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27 de janeiro de 2021
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14:41

A trégua dos Tupamaros e o ódio racista contra Giovanna: episódios e lições dos ritmos da História

Por
Luís Gomes
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A trégua dos Tupamaros e o ódio racista contra Giovanna: episódios e lições dos ritmos da História
A trégua dos Tupamaros e o ódio racista contra Giovanna: episódios e lições dos ritmos da História
Pepe Mujica | Foto: Ricardo Stucker

Tarso Genro (*)

Nos combates políticos em ciclos não-revolucionários, ocorrem mutações ou evoluções lentas, não rupturas radicais que promovem a sujeição completa de uma parte a outra. Os combates aparecem, tanto como luta pela hegemonia como pela a demarcação política, que se sucedem de maneira silenciosa ou aberta. Esta sucessão é estabelecida de maneira “forçada”, ou por formas acordadas, pelas quais as forças opostas no conflito político buscam o domínio sobre o adversário (ou inimigo), para impor o seu rumo a um determinado ciclo da história.

Muitos episódios – nestes processos – geram efeitos futuros que passam a moldar toda uma época. Diferentemente da preocupação analítica acadêmica, na avaliação destes episódios, os militantes ou núcleos dirigentes de cada parte litigante, buscam principalmente interferir na conduta dos adversários e menos constatar quais são as suas as suas finalidades estratégicas.

Determinados fatos singulares, que ocorrem em certos ciclos, são reconhecidos como simbólicos no futuro, quando já projetaram a sua sombra nos comportamentos de um presente lúcido. “De onde saiu toda essa gente?” É a inscrição que leio nos muros eletrônicos do Twitter, interrogando sobre pessoas estranhas que “sabem” que a terra é plana ou que se filiam aos clubes de extorsão pela fé, orientadas a renegar a ciência e entregar suas poupanças às religiões do dinheiro.

Quero recortar dois pequenos episódios da história que podem ser considerados como simbólicos para entender o presente. O primeiro deles, aqui no nosso país, mostrou a nossa incapacidade de perceber o que viria depois de uma sequência de assassinatos – no varejo – da razão iluminista. Trata-se de um momento, fundado no racismo classista e protagonizado por pessoas obscuras que visibilizaram, processualmente, o ódio de boa parte das camadas ricas, que recai sobre os “pobres pretos e pardos”, fixados – pela sua aparência imediata – como criminosos permanentes.

Um segundo episódio, que narrarei a seguir, vem do Uruguai. Ele diz respeito a um momento particular vivido na ditadura daquele país, onde torturados e torturadores dentro do cárcere negociam “políticas de saída”, para uma situação “sem saída.” Esta situação depois é resolvida pelo esmagamento de um dos lados, que mais tarde se torna vitorioso, quando ali é retomado o processo democrático na sua plenitude.

Eis o primeiro episódio: Giovana Ewbank, modelo e apresentadora, com seu marido Bruno Gagliasso, em julho de 2016, adotaram uma menina negra de 4 anos e, mais tarde, também originário do Malawi, adotaram um menino. Tal decisão era fruto de uma escolha feita por pessoas generosas que – independentemente do meio que circulavam ou circulam – buscaram realizar a maternidade-paternidade para completar uma família. Um ato de amor com sensatez pública, numa época de desamores privados e públicos.

As adoções revelariam, por comentários nas redes – numa amostragem sinistra -, tudo que uma parte dos seres humanos tem de pior: preconceitos e ódios que muitos de nós (incluo-me neste grupo) não perceberam que rapidamente poderiam se transformar – com origem no nascedouro dos recalques reprimidos – num fenômeno de massas. O ódio despejado contra aquelas crianças, na obscuridade das redes, anunciava a vitória – no país – do espírito latente do fascismo bolsonarista, que passaria a ser naturalizado pela grande mídia e culminaria nas eleições presidenciais com a tese da “escolha difícil”.

