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8 de janeiro de 2021
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21:43

Trump e o cansaço de Ivete Sangalo

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Sul 21
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Trump e o cansaço de Ivete Sangalo
Trump e o cansaço de Ivete Sangalo
Apoiadores de Trump dentro do Congresso Americano após invasão. | Foto: Reprodução/Twitter

Tarso Genro (*)

Os efeitos da derrota eleitoral e política de Trump neste período de disputa, sobre os rumos do poder político no Brasil, além das certeiras análises que já estão circulando nas redes e até na grande imprensa mundial, é o que nos interessa nas urgências da nossa decadência democrática. Na verdade, nos episódios do ataque ao Capitólio, por agrupamentos fascistas, racistas e da extrema direita totalitária – contra o poder político do “establishment” – venceu a regra contra a exceção.

Refiro-me – evidentemente – à regra, como a “norma constitucional”, à “exceção”, como a soma dos poderes fácticos, que residem nas relações reais de poder e estão no cerne do Estado Americano: o complexo industrial militar, articulado com os oligopólios financeiros globais, guardiães dos interesses do Estado Americano – na sua hegemonia planetária – hoje sendo conferida de perto pelo Dragão Chinês. A derrota de Trump não é a derrota desta força descomunal, mas é a derrota – ainda não acabada – de uma “forma” de exercício desta força do gigante ameaçado.

Aprendemos sempre, desde os bancos escolares, passando pela nossa experiência em ouvir a maior parte da nossa magnânima – e agora estarrecida – grande imprensa, que os Estados Unidos seriam o país da mais estável e perfeita democracia do mundo, esquecendo, talvez por falta de atenção, países como a Suécia, Dinamarca, Suiça, Noruega, modelos de democracia, bem-estar e seriedade política em todos os
fronts do sistema do capital.

Jamais explicaram, também, como esta formidável democracia (vejam o artigo de Boaventura no Sul 21) exerce os “fundamentos” da sua Constituição – inspirada nos Pais Fundadores – nos países que ocupa, nas lutas de libertação nacional que sempre ajudou a esmagar, nas ocupações militares que já fez  em todos os continentes, nos golpes de Estado que sempre promoveu ao redor do Globo, momentos em que os seus poderes paralelos semeiam o crime, a morte e a deserção social. Mas Biden não é igual a Trump, assim como FHC não é igual a Bolsonaro.

O  que se faz principal, todavia, na diferença entre agentes políticos importantes, deve ser buscado não a partir principalmente da personalidade de cada um, mas de como esta personalidade interage com as questões morais e políticas de fundo, que estão em disputa. A reação decidida de Biden contra  fascismo, representado na gestão de Trump, é mais digna e responsável – em termos de democracia política – do que a timidez solidária de FHC, em relação a Bolsonaro, na questão do “impeachment”.

Isso pode querer dizer que Biden é mais “inimigo” do fascismo concreto americano – que se projeta no mundo através do desastrado “putschismo” da “quinta feira trágica” – do que é o cuidadoso FHC, em relação ao fascismo concreto no Brasil do bolsonarismo.

Ocorre que em todo o sistema constitucional convivem, sempre, duas ordens paralelas: uma ordem formal composta pelo sistema de leis escritas que regem o Estado e outra ordem concreta – oculta e não dominante no cotidiano – que rege a vida real. Nas comunidades marginalizadas onde não existe presença do Estado, por exemplo, aquela ordem formal tem pouca vigência e as relações de força, impostas pelas milícias e pelo crime comum e “político” (organizado) “fazem a lei.”

Nas suas relações externas é comum o Estado americano “exportar” a sua força política e militar, para cometer todas as ilegalidades que a sua direção política não pode cometer livremente no seu território, para “lá fora” defender seus interesses hegemônicos. A face da “maior democracia do mundo” que se torna efetiva no exterior, nas suas ações militares e políticas em defesa de governos opressivos e ditaduras encasteladas no poder, tem muito mais proximidade com o fascismo e o despotismo das classes ricas, do que com a democracia política que ́permeia no seu território.

O que aconteceu com Trump, portanto, foi a síndrome do cansaço – no falso papel de líder da “maior democracia do mundo” – que ele tentava representar como Presidente da República, passando a trazer para dentro do território as formas de “exceção”  – racismo, torturas, violência política que sempre guiou o Estado americano no exterior – atacando o coração da sua democracia liberal-representativa.

A expressão inocente de cansaço do movimento “Cansei”, de Ivete Sangalo, manifestado aqui no país há alguns anos atrás, estava bem representada pelo “Loquito de Cuernos”, dominando cenário no Capitólio, para denunciar uma Confederação de Pedófilos e Pederastas do Planeta Terra, para controlar o Ocidente. Biden é melhor que Trump, mas terá ele força política, capacidade de convencimento e projeto político, para regenerar uma democracia que leva à sério perversões desta natureza?  Tomara que sim e isso será um momento isolado, talvez, em que aquilo que foi bom para os EEUU pode ser bom para o Brasil, porque assassinos e fascistas são os mesmos em todos os sítios
do universo.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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