos agregaram ao jet ski “equipamento” uma baixa densidade social. Somente a turma gosta. Para o restante é um inferno. Para o meio ambiente uma maldição.

Quando dou curso de habilitação, e um pai pergunta se deve atender o pedido do filho e lhe dar um jet, costumeiramente respondo: se você quiser jogar sobre ele o espectro da baixa cidadania; submetê-lo à hostilidade do meio náutico; colocá-lo inclusive em risco de vida, se ele não escolher prudentemente o lugar para andar…

O jet ski atrai a barbárie. Quando ele ingressa em zonas de produção, como a pesqueira, nem sempre motiva comportamentos afáveis. Qualquer pescador sabe que quando ele não mata na ova, espanta. Mas o motoqueironauta não se contém e vai fazer manobras radicais nas suas redes, de onde retira a sobrevivência da família. Se os motoqueiros da água fizessem queixa das chamuscadas de chumbo que levam, os indicadores dos conflitos seriam maiores. Não o fazem porque sabem que andavam em lugar impróprio, estavam cometendo infração. Os tiros de sinalizadores que recebem nas esteiras quando vão perturbar os ancoradouros não são incomuns. Particularmente nunca vi um motoqueironauta andando como um motociclista do asfalto, usando o equipamento para se integrar no meio ambiente e social.

Todas as tribos possuem um (pré)conceito. Ele deriva de seu comportamento social. Os motonautas construíram o seu. Se um anjo montar num jet ski naufragará sua auréola, pois estará mergulhado na imanência do grupo e do “equipamento” que trocou pelas suas asas divinas.


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