Voltemos agora 50 anos atrás, ao Uruguai. No segundo episódio que relato, me vem à memória a narrativa de Eleuterio Fernandez Huidobro, nos seus três pequenos volumes sobre a saga do MLN-Tupamaros, onde ele conta sobre as lutas e os calabouços do regime ditatorial uruguaio. Huidobro – décadas depois – na democracia renascida, torna-se o Ministro da Defesa dos Governos de Mujica e Tabaré Vázquez, este, o último presidente uruguaio da Frente Ampla. No poder, Mujica defende – junto com seu Ministro – a anistia aos criminosos da ditadura, cumprindo uma decisão plebiscitária instituída na democracia. Penso no que estava especulando Huidobro quando despachava, como Ministro de Defesa, com os coronéis do presente.

Qual é este o episódio e como ele se dá? A “Suiça latino-americana” abria, na década de 60, um ciclo de crises no seu Estado Social, descrita em 1965 pelo agente da CIA Philip Agee, no seu “Diário da Companhia”: “A corrupção financeira uruguaia parece não ter fim. A CNG (Contadoria Geral da Nação) demitiu ontem toda a Junta Diretiva do Banco da República. Dezenove empregados e diretores de bancos (privados) sob intervenção ingressaram na prisão, ao tempo em que prosseguem as investigações.” O escândalo se ampliaria para firmas privadas e estatais, inclusive aumentado o dissenso entre as forças militares e policiais sobre as reais finalidades da repressão.

Nos dissensos internos – ainda sem a tutela completa da CIA -, o Exército tentava proteger os graúdos envolvidos nas roubalheiras e a Polícia Judicial tentava levar a termo seus Inquéritos sobre a corrupção, dentro e fora do Estado. O Uruguai começava a empobrecer, a renda concentrar-se, a dívida pública aumentar e a seguir – lentamente – o pequeno Uruguai, país comparado à Suíça social-democrata, adentra à sofrida América Latina.

Neste quadro, a principal guerrilha urbana do continente prepara-se para enfrentar o Estado uruguaio no bojo de uma comoção impensável, há poucos anos: assassinatos e “justiçamentos” – de parte a parte – torturas como método principal de investigação, sequestros, exílios, estupros nos cárceres do regime, são os instrumentos que levam a guerrilha ao seu final trágico e heroico. Um acontecimento simbólico da história clandestina, nas relações entre os agentes do Estado e os Tupamaros, todavia, deixa uma marca que registra seus efeitos no futuro.

No ano de 1972 no Batalhão Florida, grupo de vanguarda na luta contra os Tupamaros, eram planejados e operados golpes espetaculares contra guerrilha, que se esvaia. As torturas e os assassinatos de presos, até então promovidos nas dependências do Cemitério de Buceo, passaram a ser normalizados nas próprias dependências do Batalhão, sem qualquer discrição.

Neste ambiente, formaram-se as condições para uma desigual proposta de negociação – dentro do Batalhão Florida – entre os chefes Tupamaros presos e os Coronéis do Exército uruguaio que lideravam o regime, tendo à frente – entre outros – os Generais Christi, Trabal, Gregório Alvarez e Gravina. A proposta dos militares era que mensageiros da direção Tupamara, ora na prisão, fossem liberados – sob palavra de honra – para contatar a direção do MLN fora dos cárceres, para que a direção clandestina examinasse um protocolo de rendição na guerra já vencida pelos militares.

Os compromissos assumidos pelos militares eram, 1, a cessação imediata da tortura nos cárceres do regime; 2, a sustação das prisões sem flagrante, tendo como contrapartida – por parte do MLN – o fim dos ataques armados da guerrilha, para que fosse ajustado, neste novo contexto, como se dariam os acertos para uma rendição “incondicional”. Era uma proposta a ser considerada, face à desesperada situação de cerco político e aniquilamento militar do MLN, com a sua capacidade operacional já próxima de zero e sem apoio político de massas.

Na reunião inaugural no Batalhão Florida, entre coronéis e guerrilheiros presos, as divergências entre os militares se avolumaram e os revolucionários encarcerados – entre torturas e mortes – debatiam a paz desigual. O Coronel Trabal – conciliador entre as “alas” militares presentes na reunião – garantia a continuidade das falas quase bloqueadas. Motivo: alguns coronéis, sem mover um músculo da face, negavam as práticas de tortura na frente dos próprios torturados.

Quando as negativas se tornam insistentes, Manera Lluberas, mais tarde um dos reféns da ditadura (entre outros) – junto com Rosencoff, Pepe Mujica e o próprio Huidobro -, “ofereceu-lhes mostrar os testículos destroçados” pela “picana”. É o momento em que o Coronel Alvarez coloca um ponto final no assunto, com uma frase clássica, repetida por quem detém força e poder arbitrário em todo o mundo, nas situações de crise: “são fatos normais, de tempos anormais”.

Na abertura da reunião, depois de questionar Huidobro sobre os motivos que impeliam os Tupamaros à luta, o Coronel Gregório Alvarez – que estava atento à longa resposta de Huidobro – já tinha feito outra frase cínica perfeita, digna de quem detinha poder um total (e negocial), no “processo de paz”, que ao fim e ao cabo fracassaria: “Se é assim, podes me dizer por que ‘nós’ estamos peleando?”

A intervenção de setores militares mais corruptos e radicalizados conseguiu interromper o diálogo, embora os militares e presos políticos tivessem cumprido à risca os seus “compromissos de honra”, tanto quanto à soltura e o retorno ao cárcere dos dirigentes liberados que buscavam a orientação da direção clandestina do MLN, como quanto à proteção sigilosa, pelo Exército, dos dirigentes provisoriamente soltos.

Situações que tem um trajeto de consequências no plano político, ligam o exemplo de Giovanna Ewbank com a negociação forçada dos Tupamaros, nos cárceres da ditadura uruguaia. No caso Giovanna – um dos milhares que ocorreram no país – ficava claro um dos sintomas da transição ideológica ainda molecular, na estrutura de classes da sociedade, que liberava um ódio aos pobres, pardos, pretos, negros, que passaria a dominar as entranhas da desigualdade originária do escravismo colonial. A brutal iniciativa da Sociedade Hebraica, no Rio, que apelidava o Capitão de “mito” – como Hitler – mostrava que se adiantava o relógio da História, em direção ao fascismo que hoje destrói o país.

No caso da negociação entre os coronéis e a guerrilha, ausente um amplo movimento de massas contra a ditadura, os quadros do MLN – contrariamente ao que pôde fazer Mandela com apoio de massas – foram obrigados a negociar, sabendo que já perderam a guerra. No caso de Giovanna, a dominação ideológica que liga raça e classe – que estava viva numa transição democrática imperfeita – se torna ainda mais agressiva, já fenômeno eleitoral, que bloqueia os avanços democráticos que vieram dos governos,depois de 88.

Em ambos os casos, a História cobraria o seu preço. Nós, da esquerda, que não tínhamos entendido aquelas demonstrações de racismo classista como uma premissa fascista em evolução, deixamos “passar batido” o caminho de um futuro desastroso. No Uruguai dos coronéis – de outra parte -, ficou patente que a bravura de uma geração de lutadores não foi suficiente para compreender que a Revolução Cubana era uma exceção na América Latina e que os inimigos da democracia aprendem com a História. O desastre uruguaio foi superado muitos anos depois do fracasso dos coronéis “dialoguistas” e o nosso desastre, ao que parece, já começou a dar sua meia volta.

Quando a utopia dos “soviets” deu seu lamento final, com a decomposição dos fundamentos da Revolução Russa e a socialdemocracia – em escala mundial -, voltou-se para ser o leito das reformas neoliberais, começamos a aprender que, se um certo tipo de socialismo “morreu com um gemido não com um estrondo”, devemos começar de novo. E como dizia o barbudo de Trevers “duvidando de tudo”, inclusive das nossas próprias ilusões benignas.

O grito de “Fora Bolsonaro”, que agora começa a crescer nas gargantas sitiadas pelo ódio, se conseguir a unidade da maioria do povo, pode ser uma lição de” fora para dentro” dos partidos, assim renovando a ideia de democracia e da república. Como na eleição de Lula, Mujica, Evo e outros – agora com Fernandez e com a expulsão de Trump da Casa Branca –, enfrentemos o racismo e o classismo oligárquico, que espalha o ódio, o negacionismo e a morte, por todos os seus poros malditos.

(*) Ex-Ministro da Justiça, da Educação e ex-Governador do Rio Grande do Sul

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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